CVM condena acusado de money pass que transferiu recursos à esposa na bolsa

Vinícius Fadanelli
JOTA
18/04/2018

Milton Luis Montanari repassou mais de R$ 25 mil à sua esposa; prática pode servir para lavar dinheiro

O colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) condenou, por unanimidade, um acusado de criação de condições artificiais de demanda na modalidade money pass , prática que consiste na realização de operações de bolsa para dissimular a transferência de recursos entre dois investidores previamente combinados.

O investigado utilizava uma conta em seu nome e, ao mesmo tempo, controlava a conta de sua esposa, efetuando a transferência. A prática ofenderia a “integridade do mercado de valores mobiliários” e pode ter fins ilícitos, como lavagem de dinheiro e sonegação fiscal.

Milton Luis Montanari foi acusado pela Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários (SMI) da CVM e teve seu processo administrativo sancionador (RJ2016/5348) julgado na última terça-feira (17/4). O caso é oriundo do Processo Administrativo Disciplinar 50/2012, conduzido pela BM&FBovespa Supervisão de Mercados (BSM), órgão autorregulador do mercado de capitais.

A área técnica da autarquia identificou 30 operações de day-trade (compra e venda no mesmo pregão) entre 24 de outubro de 2011 e 9 de março de 2012 envolvendo ações da Sansuy S.A. e da Tecelagem Kuehnrich S.A., com 100% de acerto, resultando numa transferência de recursos de R$ $25.885,00.

No início de seu voto, o relator do caso no colegiado da autarquia, Gustavo Machado Gonzalez, lembrou que realizar negócios entre duas contas não configuram, por si só, um ilícito. Além disso, escreveu, o fato de um investidor simultaneamente atuar nos dois lados do livro de ofertas não configura uma irregularidade per se, e que existem estratégias lícitas de negociação em que o investidor à semelhança de um formador de mercado.

O que chama atenção no caso, entretanto, foi o “modo como Milton administrava as duas contas e realizava as operações investigadas”. Ao mesmo tempo em que Milton dava ordens à bolsa por meio de um mecanismo de acesso direto ao mercado (DMA), transmitia à sua corretora as ordens de sua esposa. “Dessa forma, Milton conseguia dissimular a irregularidade praticada, bem como dificultar a sua detecção pela corretora, pelo autorregulador e pela CVM”, afirmou Gonzalez em seu voto. Isso deixara claro que o mercado de ações teria sido utilizado de maneira imprópria.

Como exemplo de uma das transações, no pregão do dia 19 de dezembro de 2011, a esposa de Milton deu ordens de compra às 14h. Apenas 11 segundos depois, o acusado vendeu os ativos. Ainda naquele dia, às 17h09, a mesma operação foi realizada, dessa vez num intervalo de sete segundos.

Outro ponto que chamou a atenção do regulador do mercado de capitais foi a quantidade atípica de negociação para essas ações. Enquanto investidores negociavam entre 100 a 1000 ações dos papéis num pregão, Milton e sua esposa negociavam 20 mil ações.

Por se tratar de um ativo de baixa liquidez no mercado, “Milton conseguia, agindo rápido, realizar negócios entre ambas as contas com pequena probabilidade de interferência de outros investidores”. Os reguladores identificaram que em 14 pregões ocorridos no período analisado, os negócios entre os cônjuges representaram de 52,3% a 93,7% do volume total negociado dos ativos.

A decisão analisa, ainda, as alegadas razões apresentadas pelo acusado para as operações concluindo que não havia “nenhum fundamento econômico, plausível e legítimo” que as justificasse. Essas transferências tidas como irregulares se enquadram na ICVM 08/1979, já que money pass “configura a criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço”. Segundo Gonzalez, a transferência de recursos por meio de operações previamente acertadas “ofende a integridade do mercado de valores mobiliário”, já que elas poderiam provocar “direta ou indiretamente, alterações no fluxo de ordens de compra ou venda de valores mobiliários”.

“A tutela da CVM abrange não só informações produzidas pelos emitentes de valores mobiliários, como também aquelas referentes às ofertas enviadas aos sistemas de negociação e aos negócios cursados no mercado”, afirmou o relator. “Trata-se de assunto de extrema importância, especialmente no mercado de bolsa, onde muitos investidores tomam suas decisões de investimento com base em informações pré e pós-negócio.”

O relator apontou que o processo de formação de preços no mercado de valores mobiliários “não deve sofrer interferências indevidas nem transparecer volumes negociados que não reflitam o real embate entre oferta e demanda pelo ativo, sinalizando erroneamente ao mercado valores que não condizem com a liquidez efetiva dos títulos”.

“Ainda que as operações de money pass não visem falsear o mercado, mas viabilizar a transferência de recursos entre dois particulares, elas prejudicam a confiabilidade das informações endógenas ao processo de negociação”, explica Gonzalez. Segundo ele, essa consequência necessária do meio escolhido, danosa e previsível, ofende a integridade do mercado e merece reprimenda por parte da CVM, nomeadamente em casos onde tais operações são realizadas em mercados de menor liquidez e envolvem volumes significativos considerando o histórico de negociação do papel”.

Ao final, por entender que “restou demonstrada a conduta dolosa do acusado [Milton] que, ao realizar operações com o objetivo de promover a transferência de recursos entre os dois comitentes, criou um parâmetro equivocado do verdadeiro volume de operações existente naqueles pregões, para aqueles ativos”, o relator votou pela condenação de Milton no valor de R$ 100 mil, com base no inciso I c/c inciso II, “a” da ICVM 08. Como agravantes, constaram que a prática tida como irregular durou quatro meses.

Money pass

Na visão do advogado Vinicius Fadanelli, da área de mercado de capitais e direito societário do escritório Souto Correa, ex-integrante da Superintendência Jurídica da BSM, além de possíveis efeitos ao mercado de valores mobiliários, a prática de money pass pode servir para sonegação fiscal: gerando prejuízos em uma sociedade (redução do lucro tributável), porém com a disponibilização de quase a totalidade dos recursos a outra pessoa (o controlador, ou uma parte ligada), ou transferindo recursos deliberadamente, sem o recolhimento dos tributos incidentes (tributos sobre doação, por exemplo).

Além disso, aponta Fadanelli, outra possibilidade é que, com tais operações, “se concretize uma das etapas da ‘lavagem de dinheiro’, gerando ‘origem lícita’ aos recursos recebidos, teoricamente, em decorrência de operações de bolsa”.

“A ocultação da transferência direta de recursos com a utilização de operações de bolsa pode ser identificada pelo monitoramento da BSM com a verificação de séries de operações com identidade entre as duas partes, em lotes e preços usualmente fora da média do ativo negociado. Ocorrem muitas vezes em day-trade, com ‘acertos’ (operações superavitárias) muito acima da média do mercado (inclusive de agentes experientes e sofisticados)”, explica o advogado.

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