Judicialização sistêmica' ameaça investimentos em energia

Rômulo Mariani

Valor Econômico

12/09/2018

As intervenções do judiciário no setor elétrico têm crescido cada vez mais, mas ainda sem colocar em risco a atratividade do segmento, que tem liderado a captação de novos investimentos em infraestrutura nos últimos anos e demonstrando uma resiliência grande, de acordo com a avaliação de especialistas ouvidos pelo Valor.

O maior problema não se refere às liminares “conjunturais”, como as obtidas por investidores nos leilões de transmissão de junho e A-6 de agosto, que atrasaram o início dos certames em cerca de sete horas. Nas duas ocasiões, as decisões foram derrubadas pela União no mesmo dia, e os leilões contaram com competição acirrada e grandes deságios em relação aos preços máximos.

Para o coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), da UFRJ, professor Nivalde de Castro, essa judicialização conjuntural tem baixo impacto no setor, visto pelos resultados expressivos obtidos nas licitações.

A judicialização “estrutural”, porém, oferece um risco à atratividade do setor elétrico. É o caso, por exemplo, do déficit de geração das hidrelétricas (GSF, na sigla em inglês), cujo problema assustou grandes empresas do setor de geração de novos investimentos. O Valor apurou que o órgão do governo chinês que administra as estatais, a Sasac, vetou que empresas do país participem do leilão de privatização da Cesp, marcado para 2 de outubro. Os motivos para isso envolvem tanto o risco hidrológico, que tem dado trabalho para China Three Gorges (CTG) na gestão de suas hidrelétricas, quanto as incertezas sobre os enormes passivos judiciais não provisionados no balanço da estatal paulista.

“O investidor tem mais medo da judicialização de médio e longo prazo do que de questionamentos pontuais”, disse Rodrigo Leite, sócio do Leite, Roston, Chaves, Saciotto e Burr Advogados. Segundo ele, as principais discussões que podem chegar a afastar investidores incluem questões como o GSF, as indenizações de ativos antigos de transmissão, e brigas na Justiça por conta de incentivos cruzados.

Já a judicialização “pontual”, como as liminares que suspenderam os leilões recentes, não assusta tanto. “Antes, havia ações na Justiça só para obras grandes, como a hidrelétrica de Belo Monte. Agora, vemos todo mundo na Justiça. Os novatos estão indo um pouco despreparados aos leilões, fazendo cadastramentos errados. Talvez seja necessário mais preparo”, disse Thais Prandini, diretora executiva da Thymos Energia, consultoria que assessora diversos participantes de leilões.

Para Carlos Eduardo Gomes, analista do setor elétrico e sócio da Pacífico Gestão de Recursos, é comum haver pedidos de liminares às vésperas de leilões, o que não afeta a atratividade dos certames. Segundo ele, um ponto positivo, no caso dos leilões de privatização, é a definição de uma equipe de plantão da Advocacia Geral da União (AGU) para agir rapidamente nas situações de pedidos de liminares por opositores aos leilões.

O analista aponta como mais prejudicial ao setor a judicialização derivada do problema do GSF. Gomes, porém, vê com bons olhos a proposta do governo de repactuação do risco hidrológico que permite ao gerador hidrelétrico a extensão do contrato de concessão de usina, em contrapartida ao pagamento das despesas relativas ao GSF. A proposta está incluída em projeto de lei em trâmite no Senado e pode ser aprovada logo após as eleições.

“A judicialização estrutural mostra que há falhas no marco regulatório, no modelo de comercialização e na questão de falta de garantias efetivas. Isso faz com que grupos e empresas que normalmente operam a fio d’água e que estão com GSF muito alto, na fase de início de operação do empreendimento, sejam obrigadas a entrar na Justiça”, disse o professor Nivalde de Castro. Ele destacou ainda que o GSF dessas hidrelétricas em geral é elevado não por responsabilidade delas, mas por efeitos provenientes da forma de operação do sistema elétrico.

Esse tipo de problema sistêmico, sim, pode aumentar a taxa de retorno exigida por investidores de perfil mais conservador. Um analista de uma gestora que falou sob condição de anonimato contou que empresas já deixaram de participar de leilões de energia pela percepção de crescimento do risco.

O aumento das brigas do setor elétrico na Justiça levou o tema à segunda edição do Fórum Nacional da Concorrência e da

Regulação (Fonafre), promovida pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) no fim de agosto em Campinas, interior de São Paulo. Ao fim do encontro, foram aprovados novos “enunciados” (dispositivos sem força de lei, mas que servem como referência para a atuação do judiciário) específicos para o setor elétrico.

Para Rômulo Greff Mariani, advogado do Souto Corrêa, a publicação dos enunciados é bem-vinda, desde que não signifique uma “carta branca” para favorecimentos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e do poder concedente. O enunciado 22, por exemplo, diz que as partes devem ser ouvidas antes do deferimento de liminar que altere marco legal regulatório. O enunciado 20, por sua vez, diz que ao decidir questões regulatórias do setor de energia, os juízes devem ter em conta os problemas sistêmicos e econômicos que as decisões podem causar.

“Um ponto positivo é que, de fato, se espera bastante atenção de um magistrado quando ele se depara com uma demanda”, disse Mariani. O enunciado seria aplicável às brigas do GSF, cujas liminares tiveram efeitos sistêmicos e de efeito cascata em todo o setor. “Minha preocupação é que isso feche as portas do judiciário para o setor”, completou. Segundo ele, nem sempre os reguladores e o poder concedente acertam. “Quando se fala em judicialização no setor eu sempre pergunto: é causa ou consequência? Não digo que todos os pleitos são legítimos, mas o poder judiciário atuante, independente e imparcial é parte fundamental desse pilar chamado estado democrático de direito”, completou.

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