A ilegalidade matemática das multas do Procon

Julia Klarmann e Ronaldo Kochem
JOTA
30/01/2018

O descompasso dos valores das multas administrativas com os critérios legais

Com o objetivo de dar parâmetros para o cálculo das multas administrativas decorrentes de infrações aos direitos de consumidores, vários PROCONs e também o SENACON adotaram fórmulas matemáticas com as quais seria possível alcançar certa objetividade na definição do quantum devido pelos fornecedores. Referidas fórmulas pretendem definir o valor das multas administrativas em respeito aos parâmetros legais do caput do artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor, que são: gravidade da infração, vantagem auferida e condição econômica do fornecedor. A experiência, contudo, demonstra a ilegalidade dos meios escolhidos pelos órgãos de defesa do consumidor, na medida em que são exatamente esses parâmetros que acabam não sendo observados.

Exemplo disso é o acórdão de julgamento da Apelação Cível nº 1015531-62.2014.8.26.0053, no qual o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu que “o artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor estabelece que, no dimensionamento da sanção, devem ser consideradas conjuntamente (a) a GRAVIDADE DA INFRAÇÃO, (b) a VANTAGEM AUFERIDA e (c) a CONDIÇÃO ECONÔMICA DO FORNECEDOR”. Segundo o voto condutor do acórdão, haveria sido considerado apenas o critério da “condição econômica do fornecedor” para a definição do valor da sanção administrativa. Daí porque o Tribunal concluiu pela necessidade de desconstituir a multa e lhe impor um limite de 10% do valor originalmente atribuído.

Esse julgamento é um exemplo de decisão que renova as reflexões existentes a respeito dos temas da objetividade da atribuição do valor das sanções administrativas e da obediência administrativa aos critérios do artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor.

A análise a seguir examina, a partir do acórdão mencionado acima, o uso da fórmula estabelecida pelo PROCON do Estado de São Paulo em sua Portaria Normativa nº 45/2015. Especificamente, analisa-se a atribuição, pelo PROCON, de valores para o critério legal da “vantagem auferida” e a sua compatibilidade com os parâmetros legais.

“Graduar de acordo” pode significar “não considerar”?

A incorporação de uma fórmula matemática por normas regulamentares parece ser, à primeira vista, uma forma adequada de garantir o uso, pelos órgãos competentes, de critérios objetivos e adequados à lei regulamentada. Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “não se pode, prima facie, impugnar de ilegalidade portaria do Procon estadual que, na linha dos parâmetros gerais fixados no CDC e no decreto federal, classifica as condutas censuráveis administrativamente e explicita fatores para imposição de sanções, visando a ampliar a previsibilidade da conduta estatal”[1]. Assim, o mero fato de os órgãos de defesa estipularem mecanismos para a obtenção do valor da sanção administrativa não é de ser tido por ilegal.

No entanto, se não é prima facie questionável o estabelecimento de um mecanismo de cálculo, isso não quer dizer que qualquer forma de cálculo seria adequada (válida), segundo os critérios legais.
Para que a fórmula matemática e o seu uso sejam legítimos, os critérios legais não podem ser, de forma alguma, desconsiderados; caso contrário, estar-se-á frente a um uso ilegal do Poder Sancionador pelo órgão de defesa do consumidor, extrapolando a competência fiscalizatória que decorre do artigo 56 do Código de Defesa do Consumidor.

No caso da fórmula constante do artigo 33 da Portaria Normativa nº 45/2015 do PROCON do Estado de São Paulo[2], cabe verificar se ela observa os parâmetros legais do caput do artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor, sob pena de se estar frente a uma ilegalidade. Segundo ele:

“Art. 57. A pena de multa, graduada de acordo com a gravidade da infração, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor, será aplicada mediante procedimento administrativo, revertendo para o Fundo de que trata a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, os valores cabíveis à União, ou para os Fundos estaduais ou municipais de proteção ao consumidor nos demais casos” (grifou-se).

É evidente que “graduar” a multa “de acordo” com esses critérios não significa, de um lado, utilizá-los para aumentar o valor da multa, ou de outro lado, conforme o caso, considerá-los neutros.

No contexto em que se insere o caput do artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor — do qual faz parte o Parágrafo Único que estipula o valor mínimo e o valor máximo da pena de multa —, tem-se que “graduar de acordo” significa regular a intensidade da sanção utilizando como parâmetro dessa intensidade os três critérios legais, sendo que o valor mínimo e o valor máximo da pena de multa deverão respeitar os limites do Parágrafo Único.

A doutrina não costuma problematizar a questão, analisando-o sem a devida profundidade. Contudo, há doutrinadores que, examinando o ponto com maior esmero, afirmam que os três critérios legais não são colocados em ordem hierárquica ou de preferência[3] e que os três critérios devem ser usados concomitantemente[4].

Desse modo, uma graduação que neutralize o efeito quantificador de um desses critérios haverá de ser tida por ilegal, na medida em que colocará os demais em posição de preferência e deixará de utilizá-los de forma concomitante.

A ilegalidade da fórmula utilizada pelo PROCON-SP (art. 33 da Portaria 45/2015)

O artigo 33 da Portaria Normativa nº 45/2015 prescreve a utilização da seguinte fórmula de cálculo da multa administrativa:

“PE+(REC.0,01).(NAT).(VAN)=PENA BASE”,

onde “PE” é definido pelo porte econômico da empresa, “REC” é o valor da receita bruta, “NAT” representa o enquadramento do grupo da gravidade da infração (natureza) e “VAN” refere-se à vantagem.

Referida fórmula pode ser objeto de diversas análises, a depender da perspectiva pela qual se pretenda aferir a legalidade do cálculo realizado pelo PROCON-SP. É possível verificar, por exemplo, que (i.) há casos em que a aplicação da fórmula leva a multas em valor desencontrado com os limites do parágrafo único do artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor, a partir do que se pode concluir pelo descompasso da fórmula com os critérios legais5, (ii.) a fórmula baseia-se preponderantemente na condição econômica do fornecedor6, (iii.) a graduação da gravidade das infrações constante do Anexo I utiliza-se de critérios inadequados. Sob essas – ou outras – perspectivas pode-se argumentar pela desproporcionalidade ou ilegalidade da utilização dos critérios listados na Portaria.

Contudo, para se manter no objeto do presente artigo a partir de um exemplo prático simples, propõe-se o exame do uso do critério da vantagem auferida na fórmula do PROCON.

E, especificamente quanto à atribuição de um valor específico para “VAN” (artigo 33, § 4º), tem-se que: (i) os casos em que a vantagem não é apurada no Processo Administrativo, o multiplicador da fórmula é “1”; (ii) os casos em que o fornecedor comprovadamente não auferiu vantagem, também recebem o multiplicador “1”; e (iii) os casos em que foi apurada a existência de vantagem ao fornecedor, o multiplicador é “2”.

Ocorre que, ao se utilizar o multiplicador “1” para “VAN” na fórmula do cálculo da multa, o PROCON-SP verdadeiramente desconsidera a circunstância da existência ou não de vantagem auferida pelo fornecedor e tão somente neutraliza esse critério no cálculo.

Fala-se em neutralização do critério por meio da fórmula, porque é notório que multiplicar um valor pelo número “1” equivale a não o multiplicar por nenhum valor. É que se multiplicando “1” por qualquer outro número será obtido o produto equivalente. Assim, ao contrário de o critério da vantagem auferida ser considerado para graduar o valor da multa, esse critério é utilizado tão somente para aumentar esse valor; e caso não seja possível utilizá-lo para aumentar esse valor, neutraliza-se o critério por meio de uma fórmula matemática.

Para verdadeiramente graduar a multa em conformidade com esse critério, a inexistência de vantagem auferida no caso concreto deveria refletir-se em uma diminuição do valor da multa. É dizer, deveria ser representado por um multiplicador menor que “1”. Caso contrário, conforme já exposto, ao utilizar o número “1”, se estará neutralizando/desconsiderando o parâmetro legal.

Assim, a fim de que a multa administrativa esteja de acordo com o disposto no artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor, a não existência do elemento vantagem auferida deveria ser representada, por exemplo, pelos multiplicadores “1/2” ou “1/3”, ao invés de “1”. Somente dessa maneira, será possível que critério legal tenha um efeito real na fixação da multa administrativa, sendo devidamente considerado na graduação do valor da multa.

Considerações finais

Demonstrou-se acima que a fórmula do PROCON do Estado de São Paulo padece ao menos de uma ilegalidade: a desconsideração do critério da vantagem auferida no cálculo do valor da multa administrativa. Considerações semelhantes poderiam ser feitas a respeito de mecanismos de cálculo de outros órgãos de proteção do consumidor.

O que importa para o presente artigo, contudo, é indicar a existência desse descompasso dos valores das multas administrativas com os critérios legais, não obstante a existência de uma aparência de legalidade e objetividade na definição do seu quantum.

Frente à demonstração dessa discrepância, tal qual realizado no caso noticiado, o controle jurisdicional da imposição das multas administrativas por violação ao direito do consumidor deverá determinar como consequência jurídica a anulação do ato ilegal e desproporcional ou a redução do quantum da sanção pecuniária.

Em nosso Estado de Direito, ainda que se afirme a coexistência de elementos vinculados e elementos discricionários no exercício da função sancionadora, o Poder Judiciário haverá de confirmar o que cogitou Odete Medauar a respeito da predominância dos aspectos vinculados sobre os discricionários7. Ao fim, a lei haverá – sempre – de prevalecer.

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1[1] STJ, AgRg no AgRg no REsp nº 1.261.824/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 14/02/2012, DJe 09/05/2013.

2[1] Portaria disponível em: http://www.procon.sp.gov.br/texto.asp?id=4259 (último acesso em 16/09/2017).

3[1] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 4ª ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 1.422.

4[1] NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 131.

5[1] Mesmo que o PROCON, nesses casos, realize ajustes para manter a multa dentro dos limites do parágrafo único do artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor, isso não afasta a constatação de que existe um descompasso da fórmula com os critérios desse dispositivo normativo. Com efeito, a realização de ajuste de contas final pressupõe justamente um desajuste não só no valor obtido pelo cálculo inicial, mas também do método utilizado pela fórmula examinada.

6[1] Nesse sentido, veja-se que há na fórmula um flagrante desequilíbrio na consideração dos critérios legais. Enquanto que os demais critérios são multiplicadores de 1 a 4, o critério da condição econômica do fornecedor é um multiplicador que ultrapassa em muito esses números.

7[1] MEDAUAR, Odete. Sanção Administrativa em Geral e no Código de Defesa do Consumidor, in: FILOMENO, José Geraldo Brito (org.). Tutela Administrativa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2015, p.89.

Julia Klarmann – Graduada em Direito pela PUC/RS e pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV-Law. Advogada sócia do escritório Souto, Correa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados
Ronaldo Kochem – Mestre e Bacharel em Direito pela UFRGS. Advogado sócio do escritório Souto, Correa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados

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