A preservação de valor como propósito da recuperação judicial

[:pt]12/12/2020 – CONJUR

 

Promulgada em 2005, a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei Federal nº 11.101/2005) passa por uma primeira reforma significativa com a aprovação do Projeto de Lei nº 4.458/2020, o qual agora aguarda sanção presidencial. Tem-se um momento oportuno para reconquistar o prestígio que é devido ao instituto da recuperação judicial — jornada que possivelmente começa pela retomada do verdadeiro propósito dos processos recuperacionais: possibilitar a preservação de valor inerente à manutenção da atividade produtiva viável.

 

Feito um balanço preliminar quanto aos primeiros 15 anos da atual legislação falimentar, há avanços dignos de comemoração e problemas que merecem atenção. Um olhar mais detido ao lado negativo do balanço e é possível até mesmo encontrar quem chegou a equiparar a recuperação judicial a um “calote institucionalizado”. A afirmativa pode ser hiperbólica, mas registra uma preocupação válida: em meio ao grande salto de recuperações judiciais ajuizadas a partir de 2016, tem-se notado que o instituto nem sempre é utilizado com o devido cuidado aos interesses dos credores.

 

Ressona consistentemente pela jurisprudência a evocação do princípio da preservação da empresa, a partir do que o devedor costuma ser beneficiado, privilegiando-se a manutenção de sua atividade empresária. Ocorre que a preservação da empresa deve ser compreendida sem recurso a silogismos simplistas; não é o ideal que passemos a contar com um princípio “coringa”, de livre aplicação.

 

Talvez o princípio da preservação da empresa fosse mais criteriosamente aplicado se presente o verdadeiro propósito da recuperação judicial: preservar valor, e não meramente a empresa.

 

Começa-se de um questionamento central: por que precisamos do Direito Recuperacional? Em outras palavras, por qual razão oferecemos ao devedor em crise um mecanismo jurídico para soerguer seu empreendimento, em oposição à solução de simplesmente liquidar suas atividades mediante uma falência? Uma análise histórica demonstra que a falência é uma alternativa muito mais antiga do que a recuperação judicial — nem por isso as relações comerciais eram inviáveis antes de sua criação.

 

A resposta a esse questionamento pode ser encontrada a partir de uma analogia familiar aos estudiosos do Direito da Insolvência. No livro “The Logic and Limits of Bankruptcy Law”, de Thomas H. Jackson, o autor estadunidense explica a problemática da “ação coletiva” a partir de um hipotético açude.

 

Assumamos que um único pescador pudesse fazer uso de um açude repleto de peixes. Assumamos, ainda, que caso a totalidade dos peixes ali presentes fosse pescada a um só tempo, o pescador teria um lucro de $ 100. Intuitivamente, sabe-se que essa não é a maneira mais racional de explorar o açude: é pertinente que alguns peixes sejam deixados no açude, de modo que possam se reproduzir, permitindo a perenização da pesca.

 

Assumamos que o pescador possa pescar até $ 50 por ano em peixes sem que isso prejudique sua reprodução e consequente multiplicação. Ora, uma perpetuidade de pagamentos de $ 50 ao ano tem valor presente muito superior a um único pagamento irrepetível correspondente a $ 100 — mantendo-se a proporção dos exemplos de Jackson, assumamos que a perpetuidade de nosso açude fictício equivale a $ 500.

 

Entra em cena, contudo, o problema da ação coletiva. É simples para o pescador individual de nosso exemplo controlar sua própria pesca e não prejudicar a reprodução dos peixes. A sistemática muda por completo, no entanto, quando outros pescadores também passam a fazer uso do açude. Houvesse 50 outros pescadores fazendo uso do mesmo açude, um determinado pescador não teria como fiscalizar se outro pescador estaria respeitando o limite máximo de pesca até o valor de $ 1 por ano (acima do qual a reprodução dos peixes é impactada).

 

Assim, não haveria incentivo para que um determinado pescador respeitasse o limite de número de peixes passíveis de pesca, pois qualquer outro pescador poderia desrespeitá-lo e, com isso, ter lucro superior — em prejuízo da coletividade. Ao fim e ao cabo, os pescadores não conseguem coordenar sua atuação e o açude acaba sendo exaurido. Isto é, a ação coletiva, em que cada indivíduo tem presente apenas a maximização de seu lucro individual, destruiu o valor da perpetuidade, $ 500, limitando o lucro de todo o coletivo a apenas $ 100, soma do valor total dos peixes presentes no açude.

 

É esse o espaço de atuação do Direito Recuperacional. O Direito da Insolvência adentra o ordenamento jurídico pátrio com o propósito de coordenar a ação coletiva de agentes que têm interesses contrapostos (cada um visando à maximização de seu lucro individual), de modo a preservar valor — valor que somente subsiste enquanto mantida a atividade produtiva.

 

No ordenamento brasileiro, a Lei de Recuperação de Empresas e Falências parece ter capturado esse propósito apenas parcialmente.

 

O artigo 47 da Lei 11.101/2005 faz menção ao princípio da preservação da empresa, o qual rapidamente ascendeu ao posto de princípio fundamental da legislação recuperacional, dirigindo a aplicação de todos os demais dispositivos da referida lei. Ocorre que a preservação da empresa não é intrinsecamente positiva.

 

Que uma empresa siga operando é, em abstrato, um fato neutro — um juízo positivo ou negativo desse fato depende do caso concreto. O aspecto positivo à sociedade, efetivamente digno de tutela jurisdicional, é que a empresa produza valor — que a empresa em atividade tenha valor superior àquele que seria alcançado com sua liquidação. Nesse sentido, uma empresa inviável (cujo valor em atividade é inferior ao valor de liquidação) não deve ser preservada, pois estaria prejudicando toda a gama de credores com que guarda relações.

 

Em diálogo com o exemplo do açude acima citado, pense-se em uma sociedade empresária que gera $ 50 de lucro ao ano, e cujo valor, se simplesmente liquidados os seus bens, corresponde a $ 100. Evidentemente, a sociedade não tem como valor de mercado apenas o valor de seus bens — a sociedade é precificada com base no fluxo consistente de $ 50 de lucro anuais. Digamos que essa perpetuidade (a qual, na prática, depende de variáveis como a taxa de juros) corresponda a $ 500. Esse é o valor de mercado da sociedade.

 

Qual o espaço do Direito Recuperacional? O espaço entre os $ 100 e os $ 500.

 

A recuperação judicial entra em cena para garantir que os credores não procedam com execuções individuais no modelo “first come, first served”, em que os primeiros a chegarem tomariam bens da sociedade para satisfazer seus respectivos créditos, mas com isso inviabilizariam o prosseguimento da atividade produtiva — afinal, não há como produzir sem máquinas, sem computadores, sem veículos etc. Fosse esse o quadro, alguns pouquíssimos credores teriam seus créditos satisfeitos por conta dos bens encontrados, mas a maioria esmagadora de credores já não encontraria bem algum que pudesse satisfazer sua dívida. E o que é pior: os trabalhadores perderiam seus empregos, as autoridades tributárias deixariam de recolher impostos, os fornecedores deixariam de realizar vendas e os consumidores deixariam de ter produtos ou serviços à sua disposição.

 

A sociedade empresária citada desempenha uma atividade viável, sendo, portanto, digna de tutela. Há pleno respaldo para que faça uso do instituto da recuperação judicial.

 

Agora imagine-se um cenário oposto. Suponhamos que uma sociedade empresária tem prejuízos consistentes, a despeito de um bom número de ativos de valor significativo. Nesse cenário, o valor de liquidação da sociedade supera o valor de manutenção da atividade. Desse modo, manter a sociedade empresária em atividade, por meio de um plano de recuperação judicial (que presumivelmente apresentará deságios assombrosos, quase equiparáveis ao perdão da dívida), acaba destruindo valor, pois a sociedade somente seguiria em atividade por conta de um involuntário financiamento de sua atividade advindo de seus credores, que acabarão suportando o risco da atividade do devedor. Não cabe a recuperação judicial aqui: a falência é o instituto que mais preserva valor à sociedade.

 

É essa dicotomia que talvez tenha passado ao largo do legislador brasileiro — e possivelmente tenha sido esquecida pela jurisprudência pátria, que emprega o princípio da “preservação da empresa” sem a correlata e inerente necessidade de verificar se a medida também preserva valor.

 

Mais recentemente, por meio do Projeto de Lei nº 4.458/2020, o legislador pátrio parece ter minimamente tomado nota da problemática.

 

Em meio a alterações estruturais e pontuais, o projeto inseriu o inciso XVIII ao artigo 50, que elenca meios de recuperação judicial. Dispõe o texto legal:

 

“Artigo 50 — Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros:
XVIII. venda integral da devedora, desde que garantidas aos credores não submetidos ou não aderentes condições, no mínimo, equivalentes àquelas que teriam na falência, hipótese em que será, para todos os fins, considerada unidade produtiva isolada”.

 

Ora, qual o racional de a recuperação judicial perseguida por meio da alienação integral do devedor ter de respeitar o parâmetro de que os credores têm de ter garantido para si pelo menos o valor de liquidação da companhia, mas essa mesma garantia não ser imposta para todos os demais meios de recuperação judicial, inclusive os mais padrões, como o deságio no valor dos créditos e a estipulação de período de carência?

 

A novel legislação claramente identificou o ponto crítico, o ponto digno de tutela. No entanto, inexplicavelmente, restringiu o espaço de proteção a um grupo minúsculo de credores: os credores de sociedade que será alienada integralmente. Credores de sociedades que serão reestruturadas por qualquer outro meio curiosamente não dispõem de igual proteção.

 

Evidentemente, a proteção ao valor deveria ser universal. Não há racionalidade econômica ou jurídica em permitir que um devedor em recuperação judicial ofereça a seus credores pagamentos em monta menor do que o valor que os credores seriam capazes de receber com a distribuição do valor de liquidação da companhia.

 

Tanto isso é verdade que a legislação norte-americana, a qual serviu de inspiração para construção da Lei de Recuperação de Empresas e Falências, prevê o “best interests test” (teste de melhores interesses), segundo o qual, nos termos da seção 1129(a)(7) do Bankruptcy Code, o juízo só está autorizado a homologar o plano de recuperação judicial que garanta a todos os credores uma situação patrimonial superior àquela obtida com a liquidação do devedor. Como se nota, o dispositivo da legislação estadunidense segue sem paralelo no ordenamento pátrio.

 

De todo modo, primando por uma visão otimista, espera-se que a reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências ao menos sirva para dar ciência dos operadores do Direito acerca dessa problemática. Fala-se em otimismo também porque as disposições do Projeto de Lei nº 4.458/2020 têm escopo muito mais abrangente do que a questão aqui tratada — a reforma da legislação recuperacional oferece um leque maior de atuação ao devedor em busca da superação da crise, além de primar por maior segurança jurídica a todos os seus operadores.

 

É o propósito ínsito da recuperação judicial — preservar valor, e não meramente a empresa — que funciona como parâmetro mais adequado para aferir se determinada situação de embate deve ser decidida em favor do devedor ou do credor. Preservando-se o que é digno de ser preservado, o instituto da recuperação judicial tende a retomar o prestígio que lhe é devido.[:]

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