Fake news, ações coletivas de consumo e o problema da credibilidade da prova

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Julia Klarmann

Rodrigo Cantali

20/08/2020 – JOTA

 

Nos últimos meses, o Estado brasileiro tem se aprofundado em um tema de grande importância para a sociedade: o fenômeno contemporâneo das fake news tem demonstrado as amplas possibilidades de fraudes e de propagação de informações inverídicas, em especial, pela internet.

Em recente entrevista ao programa Roda Viva, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, comentou a respeito da tramitação do projeto de lei das fake news, enfatizando a necessidade de transparência e a necessidade de aceleração da tramitação do projeto; por outro lado, perante o Supremo Tribunal Federal, é conduzida uma investigação conhecida como “inquérito das fake news”, que vem dando margem para discussões sobre a existência e extensão de limites do exercício da liberdade de expressão.

Neste espaço, não se pretende ingressar propriamente nas discussões relativas ao projeto de lei ou ao inquérito das fake news, mas em tema reflexo: o problema da credibilidade de provas provenientes da internet. Mais especificamente: o problema da credibilidade de reclamações feitas contra fornecedores em plataformas online não-oficiais e a sua utilização como prova em ações coletivas de consumo. Tais provas não podem, por si só, gerar uma presunção de má-prestação de serviços.

A doutrina processual indica que “antes de o juiz estabelecer a ligação entre a prova e o fato, deve valorar a credibilidade da prova”, isto é, deve valorar, por exemplo, “se o documento é formalmente exato ou se o perito e a testemunha são idôneos, ou mesmo se a prova pericial e a prova testemunhal têm saliências que retirem a sua credibilidade”. Ao fim e ao cabo: “a credibilidade da prova tem relação com a sua idoneidade”.[1]

Ocorre que, muitas vezes, as reclamações em ambiente virtual, em plataformas não-oficiais, não são revestidas de mínimos requisitos de segurança e de confiabilidade. Isso porque, em tais plataformas não-oficiais, não existe garantia mínima de que as supostas reclamações, provenientes de fontes desconhecidas e sem o mínimo rigor do ponto de vista de controle de confiabilidade das informações lançadas, sejam verdadeiras e/ou tenham sido, de fato, realizadas por consumidores.

Com efeito, muitos desses sites não-oficiais, além de não possuírem competência legal para promover a defesa e a proteção de consumidores, não preveem procedimentos mínimos de registro de reclamações que assegurem mínima idoneidade quanto aos protestos lá veiculados.

Não há, por exemplo, garantia de que o suposto consumidor que elabora a reclamação de fato seja cliente do fornecedor indicado no registro. Muitas vezes, é possível registrar uma reclamação contra qualquer fornecedor sem que, para tanto, seja necessário informar, previamente, dados básicos de identificação – como número da carteira de identidade e CFP, por exemplo.

Prova disso é que, por vezes, é possível até mesmo a utilização de conta de usuário em redes sociais para a realização da reclamação – o que, como é intuitivo, proporciona a ocorrência de registros inidôneos e fraudulentos.

Ademais, em nenhum momento tais plataformas não-oficiais exigem que o consumidor comprove, previamente, a existência da relação de consumo com o fornecedor (por exemplo, com a informação do número de pedido, ou da nota fiscal de compra).

E, por serem unilaterais, não se pode distinguir um mero descontentamento de uma abusividade ou ilegalidade. Na realidade, diante da ausência de informações mínimas de identificação dos consumidores, os fornecedores se veem desprovidos de qualquer meio de identificação que lhes possibilite a verificação, em sistemas internos, daquilo que de fato ocorreu, para que possam apresentar defesa.

Não há garantia, portanto, de que reclamações registradas em tais plataformas não-oficiais tenham sido formuladas por efetivos consumidores, ou que, de fato, os problemas relatados realmente tenham sido suportados pelos reclamantes ou mesmo configurem ato ilícito.

Não bastassem todas essas questões que, por si só, já tornam – no mínimo – questionáveis tais reclamações (sob o ponto de vista da credibilidade da prova), muitas vezes elas são apresentadas em ações coletivas “em bloco” – isto é, apresentação de diversas reclamações, por meio de uma reunião imprecisa que mais uma vez inviabiliza a defesa pelo fornecedor, inclusive a respeito de conteúdo e veracidade de cada uma dessas reclamações.

Cada caso deve ser analisado singularmente, já que a simples apresentação de reclamação não configura, por si só, a prática infrativa. É, fundamental, aqui, que se analise juridicamente a existência de ato ilício, na simples medida em que a insatisfação do consumidor não configura prática ilícita por si só, sendo necessário analisar tal questão à luz das normas de defesa do consumidor.

Felizmente, há decisões judiciais que reconhecem que (i) reclamações realizadas nessas plataformas não-oficiais são feitas de forma livre pelo consumidor, no exercício do seu direito de livre expressão e manifestação, sem que se possa atestar a veracidade do alegado[2] e (ii) a reunião de diversas situações particulares em um único processo (“em bloco”) viola o direito ao contraditório e à ampla defesa, sendo dever tanto do autor de uma ação coletiva, quanto do órgão investigador em processos administrativos, a análise das peculiaridades de cada caso.[3]

No entanto, tais decisões ainda são esparsas – o que inclusive incentiva a continuidade do uso de tais ferramentas em ações coletivas. O que se combate, aqui, portanto, é a confiabilidade, a credibilidade de reclamações feitas em plataformas não-oficiais.

E veja-se que, no Brasil, existem diversos meios disponíveis aos consumidores para que apresentem reclamações sobre produtos e serviços prestados por fornecedores: ações judiciais individuais, reclamações perante Promotorias de Defesa do Consumidor, Defensoria Pública, ou órgãos que compõem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Programas de Proteção ao Consumidor – “Procon’s”), em especial, a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, vinculada ao Ministério da Justiça.

E, dentre tais órgãos, a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor – que tem, como uma de suas competências, o planejamento, a elaboração, a proposição, a coordenação e a execução da política nacional de proteção ao consumidor – já estabeleceu a plataforma digital oficial da Administração Pública Federal direta para autocomposição das controvérsias em relações de consumo: o consumidor.gov.br. Tal estabelecimento ocorreu por meio do Decreto nº 10.197/2020, publicado em janeiro deste ano.

A plataforma em questão disponibiliza meios de apresentação de resposta pelos fornecedores, na medida em que há indicação de dados suficientes de identificação, criando-se um ambiente de efetivo diálogo entre consumidor e fornecedor.

Isso, inclusive, vai ao encontro do estímulo que o Código de Processo Civil confere à solução de conflitos por meio extrajudicial – havendo, inclusive, decisões estabelecendo que o exercício do direito de ação[4] e a designação de audiência de conciliação[5] podem ser condicionados à prévia tentativa de solução do conflito através da referida plataforma.

Isso, no entanto, não é visto nas plataformas não-oficiais, que, como dito, não elencam mínimas formalidades para garantir a veracidade das informações veiculadas e permite o anonimato dos reclamantes. A partir disso, questiona-se em que medida a apresentação de reclamações de sites não oficiais possui credibilidade como prova, ao passo que o próprio órgão que rege o Sistema Nacional de Direito do Consumidor disponibiliza ferramenta própria para esse mesmo fim – esse sim com características mais adequadas à efetivação de um diálogo entre consumidor e fornecedor.

Se o fenômeno contemporâneo das fake news – que, repita-se, tem demonstrado a ampla possibilidade de propagação de informações inverídicas, incompletas ou inexatas – suscita tamanha repercussão e participação das autoridades e da população, como referido na introdução desse texto, deve-se então também fomentar o debate quanto à credibilidade e à força probatória de reclamações feitas em plataformas virtuais não-oficiais, de modo a permitir o diálogo entre as partes integrantes do processo.

 


[1] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil, v. 2. São Paulo: RT, 2015, p. 429-431.

[2] Exemplificativamente: “A imputação de inadimplemento nas proporções defendidas pelo Ministério Público não encontra fundamento em ocorrências confiáveis, visto que as reclamações na internet são realizadas de forma livre pelo consumidor exercendo o seu direito de livre expressão e manifestação, sem que se possa atestar a veracidade do alegado” (TJ/RJ, Agravo de Instrumento n.º 0016747-35.2014.8.19.0000, Rel. Des. Lindolpho Morais Marinho, 16ª Câmara Cível, j. 07/10/2014).

No mesmo sentido, ver TJ/SP, Apelação 0008083-50.2014.8.26.0572, Rel. Des. Antonio Tadeu Ottoni, 34ª Câmara de Direito Privado, j. 27/04/2016, DJe 04/05/2016.

[3] Exemplificativamente: “É nulo o processo administrativo que analisa várias reclamações formuladas por usuários distintos sujeitos à política de tarifação diferenciada, sem que a Administração verifique as peculiaridades de cada caso e as características de cada fatura de telefonia, pois, prejudica a defesa, violando os princípios do devido processo legal e a ampla defesa” (STJ, RMS 18.056/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/04/2009, DJe 19/05/2009).

[4] “APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSUAL CIVIL. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. PROJETO SOLUÇÃO DIRETA CONSUMIDOR. NÃO ATENDIMENTO DA DETERMINAÇÃO JUDICIAL. EXTINÇÃO DO FEITO MANTIDA. Hipótese em que a parte autora, instada a buscar prévia resolução extrajudicial, por meio do projeto “Solução Direta Consumidor”, não atendeu à determinação judicial. Suspensão do processo e uso do sistema alternativo que se apresenta como instrumento necessário no contexto atual da busca de meios e formas de (des)judicializar questões de menor complexidade, e que não causam maior repercussão na estrutura do tecido social, reservando ao sistema de Justiça melhores e maiores condições para o enfrentamento daqueles litígios que necessitam sim, pela sua magnitude, a intervenção do aparato judicial. Precedentes jurisprudenciais. Recusa injustificada na adoção do método extrajudicial para resolução do conflito que caracteriza a falta de interesse processual. Sentença de extinção, sem resolução do mérito, mantida. RECURSO DESPROVIDO.” (TJ/RS, Apelação Cível, Nº 70083955641, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em: 18-03-2020)”

[5] “AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ATO JURÍDICO, DEVOLUÇÃO DE VALORES COBRADOS INDEVIDAMENTE EM DOBRO E DANOS MORAIS. DECISÃO QUE SUSPENDEU A DEMANDA PELO PRAZO DE 30 (TRINTA) DIAS PARA QUE A PARTE AUTORA PROMOVESSE O REGISTRO DE SEUS PEDIDOS NA FERRAMENTA DENOMINADA “CONSUMIDOR.GOV.BR”, SOB PENA DE DESISTÊNCIA DE DESIGNAÇÃO DE FUTURA AUDIÊNCIA CONCILIATÓRIA. PLATAFORMA QUE VISA ESTIMULAR A SOLUÇÃO CONSENSUAL DO LITÍGIO. DECISÃO ESCORREITA. Consoante definiu o Supremo Tribunal Federal “a instituição de condições para o regular exercício do direito de ação é compatível com o art. 5º, XXXV , da Constituição. Para se caracterizar a presença de interesse em agir, é preciso haver necessidade de ir a juízo” (RE n. 631.240, rel. Min. Roberto Barroso, j. em 16-12-2016). A sociedade não deve esperar ou depender apenas da tutela jurisdicional para buscar a solução de conflitos, mormente no contexto da realidade sociopolítico-econômica brasileira e do aumento da quantidade de conflitos submetidos ao Poder Judiciário (Watanabe, Kazuo). RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.”  (TJ/SC, Agravo de Instrumento n. 5009621-92.2020.8.24.0000, de TJSC, rel. JANICE GOULART GARCIA UBIALLI, 4ª Câmara de Direito Comercial, j. 07-07-2020).

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