Pontos controversos na tributação do consumo

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Pedro Demartini e João Paulo Velkis Bio

03/08/20 – JOTA

 

Impactos negativos na aplicação do princípio da não-cumulatividade e na competitividade internacional

O presente cenário global exige, mais do que nunca, que os países estejam integralmente inseridos nas cadeias produtivas internacionais, e que tenham sistemas tributários eficientes que não representem uma desvantagem competitiva em relação a seus parceiros comerciais.

Ainda que a definição das características do sistema tributário esteja sujeita à soberania de cada país, que pode alterar alíquotas e criar tributos segundo a ordem constitucional vigente, impõe-se que um sistema tributário favoreça – ou ao menos não prejudique – a inserção de uma nação soberana na economia global.

E as escolhas políticas, tomadas dentro do âmbito soberano de uma nação, devem considerar não só fatores internos, mas também o impacto dessas escolhas na competitividade do país na economia internacional.

Nesse contexto, adotando-se como premissa o fato de que são objetivos da República Federativa do Brasil a garantia do desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza[1], o sistema tributário brasileiro deve sempre buscar a eficiência, inclusive arrecadatória e fiscal. Do contrário, torna-se difícil – e talvez impossível – o alcance de um nível de prosperidade que garanta a consecução desses objetivos.

Feitas essas considerações iniciais, importa dizer que uma das grandes questões tributárias nacionais é a tributação do consumo, principalmente no que diz respeito ao ICMS, que, além de ser relevante fator causador de regressividade do sistema tributário brasileiro, onerando em maior proporção as pessoas de baixa renda, acaba por prejudicar a competitividade do Brasil no comércio internacional.

Dentre muitas vertentes, abordaremos neste artigo a produção de bens e serviços com maior valor agregado e as cadeias produtivas mais longas. Tais questões, que confrontam o princípio da não cumulatividade do imposto, são endereçados em propostas de reforma tributária em tramitação, em que pese a solução dos problemas tratados não depender de reforma constitucional.

Quanto à estrutura da não cumulatividade do ICMS, importante lembrar que permite ao contribuinte creditar-se apenas do imposto pago nas aquisições quando esta aquisição houver sido absorvida pelo processo produtivo da empresa – fala-se em absorção do “insumo” no produto final ou, ao menos, desgaste dessa aquisição no processo produtivo.

Assim, uma empresa que fabrica equipamentos médicos, por exemplo, poderá abater (do ICMS devido) o valor do ICMS pago nas aquisições das peças componentes dos equipamentos fabricados. Por outro lado, bens adquiridos que não sejam, de algum modo, absorvidos pelos equipamentos fabricados, não darão direito a crédito de ICMS, ainda que na nota fiscal de aquisição haja ICMS destacado.

Esta sistemática de “crédito físico”, no exemplo dado, causará empecilhos para que aquisições de materiais como graxa e fluidos, utilizados no processo industrial, gerem um crédito do imposto a ser pago, causando um “efeito cascata”, prejudicial especialmente às cadeias longas de produção, bem como à competitividade do produto industrial brasileiro nas exportações.

A sistemática do crédito físico, como bem apontou Isaias Coelho[2], é tão antiquada que atualmente só existe no Brasil, na Costa Rica e no Haiti. Nos países que adotam o IVA, vige a sistemática do crédito financeiro, o qual permite a tomada de créditos do imposto pago em todas as aquisições da empresa, independentemente de ter ocorrido, ou não, a absorção do produto no processo produtivo.

Além de evitar a tributação em cascata, prejudicando a não cumulatividade necessária à tributação do consumo, poupa-se tinta da caneta de advogados e demais integrantes da comunidade jurídica, despendida em longas discussões sobre se uma aquisição teria de fato sido absorvida pela produção da empresa.

A mudança do sistema de crédito físico para crédito financeiro depende de alteração em lei complementar – o que, a propósito, já se tentou no Brasil. A própria Lei Complementar 87/1996 teria, em seu artigo 20, solucionado a questão e instituído a regra do crédito financeiro.

Entretanto, a possibilidade de aplicação integral desse artigo foi sucessivamente prorrogada por leis posteriores e, recentemente, também pela Lei Complementar 171/2019. Desta vez, estabeleceu-se que o sistema do crédito financeiro somente terá lugar a partir de 2033 (sic!).

Essa alteração, aliás, deu-se em momento no qual eram candentes as discussões acerca da necessidade de uma reforma tributária e das medidas que incentivassem a tão necessária retomada do crescimento econômico.

Outra questão do ICMS brasileiro prejudicial aos exportadores é o acúmulo de créditos. Sendo as exportações isentas do recolhimento do ICMS, mas havendo aquisições do exportador com ICMS destacado, em regra, acumular-se-á crédito do imposto.

A utilização deste saldo credor acumulado é, geralmente, limitada a compensações nas operações internas. Dessa forma, fica evidente o viés anti exportador do ICMS brasileiro, já que a empresa que se dedica principalmente à fabricação de bens para exportação estará fadada a também exportar imposto, sem restituição do ICMS destacado em suas aquisições.

Ademais, além da limitação ao aproveitamento de créditos do imposto em operações internas, os Estados costumam apresentar empecilhos para esse aproveitamento interno.

Recente estudo da Confederação Nacional da Indústria aponta que os 10 maiores estados exportadores limitam a compensação do crédito acumulado pelas empresas exportadoras[3].

O estudo aponta, ainda, que uma a cada três empresas exportadoras não consegue ressarcir-se do crédito de ICMS acumulado, pois os Estados, ainda que reconheçam o direito ao aproveitamento do crédito acumulado, impõem restrições e requisitos que, na prática, limitam o aproveitamento.

Essa questão seria solucionada se nos espelhássemos nos países, em sua grande maioria desenvolvidos, que utilizam a tributação do consumo tipo IVA, tal como o Reino Unido.

Nesses países, ocorre a pronta restituição de saldos credores – devolução em dinheiro quando não é possível a compensação com operações posteriores – em até 30 dias corridos, contados da entrega da declaração do imposto. Nesses países, as restituições, que são principalmente decorrentes de exportações, representam em média 33% da arrecadação bruta do imposto[4].

Parece utópico imaginar que, no Brasil, há alguns anos imerso em crises financeiras e fiscais, 33% da arrecadação bruta do ICMS seria prontamente devolvida aos contribuintes. Todavia, essa medida é essencial para o aumento das exportações e para o crescimento econômico do país que, em parte, acaba por gerar aumento das receitas tributárias dos Estados.

Tal como se encontra, o ICMS prejudica especialmente as exportações e os produtos brasileiros de alto valor agregado, que dependem de cadeias de produção complexas.

Dessa forma, quanto maior a cadeia produtiva, mais danoso será o efeito cascata e mais imposto será “exportado”. Há também outros pontos além dos dois ora tratados, mas entendemos que já seria grande avanço a adoção de um sistema de crédito financeiro, iniciando pela desoneração das exportações.

Apesar de as atuais propostas de reforma tributária terem em comum a simplificação e a desburocratização como principais atrativos, fato é que as boas intenções por trás das propostas apresentadas não bastam para garantir estabilidade na transição do ajuste fiscal.

É essencial que os legisladores atentem para questões diretamente relacionadas ao crescimento econômico local e não apenas para futuros investimentos externos. E isso pode ser realizado a partir de uma grande reforma, ou por meio de micro reformas que possam sanar pontos sensíveis como os apontados no presente ensaio.

Nenhum sistema tributário pode ser considerado perfeito. No entanto, diante da premente necessidade de o Brasil ser mais competitivo junto a seus parceiros comerciais, não podemos seguir inertes perante um sistema tributário arcaico, que proporciona desvantagens competitivas e impactam diretamente o nosso desenvolvimento econômico-social.

Por isso, a adoção no Brasil das melhores práticas do IVA representaria importante passo em direção ao ciclo de desenvolvimento que a combalida economia brasileira tanto necessita.

 


[1] Artigo 3º da Constituição Federal.

[2] COELHO, Isaias. Um Novo ICMS – Princípios para a Reforma da Tributação do Consumo. In: Revista RCBE, n. 30-49, 2014.

[3] Disponível aqui.

[4] COELHO, Isaias. Op. Cit.[:]

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