Senacon ajuda a unificar entendimentos sobre direito do consumidor na Covid-19

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29/08/2020 – CONJUR

 

Desde o segundo bimestre de 2020, a propagação da Covid-19 impactou diversas relações jurídicas. Entre elas, há de se destacar o forte impacto às relações de consumo dos mais diversos setores: varejo, aviação e turismo, entre outros.

 

Nesse período de calamidade pública, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, passou a exercer assertivamente um papel fundamental no direcionamento das relações de consumo, editando notas técnicas e portarias, bem como efetuando acordos com os fornecedores, não só com o intuito de assegurar e preservar os direitos dos consumidores, mas também para garantir a viabilidade e continuidade das atividades econômicas — tão afetadas pela crise — por parte dos fornecedores.

 

Esse papel adotado pela Senacon acabou por reforçar a importância diretiva do órgão para uniformização de entendimentos sobre direito do consumidor.

 

É comum verificarmos diferentes órgãos pertencentes ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) proferirem entendimentos e interpretações divergentes sobre normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor. A ausência de harmonização quanto às normas consumeristas dificulta uma padronização de condutas pelos fornecedores que atuam em âmbito nacional, o que, por sua vez, gera insegurança jurídica e pode acarretar multas administrativas exorbitantes aos fornecedores.

 

Essa dificuldade de uniformização e harmonização dos entendimentos se dá especialmente em razão da complexidade da composição do SNDC que, segundo o Decreto nº 2.181/97, é um sistema integrado de proteção ao consumidor, cujo objetivo final é a implementação de políticas de proteção do consumidor, assim como a operacionalização da fiscalização e a autuação de infrações a regras consumeristas.

 

Dentro dessa lógica, o SNDC autoriza que sejam criados órgãos federais, estaduais e municipais de defesa do consumidor (os Procons), o que faz com que cada território possua órgãos próprios capazes de fiscalizar o cumprimento da legislação consumerista — órgãos esses que acabam, muitas vezes, por definir seus próprios entendimentos sobre temas e normas de direito do consumidor.

 

Apesar de tais órgãos descentralizados atuarem em cooperação de forma horizontal, o Decreto nº 2.181/97 instituiu ainda que a Senacon é o órgão responsável exclusivo pela coordenação do SNDC, podendo, inclusive, expedir atos normativos com objetivo de direcionar a fiel observância das normas de proteção ao consumidor.

 

Dessa forma, tem-se que a Senacon possui atribuições específicas, como a competência para elaborar notas técnicas para subsidiar o SNDC em temas de sua competência e para direcionar os entendimentos a serem adotados por todos os órgãos que compõem SNDC.

 

Nessa esteira, há de se observar que a possibilidade de criação de diversos órgãos subsidiários de defesa do consumidor não pode ser sinônimo de salvo-conduto para entendimentos antagônicos entre os órgãos, que ao fim e ao cabo pertencem ao mesmo sistema de proteção e, portanto, devem adotar entendimentos uniformes.

 

Nesse aspecto, é fato que, durante a pandemia, a Senacon assumiu efetivamente o exercício que lhe é legalmente atribuído, trazendo diversas diretrizes ao sistema de proteção, por meio de atos normativos que englobam diversos ramos da atividade econômica. Por meio desses atos, a Senacon buscou assegurar e garantir direitos dos consumidores e dos fornecedores, em paralelo à padronização de medidas e regras a serem seguidas pelos fornecedores.

 

Não é demais lembrar que a pandemia ocasionou um cenário jamais visto, em que se fez necessário o fechamento de estabelecimentos físicos de serviços considerados não essenciais e a implantação do distanciamento social em todo o país, a fim de evitar a propagação do coronavírus. Isso, por sua vez, fez com que fornecedores fossem obrigados a readequar totalmente seus métodos de prestação de serviços e de comercialização de produtos.

 

Por óbvio, essas medidas afetaram os consumidores e os fornecedores em proporções também jamais vistas, razão pela qual a Senacon executou papel fundamental, ao expedir orientações e recomendações aos diversos órgãos de proteção às normas consumeristas, com o objetivo de uniformizar as condutas permitidas pelos fornecedores e as normas que deveriam ser flexibilizadas em tempo de pandemia — evitando-se, assim, ainda mais discussões, inclusive em âmbito judicial, quanto à atuação dos órgãos de defesa do consumidor espalhados pelo país.

 

Observado esse cenário, e à luz das determinações expedidas, vê-se que não foram poucos os temas debatidos pela Senacon [1] ao longo do período de pandemia — e até o momento da publicação deste artigo —, em diferentes setores econômicos, que exercem papel significativo no direcionamento das relações de consumo.

 

A Nota Técnica nº 8/2020 foi apresentada como um “guia orientativo para exame de abusividade na elevação dos preços dos diversos produtos e serviços que podem ser afetados em virtude da pandemia do coronavírus”, sugerindo a análise de determinados critérios que alteram o equilíbrio do mercado.

 

A Senacon destacou, em tal nota técnica, que momentos de crise podem ocasionar o aumento da demanda, considerado o temor pela ausência de abastecimento, bem como a diminuição da oferta de produtos, o que justificaria o aumento de preços. A nota técnica destacou, ainda, que o mercado brasileiro é regido pela Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), mas que o Estado deve intervir para manter o equilíbrio com as normas consumeristas. Apenas depois de efetuada a análise do caso específico, caso reste comprovado que houve o aumento do preço sem “justa causa”, a empresa infratora estaria sujeita ao pagamento de multa administrativa.

 

A nota técnica em questão teve considerações significativas e indispensáveis para a harmonização das decisões proferidas pelos órgãos do SNDC em decorrência do aumento de preços no momento de pandemia, demonstrando a responsabilidade de referidos órgãos em agir de forma ativa para evitar os aumentos abusivos e propositais, com as respectivas penalidades — mas também ressaltando critérios que devem ser considerados na análise de tais situações, na medida em que o mero aumento de preço não significa, por si só, prática abusiva, devendo ser respeitadas as dificuldades impostas pela pandemia para a prestação dos serviços e produtos, como eventuais faltas de matérias-primas e o aumento da busca por determinados produtos.

 

Ainda, a Nota Técnica nº 14/2020 abordou os contratos com instituições de ensino que tiveram aulas presenciais suspensas em razão da pandemia. A Senacon concluiu que, diante da discussão sobre a concessão de descontos ou suspensão de contratos em decorrência da ausência de aulas presenciais, a melhor alternativa seria a prestação alternativa do serviço com qualidade equivalente ou semelhante à contratada: I) postergando aulas presenciais, com a modificação do calendário letivo e de férias; e II) oferecendo-se aulas à distância, respeitadas as cargas horárias mínimas e cumprimento do conteúdo estabelecido pelo Ministério da Educação. Nessas hipóteses, a orientação da Senacon foi no sentido de não haver justificativa para a redução de mensalidades, postergação do pagamento ou cancelamento do negócio jurídico.

 

A Nota Técnica nº 26/2020, por sua vez, trouxe atualizações sobre o tema, considerando imprescindível que os órgãos de proteção ao consumidor realizem articulações para definição de padrões mínimos de qualidade de ensino conforme a legislação vigente, bem como orientando que as instituições de ensino estabeleçam um canal de comunicação permanente e direto com pais, responsáveis e alunos. Em contrapartida, a nota técnica expressou o entendimento de que não há obrigatoriedade de concessão de descontos, e que eventuais concessões devem ser analisadas de acordo com o caso concreto.

 

Apesar da orientação da Senacon a respeito da ausência de justificativa para obrigatoriedade de redução de mensalidades, o Procon/SP adotou entendimento contrário, no sentido de que “deve ser oferecido um percentual de desconto na mensalidade escolar, cujo valor pode ser proposto pela própria instituição, de acordo com sua situação econômico-financeira” [2]. Esse exemplo demonstra claramente a complexidade do SNDC e a insegurança jurídica gerada a partir da ausência de entendimentos uniformes pelos órgãos que integram o sistema.

 

No que tange ao setor aéreo, um dos segmentos mais atingidos pela pandemia, a Senacon celebrou termo de ajustamento de conduta (TAC) com o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, a Associação Brasileira das Empresas Aéreas e com as companhias aéreas atuantes em território brasileiro, visando a equilibrar os direitos dos consumidores com as dificuldades da manutenção da atividade econômica das companhias aéreas neste período.

 

Referido TAC se tornou o principal instrumento regulador do setor aéreo no período de crise, pois normatizou os direitos dos consumidores e os deveres das companhias aéreas durante a pandemia, flexibilizando as regras de cancelamento e remarcação previstas na Resolução nº 400/2016 da Agência Nacional de Aviação Civil, bem como de assistência material em caso de fechamento de fronteiras, instituindo ainda, a plataforma Consumidor.gov como principal meio de solução consensual de conflitos. É fundamental, de todo modo, que todo o SNDC observe as obrigações previstas no TAC, para que não haja entendimentos sem uniformidade envolvendo o tema.

 

Por fim, cabe destacar que, no dia 8 do mês passado, foi publicado o Decreto nº 10.417/2020, por meio do qual foi criado o Conselho Nacional do Consumidor, que tem como finalidade assessorar o Ministério da Justiça e Segurança Pública no gerenciamento de políticas nacionais de defesa do consumidor, bem como propor aos órgãos do SNDC recomendações e interpretações da legislação consumerista que garantam segurança jurídica e previsibilidade.

 

Ainda que tais recomendações e interpretações possuam apenas caráter recomendatório, a observância de tais orientações é de fundamental importância para que não haja entendimentos divergentes entre órgãos de defesa do consumidor.

 

Fato é que, diante da relevância dos temas tratados pelo SNDC, é evidente a relevância do papel de coordenação da Senacon, em especial por meio da edição de recomendações sobre a legislação consumerista em decorrência da pandemia do Covid-19. A partir da observância de tais orientações, é possível cogitar-se de alguma segurança jurídica aos fornecedores e evitar, assim, processos sancionatórios originados de entendimentos contraditórios entre os órgãos do SNDC.[:]

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