Renovabio: os incentivos e os impactos sobre a cadeia de combustíveis

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Clarissa Leão

21/07/20 – JOTA

 

Em 2016, o Brasil se tornou signatário do Acordo de Paris, ficando vinculado a compromissos internacionais de redução de gases do efeito estufa. Buscando atingir os objetivos internacionalmente firmados, em 2017, foi editada a Lei nº 13.576, instituindo a Política Nacional de Biocombustíveis (“RenovaBio), enfocando na expansão da produção, aumento da eficiência e uso de biocombustíveis na matriz energética brasileira. A referida norma objetivou o cumprimento das metas estabelecidas para o país no Acordo de Paris, com especial enfoque na expansão da produção, aumento da eficiência e uso de biocombustíveis na matriz energética brasileira.

 

O que é o Renovabio e como funciona?

O Renovabio desenha um sistema de incentivos para a substituição dos combustíveis fósseis por biocombustíveis. Esse sistema, instituído inicialmente pela Lei n.º 13.567/2017, foi posteriormente detalhado com a edição do Decreto nº 9.888/2019, da Portaria Ministério de Minas e Energia nº 419/2019 e da Resolução da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustível nº 802/2019.

Em resumo, os distribuidores de combustíveis estarão obrigados a cumprir determinadas metas de substituição de combustíveis fósseis em seus portfófilios, através da aquisição de certificados negociados por agentes emissores (produtores e importadores).

A figura 1 explica de forma mais clara o funcionamento desta política pública.

renovabio - emissor primario - distribuidor

No sistema criado, uma das principais inovações é a criação de um mercado de ativos financeiros para a comercialização dos Créditos de Descarbonização (CBIOs), que permitirá que o distribuidor cumpra sua meta individual de redução de emissões considerando uma nova ferramenta.  Além da gestão do seu portfólio físico de combustíveis e a efetiva substituição, o distribuidor deverá adquirir CBIOs no mercado para atingimento das metas anuais estabelecidas por agente de acordo com sua participação no mercado de combustíveis. Criou-se um incentivo econômico à substituição, mas não uma proibição: não há vedação à compra e venda de combustíveis fósseis pelos distribuidores, mas estímulo a comportamentos que levam à sua substituição gradual pelos biocombustíveis.

 

Os combustíveis alcançados:  os possíveis substitutos

Considerando a finalidade da norma – reduzir as emissões por meio do segmento de distribuição de combustíveis- ao olhar para a regulação vigente, constata-se que, pela forma como foi atualmente desenhada, seu efeito inicialmente se dará sobretudo na emissão decorrente do setor de transportes, vez que neste setor já ocorre há alguns anos um processo de produção de motores que permite a substituição dos tradicionais combustíveis fósseis por etanol, biodiesel e biometano.

Esse efeito decorre não apenas do desenho que se adotou para a política pública, mas também do próprio conceito de biocombustível (os substitutos possíveis) introduzido pela Lei nº 9.478/97[1] e regulamentado pela ANP, que engloba: i) biometano; ii) biodiesel; iii) etanol; e iv) biocombustíveis de aviação.

A aplicação (a princípio) restrita a tais biocombustíveis também limita o alcance da política pública em um primeiro momento e já estão sendo levantadas algumas discussões sobre sua ampliação para outros nichos da cadeia, que não foram contemplados.

 

Os incentivos e os impactos sobre as diferentes etapas da cadeia

Ainda, pela forma como está regulada atualmente, o RenovaBio tem impactos diferentes sobre os agentes da cadeia. Como se pauta na substituição de combustíveis fósseis pelos distribuidores, os agentes inicialmente alcançados pela política são os da cadeia de fornecimento do respectivo combustível. Os consumidores finais que comprem diretamente do produtor, por exemplo, não estão – a princípio – contemplados na política.

Do ponto de vista do emissor primário (produtor ou importador), trata-se de um incentivo relevante ao aumento de sua produção/importação, uma vez que poderá comercializar separadamente também os CBIOs. Ao mesmo tempo, além do incentivo a aumentar sua produção, também terá incentivos a melhorar a eficiência de seu combustível, permitindo a elevação de sua NEEA/L (métrica utilizada para calibrar o número de CBIOs correspondentes). O importador, por sua vez, terá incentivos para aumentar sua importação e importar do agente mais eficiente, pois isso significará maior NEEA/L.

Do ponto de vista do distribuidor, embora não haja qualquer óbice direto à venda de combustíveis fósseis, caso opte por seguir realizando tais vendas, para cumprir sua meta de emissões precisará comprar CBIOs. Dessa forma a não substituição poderá ocasionar o repasse desse custo ao preço do combustível fóssil comercializado. Portanto, em última instância e respeitadas as regras de transição, o RenovaBio pode levar a uma elevação do preço dos combustíveis fósseis vendidos por distribuidores, pela internalização da externalidade das emissões.

Do ponto de vista do consumidor final, como esse agente não está inserido no mercado de CBIOs e não ganha – diretamente – com a compra e venda de CBIOs, este poderá ser beneficiado na medida em que conseguir substituir combustíveis fósseis por biocombustíveis em seu equipamento/veículo. Isto é, o consumidor final será beneficiário do RenovaBio pela substituição, na medida em que não ficará exposto a um aumento potencial de preços dos combustíveis fósseis, ao mesmo tempo em que o aumento da oferta de biocombustíveis poderá levar a redução de preços dos biocombustíveis. Logo, para o agente final da cadeia, o RenovaBio somente terá efeito positivo caso haja possibilidade de reversão de seu modelo de negócio para operar com biocombustíveis.

O emissor primário é, portanto, o agente mais beneficiado pela política pública em questão. Isso porque: i) é o responsável direto pelo aumento da produção/importação, cabendo somente a ele efetivamente aumentar a oferta de biocombustíveis no mercado brasileiro; ii) é diretamente beneficiado com a venda de CBIOs, com a venda no mercado de um ativo em relação ao qual estabeleceu-se uma demanda mínima obrigatória (qual seja a meta de aquisição anual fixada para as distribuidoras).

A perspectiva, portanto, é de que haja um aumento da produção de biocombustíveis direcionada ao mercado das distribuidoras influenciada pela possibilidade de comercialização também dos CBIOs na bolsa.

 

Reflexões para o futuro e Dificuldades Ocasionadas pela Crise de Saúde Pública gerada pela Covid-19

De todas estas considerações, algumas questões interessantes devem ser suscitadas.

A primeira é que, considerando o caminho dado à política pública e sua condução pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, houve, ao menos neste momento, a exclusão de agentes que poderiam ser afetados pela política pública se a mesma fosse também regulamentada, por exemplo, pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).

Explica-se: enquanto a ANP considera biocombustível somente etanol, biodiesel, biocombustível automotivo e biometano, a ANEEL detém um conceito mais amplo, que, pela etimologia da palavra biocombustível – insumo de origem orgânica, natural ou vegetal, que se consome por combustão – poderiam ser afetados pela política pública agentes do setor elétrico que utilizem como fonte: i) origem florestal (madeira, principalmente); ii) origem agrícola (soja, arroz e cana-de-açúcar, entre outras); e iii) rejeitos urbanos e industriais (sólidos ou líquidos, como o lixo)[2].

Tal questão já está sendo endereçada pela Câmara dos Deputados, onde tramita o Projeto de Lei nº 292/2020[3], que pretende criar um programa de redução de emissões no setor elétrico brasileiro com metas de redução de 1,2% ao ano, que poderá ocorrer pela redução direta do gerador termelétrico ou através de compensação por meio de compra de créditos e investimentos em projetos com fontes solar, eólica, geotérmica, energia dos oceanos e biomassa.

A segunda questão é o imperativo de considerar os efeitos da Pandemia de Saúde causada pela Covid-19 sobre o setor de biocombustíveis. Se por um lado houve otimismo no segmento em virtude do início de comercialização dos CBios na B3 ao final de abril[4], por outro, as medidas de isolamento social implementadas levaram à forte queda na demanda por combustíveis.

Nesse sentido, o cenário é de dificuldade do mercado de biocombustíveis pois: i) a queda na demanda/consumo leva à redução dos preços dos combustíveis fósseis, tornando-os mais competitivos frente aos biocombustíveis; ii)  o uso da biomassa para a produção de biocombustível se torna menos vantajosa em virtude da baixa de preços, isso pode levar os agentes à voltarem sua produção à outros produtos finais, a exemplo do açúcar que se torna opção ao etanol. Estima-se que ¼ dos empreendimentos sucroalcoleiros[5] – responsáveis pela produção do etanol – poderão parar de funcionar em função da crise. Atento às peculiaridades causadas pela crise, o Ministério de Minas e Energia já anunciou[6] que rediscutirá as metas de descarbonização estabelecidas, o que pode indicar uma desacelerada no mercado de CBIOs. É preciso observar quais serão os efeitos da COVID sobre o ainda incipiente mercado de créditos de descarbonização.


[1] Art. 6º. XXIV – Biocombustível: substância derivada de biomassa renovável, tal como biodiesel, etanol e outras substâncias estabelecidas em regulamento da ANP, que pode ser empregada diretamente ou mediante alterações em motores a combustão interna ou para outro tipo de geração de energia, podendo substituir parcial ou totalmente combustíveis de origem fóssil; (Redação dada pela Lei nº 12.490, de 2011)

[2] ANEEL. Atlas de Energia Elétrica do Brasil. Parte II – Fontes Renováveis. Capítulo 4: Biomassa. Disponível aqui.

[3] Mais informações: (link)

[4] MME. “B3 inicia comercialização do Crédito de Descarbonização do RenovaBio”. Disponível aqui.

[5] Estadão. “Um quarto das usinas do País pode fechar as portas”. Disponível aqui.

[6] MME. “Nota do Ministério de Minas e Energia sobre as Metas de Descarbonização do RenovaBio”. Disponível aqui.[:]

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