Sociedade limitada composta por dois sócios, exclusão extrajudicial e Lei 13.792/2019

[:pt]

Luis Felipe Spinelli
JOTA
16/01/2019

Lei é mais um ataque legislativo ao Direito Societário brasileiro

Muito já se discutiu, no Brasil e no exterior, sobre a possibilidade de exclusão de sócio por falta grave (ou seja, que descumpre com seus deveres de sócio) em sociedades com somente dois sócios.

A controvérsia perdeu força gradualmente à medida em que os diferentes ordenamentos jurídicos passaram a aceitar a sociedade unipessoal ainda que temporariamente. No Brasil, com a entrada em vigor da Lei 6.404/76, que se aplicava às sociedades limitadas diante do previsto no art. 18 do Decreto 3.708/19, passou-se a aceitar, quase sempre em nome do princípio da preservação da empresa, a exclusão de sócio em sociedade somente com dois quotistas, determinando-se que a pluralidade de sócios fosse reconstituída no prazo previsto no art. 206, I, “d”, da Lei das S.A.

E a questão foi sepultada de vez com o Código Civil (e suas modificações – nem sempre felizes – posteriores), o qual permite a sociedade unipessoal superveniente de modo temporário (1033, IV) bem como a transformação da sociedade em EIRELI (art. 1033, parágrafo único, e art. 980-A, §3º) ou a conversão em empresário individual (art. 1033, parágrafo único). Hoje, é pacífico ser viável a exclusão de sócio (bem como qualquer outra hipótese de dissolução parcial) em sociedade formada somente por dois membros.

De qualquer sorte, permanece vivo o debate em torno da forma de exclusão – o que foi reanimado pela promulgação da Lei 13.792/2019.

Quanto à via judicial, é a exclusão aceita nos termos do art. 1030 do CC – apesar de que a ação de exclusão em sociedade com dois sócios, especialmente se a participação for igualitária, ser algo moroso e com uma série de entraves jurídicos (como os decorrentes do procedimento de dissolução parcial do Código de Processo Civil).

Muito mais eficiente é a realização de exclusão extrajudicial. E no que tange à via extrajudicial, a exclusão do sócio remisso (sócio que não realiza a parcela subscrita do capital social) é admitida em sociedade com somente dois sócios (arts. 1004 e 1058 do CC), ainda que a sociedade seja paritária (50%-50%), desde que respeitadas as formalidades necessárias à deliberação[1] – e nesse sentido dá a entender a Instrução Normativa DREI 38/2017.

Para a exclusão extrajudicial de sócio em caso de descumprimento de outros deveres (divulgação de informações confidenciais ou não realização de prestações acessórias contratadas, v.g.), o art. 1085 do CC admite tal modalidade nas limitadas desde respeitados certos requisitos: (i) previsão contratual e (ii) deliberação social, o que deve ser feito mediante (a) convocação para a assembleia ou reunião e comunicação ao excluendo, (b) sendo que a matéria deve constar da ordem do dia e (c) o conclave deve respeitar o método assemblear (conferindo o que o legislador chama de direito de defesa, ainda que o excluindo não vote diante do disposto no §2º do art. 1074) bem como todas as outras formalidades[2].

Tal dispositivo ainda prevê que a deliberação de exclusão deve ser tomada pela “maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social” (não sendo, portanto, permitida a exclusão do sócio majoritário: isso somente pode ocorrer judicialmente – e assim se afirma inclusive porque a Seção VIII do “Capítulo IV – Da Sociedade Limitada”, no qual está inserido o art. 1085, refere, expressamente, à “resolução da sociedade em relação a sócios minoritários”)[3].

O quórum previsto no Código Civil pode ser interpretado como exigindo uma dupla maioria para a resolução social: maioria do capital e maioria dos sócios por cabeça, o que inviabilizaria a exclusão extrajudicial em sociedades com dois sócios[4]. Em que pese a coerência dessa orientação (que permitiria, como regra, a exclusão em sociedades com dois sócios somente pela via judicial, como ocorre na Itália)[5], o entendimento que tem prevalecido é o de que o quórum de deliberação é o da maioria absoluta do capital social (50% do capital mais um)[6]– autorizando, então, a exclusão em sociedade limitada de dois quotistas, desde que não exista participação igualitária[7].

Assim, o excluendo possui o direito de voz – apesar de não votar –, podendo debater com os outros sócios (muito embora, no mais das vezes, a orientação de voto já chegue formada ao conclave) com a finalidade de exercer o direito de defesa e formar a vontade social, sob pena de invalidação do conclave. Tem o direito de fazer consignar sua manifestação, o que pode ser relevante em eventual discussão judicial posterior em que se busca reconhecer a arbitrariedade da deliberação.

Não seria possível a exclusão mediante a pura e simples assinatura de alteração contratual, o que representou uma alteração significativa em relação ao regime anterior!

Todavia, a Lei 13.792, publicada no DOU de 04/01/2019, alterou o parágrafo único do art. 1085 do Código Civil, determinando que a realização do conclave não seria necessária no “caso em que haja apenas dois sócios na sociedade”.

Ainda que a alteração legislativa busque maior eficiência e celeridade, deve-se questionar o motivo da diferenciação nas sociedades com dois sócios: se a competência para decidir a exclusão é dos sócios, por que não seguir o procedimento previsto em lei? Ainda, permitir a exclusão pelo consócio sem que o excluído seja sequer comunicado previamente nem possa apresentar seus argumentos parece pavimentar a possibilidade de exclusões arbitrárias e estimular litígios, além de ferir, talvez, um dos poucos avanços do Código Civil no regime das sociedades limitadas, que foi o das regras (ainda que criticáveis) das deliberações sociais. Lembre-se, também, que mesmo para as ME e EPP, em que a LC 123/06 flexibiliza as regras de deliberações sociais, o legislador exige o respeito às formalidades para os casos de exclusão. Finalmente, causa espécie tal exceção somente ser aplicada à exclusão extrajudicial prevista no art. 1085, ou seja, não ser aplicada à exclusão do sócio remisso ou a qualquer outra deliberação social em sociedades com dois sócios, representando mais uma alteração do sistema societário – e, o que é mais grave, em tema que afeta, justamente, o próprio direito constitucional de propriedade do sócio.

Em nossos sentir, a Lei 13.793/2019 é mais um ataque legislativo ao Direito Societário brasileiro. Assim, esperamos que além de o Poder Legislativo pátrio passe a tomar maior cautela (o que é extremamente importante nos tempos atuais, especialmente diante da perspectiva de um Código Comercial…), que a doutrina e a jurisprudência tenham a habilidade devida para interpretar o referido dispositivo de modo a conferir a tutela não só à sociedade – que pode, sim, sofrer os danos de um sócio faltoso – mas também ao consócio – que, por sua vez, pode sofrer sérios prejuízos diante de exclusões arbitrárias e de inopino.

___________________

[1] Assim entendendo no que tange à exclusão em sociedade paritária, mas sustentando que, tendo em vista a Lei 8.934/94 (art. 35, VI) (e o Decreto 1800/96, arts. 53, VII, e 54), que exige a assinatura da maioria do capital social para alteração contratual, não haveria como, na prática, realizar-se tal exclusão extrajudicialmente, mas somente de modo judicial, ver: LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 766-768.

[2] Sobre a análise do procedimento de exclusão extrajudicial, ver: SPINELLI, Luis Felipe. Exclusão de sócio por falta grave na sociedade limitada. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 314 ss.

[3] V.g.: ADAMEK, Marcelo Vieira von. Anotações sobre a exclusão de sócios por falta grave no regime do Código Civil. In: ____ (coord.). Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos – Liber Amicorum Prof. Dr. Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 185-215, p. 199; CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Sociedade limitada no novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2003, p. 105; CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil (arts. 1.052 a 1.195), v. 13. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 312-313; GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 442, 444-445; LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 745, 748; VIO, Daniel de Ávila. A exclusão de sócios na sociedade limitada de acordo com o Código Civil de 2002. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial). São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 195-196; TJSP, Apelação 0001200-77.2011.8.26.0286, Rel. Des. Ricardo Negrão, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 16/10/2012. Por sua vez, entendendo que do quórum de deliberação não deve ser computada a parte do capital do membro a ser excluído, possibilitando, inclusive, a exclusão do quotista majoritário (mesmo em sociedade com dois sócios), uma vez que o quórum de deliberação seria o da maioria do capital social remanescente, ver: VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial, v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 152 ss, 536-537.

[4] ADAMEK, Marcelo Vieira von. Anotações sobre a exclusão de sócios por falta grave no regime do Código Civil. In: ____ (coord.). Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos – Liber Amicorum Prof. Dr. Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 185-215, p. 204; FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 34-35, 43-44, 49.

[5] No Direito italiano, o art. 2.287, 3, do Codice Civile trata expressamente da exclusão de um sócio na sociedade de pessoas formada por apenas dois membros (confirmando, então, a admissibilidade de expulsão de sócio em sociedade constituída por duas pessoas, sendo que o art. 2.272, 4, autoriza que a sociedade permaneça com um único sócio pelo prazo de seis meses, sob pena de dissolução) e determina que o procedimento deve, excepcionalmente, ocorrer judicialmente (diferentemente do que ocorre nos demais casos, nos quais, via de regra, a exclusão ocorre de modo extrajudicial, mesmo porque, se assim não fosse, (i) a sociedade poderia restar paralisada, bem como (ii) tal orientação segue critério prático, uma vez que se considera que, na Itália, o quórum de deliberação para exclusão de sócio nas sociedade de pessoas é contado por cabeça. Cf. ACQUAS. L’esclusione del socio nelle società, cit., p. 162-163. Apesar disso, nas sociedades limitadas, considerando que o Codice Civile italiano (art. 2.473-bis) dispõe que os sócios são excluídos nas hipóteses previstas especificamente no contrato, sendo que o próprio contrato social deve regrar o procedimento de exclusão, há quem entenda, para evitar que o afastamento se dê extrajudicialmente inclusive nas sociedades com dois sócios (o que pode dar ensejo à chantagem, ainda mais porque o voto do sócio excluendo não compõe o quórum de deliberação), que o contrato social deve prever que, nessa situação, a exclusão ocorre de modo judicial ou por meio de arbitragem (à semelhança do previsto no art. 2.287, 3, do Codice Civile) (cf. FICO, Daniele. Lo scioglimento del rapporto societario: recesso, esclusione e morte del socio. Milano: Giuffrè, 2012, p. 169-170). No mesmo sentido caminha a Ley 19.550 argentina, no art. 93 (ver: VERÓN, Alberto Víctor. Sociedades comerciales, t. 2. Buenos Aires: Astrea, 1998, p. 183-185). Em Portugal, no que diz respeito à sociedade em nome coletivo, tem-se que o art. 186º, nº 3, do Código das Sociedades Comerciais dispõe que, nas sociedades com apenas dois sócios, a exclusão de qualquer deles deve se operar judicialmente quando tiver por fundamento violação grave das obrigações para com a sociedade (designadamente da proibição de concorrência prescrita pelo art. 180º, destituição da gerência com fundamento em justa causa consistente em fato culposo susceptível de ocasionar prejuízo à sociedade ou quando o sócio de indústria reste impossibilitado de prestar à sociedade os serviços a que ficou obrigado) (e, assim, permite que a exclusão ocorra extrajudicialmente, mesmo na sociedade com dois membros, em caso de interdição, inabilitação, falência ou insolvência); regra semelhante existe para as sociedades civis (Código Civil português, art. 1005º, 3). Já no que tange à sociedade por quotas, tendo em vista que o legislador não faz qualquer ressalva, há quem questione sobre a necessidade de sempre existir intervenção judicial para a exclusão nas sociedades formadas por somente dois membros, afirmando-se a possibilidade de exclusão extrajudicial (cf. CUNHA, Carolina. A exclusão de sócios (em particular, nas sociedades por quotas). In: IDET – Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho. Problemas do Direito das Sociedades. Coimbra: Almedina, 2003. p. 201-233, p. 231-232; NUNES, A. J. Avelãs. O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais. 1 ed. Reimpressão da ed. de 1968. Coimbra: Almedina, 2002, p. 299-301; sobre o tema: CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito das Sociedades, v. II (Das Sociedades em Especial). 2 ed. Coimbra: Almedina, 2007, p. 216, 334). Na Espanha, ao contrário, entende-se que mesmo nas sociedades com apenas dois sócios a exclusão se opera extrajudicialmente: a intervenção judicial só se faz necessária quando, de acordo com a regra geral, o sócio excluendo tenha mais de 25% do capital social e não esteja de acordo com a deliberação de sua exclusão (Ley de Sociedades de Capital, art. 352) (cf. SANTAS, Francisco Javier Framiñán. La exclusión del socio en la sociedad de responsabilidad limitada. Granada: Comares, 2005, p. 186-187). Por fim, na Alemanha, ao se tratar da exclusão nas sociedades de pessoas, afirma-se ser possível a exclusão extrajudicial (além da judicial) em uma sociedade com somente dois membros (ou em que reste somente um membro após a exclusão), e isso poderia se dar por meio de uma Übernahmeerklärung (declaração de transferência das participações sociais), sucedendo o sócio remanescente o empreendimento (SCHMIDT, Karsten. Gesellschaftsrecht, B. II. 4 Aufl. Köln: Carl Heymanns, 2002, p. 1.469-1.470; WIEDEMANN, Herbert. Gesellschaftsrecht, B. II. München: Beck, 2004, p. 417-420).

[6] V.g: CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Sociedade limitada no novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2003, p. 123; CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil (arts. 1.052 a 1.195), v. 13. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 313; GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 442, 444-445 (pese embora, à p. 412, fale em maioria dos demais sócios); LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 745, 748, 751, 757, 770 ss; VIO, Daniel de Ávila. A exclusão de sócios na sociedade limitada de acordo com o Código Civil de 2002. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial). São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 179-181. Na jurisprudência, afirmando que o quórum é o da maioria do capital social, ver: TJRJ, AC 0039474-92.2008.8.19.0001, Rel. Des. Jessé Torres, 2ª Câmara Cível, j. 24/03/2010. Ainda: o Manual de Registro de Sociedade Limitada (aprovado pela Instrução Normativa DREI 38/2017), nos itens 2.2.2.2 e 2.2.6.1, dispõe que o quórum é o da maioria do capital social.

[7] Tendo em vista que entende que o quórum de deliberação é tão somente o da maioria do capital social, Daniel Vio não vislumbra apenas a possibilidade de exclusão extrajudicial em sociedade com dois quotistas quando ambos detiverem 50% cada do capital social, além, é claro, do caso da exclusão do majoritário (cf. VIO, Daniel de Ávila. A exclusão de sócios na sociedade limitada de acordo com o Código Civil de 2002. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial). São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 194); igualmente, entre outros, ver: LUCENA, José Waldecy. Das sociedades limitadas. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 751, 757, 764 ss. E assim também caminha o Enunciado 17 da 1ª Jornada de Direito Comercial promovida pelo Conselho da Justiça Federal: “17. Na sociedade limitada com dois sócios, o sócio titular de mais da metade do capital social pode excluir extrajudicialmente o sócio minoritário desde que atendidas as exigências materiais e procedimentais previstas no art. 1.085, caput e parágrafo único, do CC.”.

[:]

Sou assinante
Sou assinante