Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos

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Jorge Cesa

20/03/2020 – JOTA

 

Ocorrência de caso fortuito e força maior como hipótese de isenção, mitigação e da execução de certos deveres

A recente declaração da Organização Mundial da Saúde de que a epidemia do novo coronavírus havia atingido o estágio de pandemia e o conjunto de efeitos que disso se seguiram no plano mundial – cancelamento de eventos, extensão de prazos, vedação de viagens, restrição de acesso a certos bens etc. – trouxe para a ordem do dia um tema jurídico tão antigo quanto globalizado: a ocorrência de caso fortuito e força maior como hipótese de isenção, ou de mitigação, da execução de certos deveres.[1]

 

No Brasil, o tema é objeto do art. 393 do Código Civil, segundo o qual:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.[2]

 

Apesar de antigas, as noções de caso fortuito e de força maior não são absolutamente delimitadas na doutrina. Pode-se arriscar a dizer que nunca se alcançou um consenso linguístico sobre o estrito significado de cada um desses termos.

 

Alguns autores sustentam ser caso fortuito o que outros classificam como força maior. Também se discute se ambas as expressões seriam sinônimas ou não e, por isso, se teriam os mesmos efeitos, como parece indicar o parágrafo único do art. 393 do Código Civil. Também se faz questionável se a aplicação do dispositivo estaria restrita àqueles referidos no caput do referido art. 393 ou se haveria outros efeitos aplicáveis.

 

Todas essas questões de ordem conceitual se mostram especialmente relevantes no presente momento, em que diversos casos passarão a ser analisados sob a ótica das excludentes. Por isso, é a essas questões básicas que se dedica este artigo.

 

1. Caso fortuito e força maior: o que são?

Ante a dificuldade de precisar o conteúdo jurídico exato de cada uma das expressões, “caso fortuito” e “força maior”, a doutrina majoritária costuma apontar tratar-se de expressões sinônimas.[3]

 

Parte-se do entendimento de que, sendo os mesmos os efeitos jurídicos em ambas hipóteses, não haveria motivo à diferenciação. A opinião contrária sustenta-se na possibilidade da existência de efeitos distintos, notadamente no âmbito da responsabilidade objetiva.

 

Apesar da aparente contradição, os argumentos das duas correntes são corretos, desde que devidamente alocados. É inegável que, para o efeito decorrente do art. 393 – a exclusão geral do nexo causal – tanto o caso fortuito, quanto a força maior são suficientes para afastá-lo, não havendo razão para diferenciações mais finas.

 

No entanto, é possível que a lei ou o contrato afastem algumas hipóteses excludentes, conservando outras. O Código de Defesa do Consumidor serve de prova: tem-se admitido a exclusão do nexo causal em casos de força maior, mas a mesma exclusão não ocorre em todas as situações de caso fortuito.

 

Dessa forma, é aconselhável ter-se presente a existência de diferenciação possível, conquanto a preocupação com a distinção apriorística entre os conceitos seja irrelevante para o grande número de casos em que os efeitos jurídicos são idênticos para ambos os casos.

 

Costuma-se admitir que há caso fortuito quando o fato que justifica a inexecução ou que gera o dano é acontecimento do mundo natural, para o qual não concorreu a participação do agente. São exemplos o raio, a inundação, o vendaval, a falha de suprimento energético etc.[4]

 

Essas hipóteses podem ser classificadas em dois grupos, conforme o momento no qual o evento se apresenta: o fortuito será “interno” quando o fato necessário e inevitável ocorre no âmbito da atividade do agente e será “externo” quando o fato não se relaciona com essa atividade.[5]

 

A responsabilidade do transportador, dada às suas características especificas, assim como à incidência do Código de Defesa do Consumidor, exemplificam: o estouro de um pneu e o mal súbito do motorista são hipóteses de fortuito interno, ao passo que a inundação ou a queda de uma barreira, de fortuito externo.

 

Por sua vez, entende-se ser força maior o acontecimento, em geral, independente de fatores físico-naturais, que envolvem uma relação de desequilíbrio de forças, jurídicas ou fáticas, de uma pessoa em relação à outra. É o caso da invasão do território, da revolução, do fato do príncipe (atos de direito público), da greve, do assalto, quando esses impedem a prestação ou geram o dano.[6]

 

2. Os requisitos: fato necessário e efeitos inevitáveis

Diante da necessidade de bem delimitar os efeitos decorrentes de fatos classificáveis como de caso fortuito ou de força maior, é comum que contratos, sobretudo envolvendo operações mais complexas, definam os conceitos e estabeleçam os seus respectivos requisitos.

 

Estipulações dessa ordem afastam o regime legal, que é dispositivo, como bem demonstra a redação do caput do art. 393 do Código Civil. Exatamente por isso, não se pode dizer dos efeitos de eventos de caso fortuito ou de força maior antes da análise do contrato em questão.

 

Não havendo estipulação negocial, aplica-se o regime legal e, com ele, os requisitos previstos no parágrafo único do art. 393 do Código, segundo o qual a existência de caso fortuito e/ou de força maior demanda a ocorrência de “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. O problema se concentra, pois, em compreender quais as qualidades que fazem com que haja esses fatos dotados de tais efeitos.

 

Um fato é entendido como necessário quando não provier do devedor, não sendo por ele causado. Aqui a noção de causa é fundamental. O devedor não pode ter causado o fato, ainda que ele possa ser fisicamente sujeito a ele.[7]

 

Uma doença grave e inesperada que impeça a prestação personalíssima é, sem dúvida, um tal fato.Todavia, se a doença já é conhecida e se não foram adotadas, pelo devedor, as medidas preconizadas para impedir o seu próprio contágio, então a qualificação se altera. Haverá causa para o fato.

 

O fato necessário terá ainda de ter efeitos inevitáveis. São inevitáveis aqueles efeitos que impossibilitam a prestação ou que geram dificuldade tamanha ao devedor que não se poderia impor a sua atuação para realizar a prestação devida ou evitar o dano. Verificam-se efeitos inevitáveis quando há barreiras intransponíveis ou de tão difícil transposição que com esta se equipare.[8]

 

Desse modo, não é qualquer acontecimento que libera o devedor. Não estão incluídos, por exemplo, aqueles que apenas dificultam ou encarecem a prestação, sem torná-la equiparável a uma barreia intransponível.[9]

 

Novamente, a noção de causa é fundamental. Se os efeitos deixassem de ser inevitáveis pela adoção de medidas razoáveis pelo devedor, quando o fato já se mostrava presente ou quando a existência de graves efeitos já se tornava clara, então os efeitos não podem ser tidos como “inevitáveis”.

 

“Necessidade do fato” e “inevitabilidade dos efeitos” devem estar igualmente presentes. Assim, se um fato for necessário, por ser estranho à ação do devedor, mas incapaz de gerar efeitos que impeçam a realização da prestação, não há que se falar de caso fortuito ou de força maior.

 

Disso decorre que uma tal análise não poderá ser feita de modo abstrato, mas deve ter em vista as condições da obrigação concreta.[10] Uma forte chuva pode configurar caso fortuito ou força maior para uma prestação e não para outra; uma determinada prestação pode se tornar impossível enquanto outra, genericamente idêntica, não, pois as condições do contrato foram outras.

 

Na ilustrativa imagem trazida por Serpa Lopes, “um golpe de uma baleia pode afetar gravemente uma embarcação pequena, mas ser irrelevante para um transatlântico”.[11] Portanto, sem a análise concreta, pode-se verificar a necessidade do fato, mas não a inevitabilidade de seus efeitos, de sorte que ficaria afastada a caracterização legal do evento como caso fortuito ou força maior.

 

Conclusão

Como se constata, eventos em si mesmos (a inundação, a greve, o vírus pandêmico) não são, só por si, classificáveis como “caso fortuito” ou de “força maior” para fins de aplicação da excludente. São as condições do caso que determinarão a sua aplicação.

 

Separações conceituais finas entre as duas expressões excludentes só terão razão de ser na medida em que efeitos distintos puderem ser vinculados a cada uma. Tal separação não se apresenta relevante quando se fizer aplicável o disposto no art. 393 e seu parágrafo único.

 

Em qualquer circunstância, as medidas adotadas pelo devedor serão relevantíssimas para a aplicação da excludente. É o caso concreto que definirá tanto essa aplicação quanto os seus efeitos.

 


[1] Sobre o tema, antes da publicação do Código Civil de 1916 e com diversos aportes de direito comparado, ESPINOLA, Eduardo. Systema do Direito Civil brasileiro. v. II, t. I. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1912, p. 357 ss.

[2] Essa definição legal se assemelha àquela contida no Código Civil de 1916, art. 1.058, que, no entanto, acrescentava, ao final do caput, o expresso afastamento da aplicação da regra aos casos de mora. Antes do Código Civil de 1916, não havia definição legal de caso fortuito ou força maior, apesar da regra ser reconhecida em nosso direito. Cf. BEVILAQUA, Clovis. Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil. v. IV. 9. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1953. Atualização Achilles Bevilaqua, p. 211.

[3] FREITAS, Augusto Teixeira de. Código Civil: esboço. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1993, art. 833; GOMES, Orlando. Obrigações. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 149; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil: obrigações em geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 377; MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 5, t. II, p. 198; MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 3. ed. t. XXIII.  São Paulo: RT, 1984, p. 79; PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 245; VINEY, Geneviève, JOURDAIN, Patrice. Traité de droit civil: les conditions de la responsabilité. 2. ed. Paris: LGDJ, 1998, p. 230. Em sentido contrário, ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1949, p. p. 292; RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral das obrigações. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 240.

[4] MIRANDA, Pontes de, op. cit., p. 78; PEREIRA, Caio Mário da Silva, op. cit., p. 244; SILVA, Clóvis do Couto e. Dever de indenizar. In: FRADERA, Véra Maria Jacob de (org.). O direito privado brasileiro na visão d e Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 210.

[5] ALVIM, Agostinho, op. cit., p. 290; CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 300-301; MARTINS-COSTA, Judith Martins-Costa, op. cit., p. 201.

[6] ALVES, João Luiz. Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1917, p. 711; PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira, op. cit., p. 244; SILVA, Clóvis do Couto e, op. cit., p. 210.

[7] ESPINOLA, Eduardo. Systema, cit., p. 367.

[8] PEREIRA, Caio Mário da Silva, op. cit., p. 245; MIRANDA, Pontes de, op. cit., p. 84.

[9] PEREIRA, Caio Mário da Silva, op. cit., p. 245

[10] ALVIM, Agostinho, op. cit., p. 287; MARTINS-COSTA, Judith, op. cit., p. 199; PEREIRA, Caio Mário da Silva, op. cit., p. 246; RODRIGUES, Silvio, op. cit., p. 238.

[11] LOPES, Miguel Maria de Serpa, op. cit., p. 375.[:]

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