Cautela deve pautar contratação em moeda estrangeira

Fábio Machado Baldissera

Tema de grande relevância no mundo empresarial é a possibilidade de contratação e de indexação em moeda estrangeira nos negócios jurídicos que prevejam obrigações a serem executadas no território nacional.
O Brasil — nação historicamente protecionista — vem há muitos anos editando normas que limitam a liberdade de as partes contratarem em moeda estrangeira, atribuindo consequências de suma gravidade, como a nulidade contratual das avenças que contrariem essas restrições.
Ocorre que grande parte dessas normas não atentou à devida clareza legislativa que o cotidiano empresarial necessita, principalmente, com a intensificação dos negócios internacionais. Como resultado, trouxeram instabilidade jurídica aos nacionais e estrangeiros que tenham celebrado contratos contemplando obrigações a serem executadas no território nacional. Desta forma, muitas demandas foram levadas ao Judiciário, que tardou em definir um posicionamento sobre esta matéria, como se denota da análise histórica de reiteradas decisões do Superior Tribunal de Justiça[1], que em muito oscilaram de entendimento.
De qualquer forma, é de elogiável clareza e técnica jurídica o recente julgamento do Recurso Especial 1.323.219J[2], da relatoria da ministra Nancy Andrighi, que enfrentou de forma precisa a possibilidade da contratação e da indexação dos negócios jurídicos em moeda estrangeira e as suas consequências legais, conforme a atual legislação vigente.
Apanhado histórico sobre o tema
Fazendo um apanhado histórico legislativo sobre o tema, temos o Decreto 23.501/33 que, em seu artigo 1º, ao tratar sobre os contratos exequíveis no território nacional, estabelecia a nulidade de qualquer estipulação de pagamento em ouro ou em determinada espécie de moeda, assim como por qualquer outro meio tendente a restringir o curso forçado da moeda na época.
Essa regra restringia a liberdade contratual das partes de estipular o pagamento em moeda estrangeira, até então consagrado pelo Código Civil de 1916, no seu artigo 947, parágrafo 1º. Como justificativa, de acordo com o contexto histórico, buscava-se evitar, principalmente, a dolarização, sob a alegação de enfraquecimento da economia interna e tentativa de minimizar os impactos e oscilações econômicas internacionais na economia brasileira.
Posteriormente, publicou-se o Decreto-Lei 857, de 11 de setembro de 1969, no afã de consolidar e alterar toda a legislação até então vigente sobre a moeda de pagamento de obrigações exequíveis no Brasil. O novo regramento — que vigora até os dias atuais — revogou as diversas legislações sobre a matéria e, em especial, o citado Decreto 23.501, além de suspender os efeitos do parágrafo 1º do artigo 947 do Código Civil de 1916.
O Decreto-Lei 857/69, entre outras disposições, manteve a regra de que seriam nulos os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações exequíveis no Brasil que estipulassem pagamento em moeda estrangeira ou, por alguma forma, restringissem o curso legal da moeda da época. Pode-se afirmar que o Decreto-Lei 857/69 trouxe avanços no cenário legal brasileiro. Isso se deve ao fato de ter excepcionado, em seus artigos 2° e 3º, um extenso universo de negócios jurídicos que poderiam ser pagos em moeda estrangeira, não se enquadrando, portanto, nas restrições aplicáveis em caráter geral às obrigações cuja execução se dariam no território nacional.
Como exemplo, a normativa deixou claro que não estariam inclusos nestas restrições os: (i) contratos e títulos referentes à importação ou exportação de mercadorias; (ii) contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens de produção nacional, vendidos a crédito para o exterior; (iii) os contratos de compra e venda de câmbio em geral; e (iv) empréstimos e quaisquer obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuando-se as obrigações referentes a locações de imóveis situados no território nacional.
Reconhecido o avanço legislativo do Decreto-Lei 857/69, também merece ser avaliado criticamente o seu texto. Isso porque esta norma previu a nulidade das avenças que estipulassem o pagamento em moeda estrangeira, mas se omitiu em relação à possibilidade ou não de indexar as avenças em moeda estrangeira, prática que era comum e necessária em razão da volatilidade histórica que acompanhou as moedas no Brasil em períodos anteriores ao Plano Real.
Dessa forma, o Decreto-Lei 857/69, ainda vigente, ensejou, no contexto jurídico e empresarial brasileiro, muitas falhas interpretativas pelo fato de haver vedado apenas o pagamento das obrigações em moeda estrangeira, mas não havendo vedado ou regulado se as partes contratantes poderiam ou não indexar as obrigações exequíveis no país em moeda estrangeira[3].
Essa simples lacuna — ou carência de precisão legislativa — originou discussões doutrinárias e jurisprudenciais que até hoje não foram totalmente superadas. A consequência foi um grande prejuízo, decorrente da desnecessária insegurança jurídica aos contratantes com obrigações exequíveis no território nacional.
De outro lado, após praticamente 25 anos de incerteza, a Lei 8.800[4], de 27 de maio 1994, brindou-nos com esclarecimento expresso sobre o tema. De fato, em seu artigo 6º, a referida lei estabeleceu que é nula a contratação de reajuste vinculado à variação cambial, exceto quando expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no país, com base em captação de recursos provenientes do exterior.
Portanto, desde 1994 a legislação prevê regras específicas a serem manuseadas pelos operadores do direito em relação à temática, independente da discussão econômica e política que envolve a possibilidade de o Estado tolher a liberdade dos contratantes de avençarem obrigações contratuais exequíveis no Brasil com pagamento em moeda estrangeira e indexar reajustes em moeda estrangeira.
Mais adiante, a Lei 10.192/01[5], em seu artigo 1º, de forma categórica reforça a impossibilidade da indexação das obrigações em moeda estrangeira. De fato, esta normativa estabelece que, em se tratando de obrigações exequíveis no país, é vedado, sob pena de nulidade, o pagamento expresso ou vinculado à moeda estrangeira, ressalvado o disposto nos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei nº 857/69 e na parte final do artigo 6º da Lei 8.880/94.
Ainda no contexto legislativo, cabe mencionar que o artigo 318 do Código Civil Brasileiro de 2002, na esteira das regras já citadas, dispôs que são nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuando os casos previstos na legislação especial, como a título de exemplo, aquele rol de avenças estabelecidas no artigo 2º do Decreto-lei 857/69.
Ocorre que tais positivações não foram suficientes para uma definição do posicionamento da jurisprudência sobre a matéria, sendo que os contratantes não obtiveram uma resposta exata e imediata inclusive do Superior Tribunal de Justiça neste sentido. Como evidência dessa disparidade interpretativa, pode-se mencionar o Agravo 1.043.637[6], da relatoria do ministro Aldir Passarinho Junior, julgado em 17 de fevereiro de 2009, no qual se conclui pela possibilidade de indexação em moeda estrangeira, desde que haja conversão em moeda nacional na data do efetivo pagamento.
Importante destacar que, naquele caso, discutia-se a possibilidade de indexação ao dólar de um contrato de financiamento para aquisição de bens, de sorte que não se está tratando de contratos de fornecimento de commodities ou mesmo daqueles fornecimentos que possuem grande parte do valor atrelado à variação de alguma commodity, cujo preço sofra variação de acordo com o mercado internacional. Nessas situações, o Superior Tribunal de Justiça consagrou o entendimento no sentido de permitir tal indexação[7].
Pagamento em moeda estrangeira e exceções
Constata-se que é expressa na legislação a vedação do pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no Brasil, sob pena de nulidade. Tal regra, contida na legislação atualmente vigente, especialmente, no artigo 318 do Código Civil de 2002, e nas Leis 8.880/94 e 10.192/01 e Decreto-lei 857/69, inclusive norteia a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.
E encontram-se fora do escopo dessas restrições, a título de exemplo, aqueles pagamentos em moeda estrangeira, referentes às hipóteses previstas nos artigos 2º e 3º do Decreto-lei, tais como, obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, contratos de importação ou exportação de mercadorias, entre outros mencionados anteriormente neste artigo.
Indexação e contratação em moeda estrangeira no Brasil
Da mesma forma que o pagamento, é vedada, sob pena de nulidade, a indexação e vinculação dos negócios jurídicos e obrigações exequíveis no Brasil, conforme prevê o artigo 318 do Código Civil de 2002 e nas Leis 8.880/94 e 10.192/01.
Não estão incluídas nessas hipóteses, conforme o entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado, as avenças que envolvam o fornecimento de commodities atreladas à variação de preços do mercado internacional ou que tenham grande parte da composição do produto composto por commodities. Tais negociações, por sua natureza, podem ser indexadas à variação cambial, não obstante, a intepretação literal da legislação possa levar à diversa compreensão.
Superadas as questões em relação à impossibilidade da indexação, o ponto principal a ser analisado refere-se às relações jurídicas em que não há qualquer enquadramento nas exceções legais ou jurisprudenciais e, nada obstante, são objeto de indexação das obrigações em moeda estrangeira.
A priori, analisando a letra fria da lei, tais avenças deveriam ser nulas. Contudo, na prática não parece ser esse o entendimento mais razoável e eficaz. Por essa razão, de forma acertada, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que não é nula a contratação em si, com estipulação do preço em moeda estrangeira, desde que o pagamento seja efetuado em moeda corrente nacional[8].
Esse é o entendimento do recente julgamento do Recurso Especial 1.323.219[9] da relatoria da ministra Nancy Andrighi, no qual entendeu que a melhor solução para essas hipóteses seria de considerar válida a contratação, tornando ineficaz, no entanto, a indexação, de sorte que os valores devem ser, na data da quitação, convertidos em reais conforme a cotação do dia da contratação (e não data do respectivo pagamento). E a partir desta data, os valores serão atualizados com base em índice oficial de correção monetária[10]. Com isso se evita o enriquecimento sem causa, na medida em que a correção monetária é mero mecanismo de reposição do valor, respeitando a obrigatoriedade do curso forçado do Real como regra geral às obrigações exequíveis no território nacional.
Adicionalmente, de forma exitosa, a decisão do Superior Tribunal de Justiça considerou que sobre o valor convertido na data da contratação, deve incidir a atualização por meio do índice de correção oficial aplicável à relação contratual específica do julgamento[11].
Dessa forma, as partes contratantes deverão redobrar a atenção antes de elegerem os índices de indexação de seus contratos, uma vez que a liberdade das partes na contratação neste particular não prevalecerá.
Portanto, recomenda-se uma avaliação prévia muita cautelosa de que tipo de contratação se está tratando e se é possível a sua vinculação em moeda estrangeira. Isso porque, se for estabelecida moeda estrangeira em negócios jurídicos em que não isso não é possível, as partes poderão encontrar-se vinculadas ao índice oficial de correção, que muitas vezes pode estar em desacordo com a melhor opção para a contratação específica, acarretando prejuízos significativos.
[1] Vide REsp 680.543-RJ, REsp 83.752-RS e REsp 402.071-CE.
[2] REsp 1.323.219- RJ, STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 27 de agosto de 2013.
[3] Neste sentido Joaquim de Paiva Muniz discorre que “antes da legislação que implementou o Plano Real, havia acirrada discussão sobre a interpretação do Dec.-lei 857/1969, pois essa norma não é clara se veda apenas o pagamento de obrigações em moeda estrangeira ou também a indexação de obrigações ao valor da moeda estrangeira. Em outras palavras, discutia-se a validade das cláusulas que obrigavam o pagamento, em moeda nacional, do equivalente a certo montante em moeda estrangeira (“pague-se ao credor, em reais, o equivalente, na data do vencimento da obrigação, a x dólares), muito comuns na prática empresarial. MUNIZ, Joaquim de Paiva, Considerações sobre Certos Institutos de Direito Contratual e seus Potenciais Efeitos Econômicos, Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, nº 25, p. 104-122, julho/ dezembro 2004.
[4] Lei que dispõe sobre o Programa de Estabilização e o Sistema Monetário Nacional e institui a Unidade Real de Valor (URV) e dá outras providências.
[5] Lei que dispõe sobre medidas complementares ao Plano Real e dá outras providências.
[6] AgRg no Ag nº 1.043.637-MS , STJ, 3º Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 17 de fevereiro de 2009.
[7] REsp 1.212.847-PR, STJ, 3º Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 08 de fevereiro de 2011.
[8] Vide Resp 194.629/SP, 3ª Turma, STJ, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 22 de maio de 2000 e REsp 848.424/RJ, 4ª Turma, STJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 18 de agosto de 2008.
[9] REsp 1.323.219 / RJ, STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 27 de agosto de 2013.
[10] A decisão não menciona especificamente qual índice oficial adotado.
[11] Neste mesmo sentido, o REsp 804.791-MG, 3ª Turma, STJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 03 de setembro de 2009, admitiu a contratação de dívida em moeda estrangeira, vedando a indexação cambial, de sorte que as dívidas deveriam no ato da quitação ser convertidas para moeda nacional com base na data da contratação e a partir desta data atualizado conforme índice de correção monetária previsto na legislação pátria. Em sentido contrário, denotando a existência de controvérsia, o REsp 900.680/SP, 4ª Turma, STJ. Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 14 de abril de 2008, em que foi entendido que o fato da dívida ter sido contraída em moeda estrangeira, com previsão de para moeda nacional se fizesse na data do efetivo pagamento permitindo concluir que a dívida estaria sendo exigida em reais e que, portanto, não agrediria as disposições do Decreto-lei 857/69 e da Lei nº 8.880/94. Ressalta-se, com o devido respeito, a minha contrariedade ao entendimento exarado por este julgamento.

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