A inversão da multa contratual

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Fernanda Girardi e Rodrigo Cantali
Valor Econômico
10/04/2019

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) deve julgar hoje a possibilidade de aplicação, em desfavor de construtoras, de multa contratual estipulada exclusivamente contra o comprador de imóvel REsp nº 1498484/DF).

A questão foi afetada pela Segunda Seção do STJ em 2017 para julgamento mediante o rito dos recursos repetitivos. O julgamento, que havia iniciado no último dia 27 de março, foi adiado em virtude de questão de ordem levantada pelo relator, Min. Luis Felipe Salomão, que definiu que a Lei 13.786/18 (conhecida como a “Lei dos Distratos” imobiliários) não seria aplicada no julgamento em questão em virtude da sua irretroatividade. A decisão a ser proferida terá efeito vinculante aos processos em tramitação que envolvam o tema e servirá como diretriz para ações futuras.

O que se debate, em síntese, é a possibilidade de estender a aplicação de uma multa contratual, originalmente incidente apenas em caso de atraso no pagamento das parcelas do preço pelo comprador, também à hipótese de atraso na entrega do imóvel pela construtora. Trata-se da chamada “inversão” da cláusula penal: inversão porque retrata uma real mudança na lógica contratual inicialmente estabelecida, mediante a aplicação da multa em sentido oposto ao previsto no contrato.

A decisão a ser proferida terá efeito vinculante aos processos em tramitação que envolvam o tema

As decisões já proferidas sobre o tema justificam a inversão da cláusula penal usualmente pela necessidade de reciprocidade, ou seja, de aplicação da multa a ambos os contratantes indistintamente, ainda que redigida apenas em favor de uma das partes.

Alega-se que não seria razoável, tampouco proporcional ou equilibrado, que um dos contratantes se beneficiasse da multa em caso de descumprimento, enquanto que a outra parte ficasse à mercê de um caminho diverso, mais complexo, para recompor os prejuízos decorrentes da mora.

Essas decisões também estabelecem que a cláusula penal moratória poderia ser cumulada com indenização por lucros cessantes relativos a aluguéis eventualmente pagos pelos compradores durante o período de retardo na entrega do imóvel adquirido – questão igualmente posta a julgamento no âmbito dos recursos repetitivos e que foi objeto dos debates na audiência pública ocorrida no STJ em 2018.

Há, todavia, relevantes contrapontos a serem considerados em tal discussão.

O primeiro refere-se à inexistência de previsão legal que permita estender o âmbito de aplicação de uma cláusula penal. A multa contratual tem origem convencional, fruto da autonomia privada. Ainda que os contratos submetidos ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) estejam sujeitos à eventual intervenção judicial, esse efeito, de extensão de multa não previamente estipulada, foge das situações que viabilizam tal intervenção.

O CDC estabelece a revisão judicial para modificar cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou que se tornem excessivamente onerosas em face de situações supervenientes, e nenhuma das situações encontra-se presente para legitimar a inversão da multa contratual. Note-se que a remissão a “prestações desproporcionais”, feita pela lei, refere-se à prestação principal de dado negócio e, não, a um mecanismo utilizado seja para pré-liquidar os danos que decorrem do descumprimento de dada obrigação, seja para exercer uma função persuasória do respectivo cumprimento.

Outro aspecto é que inexiste uma diretriz que imponha a propalada “reciprocidade” entre os mecanismos à disposição das partes contratantes. Mesmo no âmbito de contratos de adesão, em que o aderente não tem a prerrogativa de discutir ou interferir na elaboração das cláusulas, mas apenas aceitá-las em bloco, não há que se falar em um verdadeiro paralelismo de prerrogativas e obrigações.

Há, logicamente, a necessidade de se evitar o exercício de posição abusiva por uma das partes. Todavia, alguns mecanismos são próprios e vocacionados a determinados tipos de negócios, atendendo e protegendo a lógica das operações econômicas em jogo. Inegável que há custos transacionais envolvidos e que a inserção de tais mecanismos repercute nesses custos. Além disso, lembre-se que o equilíbrio contratual não é retratado pelo igual número de prerrogativas e mecanismos protetivos em prol de cada contratante, mas aferido de acordo com o contexto e a lógica de cada operação, com foco no conteúdo das obrigações principais de cada parte.

Por fim, um terceiro e relevante elemento consiste no risco de que eventual acolhimento da inversão da cláusula penal, no âmbito dos recursos repetitivos, acarretará uma abertura para a aplicação extensiva do precedente.

Não seria exagero supor que sobreviriam decisões invertendo não apenas a cláusula penal moratória, mas também eventuais multas de natureza compensatória, como já se verificou em recente decisão proferida em desfavor de empresa de intermediação de reservas hoteleiras. Há também o risco, que parece o mais grave, de tal inversão alcançar multas previstas em contratos paritários, o que redundaria não apenas na deturpação dos fundamentos da própria cláusula penal, mas especialmente em insegurança no ambiente que serve de pano de fundo para a formalização dos negócios comerciais.

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