Geração distribuída: estamos prontos para a venda de excedentes?

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Gustavo Kaercher
JOTA
05/02/2019

Juridicamente, sim

No âmbito da revisão da Resolução ANEEL 482/2012, é também oportuno ampliar o espectro da discussão até as normas de hierarquia superior, como leis e regulamentos do Executivo (Decretos) que tratem, direta ou indiretamente, do tema da geração distribuída. Ainda que a iniciativa da Agência se contenha nos limites de sua competência, é importante revisitar as normas que dão sustentação, diretrizes e limites ao ato administrativo normativo da ANEEL (Resolução).

Nesse contexto, gostaria de chamar a atenção para um ponto específico que diz respeito à possibilidade de (jurídica) o micro ou minigerador vender – sim vender – o excedente de energia não para a distribuidora, mas para terceiros. Aparentemente, essa é uma possibilidade prevista na legislação que não se encontra explorada pela regulação.

O ponto de partida para se chegar a essa conclusão está na constatação da “dupla face” da unidade dotada de micro ou minigeração distribuída: juridicamente, ela é tanto (i.) um consumidor cativo quanto um (ii.) autoprodutor de energia elétrica. Este ponto não parece ser problemático¹. Questão mais delicada é saber o que se segue disto e como tratar essa combinação de papeis setoriais.

A configuração jurídica da autoprodução deste sujeito é sui generis: trata-se de um gerador que não necessita de concessão, permissão ou autorização (art. 21, XII, b da Constituição), em virtude de se tratar de “aproveitamento de potencial de energia renovável de capacidade reduzida” (art. 176, par. 4º da Constituição), assim definido (tal potencial de capacidade reduzida) pelo art. 8º da Lei 9.074/1995. Está submetido apenas a “registro” junto ao Poder Concedente.

E, quanto à figura do registro, note-se que ela não depende do uso que se fará da energia, mas, apenas, das características objetivas que possui o aproveitamento a partir do qual ela será gerada, em particular, de sua dimensão². Assim, é possível, em tese, que um empreendimento dotado de registro negocie a energia produzida, no todo ou em parte; ou que a utilize para autoconsumo. No caso sob discussão, tratar-se-ia de um autoprodutor, sujeito que, em princípio, possui a faculdade de negociar o excedente de energia produzida.

Até aqui, tratou-se da feição “geração”, analisada apenas a partir de normas legais ou regulamentares (é sabido que, hoje, esta faculdade de negociar a energia não está dada na regulação para o autoprodutor enquadrado como micro ou minigerador distribuído, mas é justamente para essa possibilidade – aparentemente prevista na legislação – que se quer chamar a atenção).

Na sua feição “consumidor”, a unidade é tida como de consumo cativo, nos termos dos arts. 15 e 16 da Lei 9.074/1995. Isso significa que não poderá adquirir a energia de outros agentes que não da distribuidora à qual se conecta.

O ponto, porém, é que não há na legislação qualquer vedação a que consumidores cativos vendam (ou cedam gratuitamente³) a energia que vierem a produzir. Na verdade, essa vedação sequer faria sentido, uma vez que a definição do que seja um consumidor cativo trata, apenas, por óbvio, das características de seu consumo. O tema do excedente de geração sequer pertence à órbita das preocupações dessa caracterização e está afeito, justamente, à disciplina da geração. E esta, como se disse, admite a venda de excedentes.

Em síntese:

A unidade que possui uma planta de micro ou minigeração distribuída tem dupla face: (i.) autoprodução; (ii.) consumidor cativo.

A figura do consumidor cativo não veda que este sujeito transacione a energia excedente que vier a gerar.

A figura do autoprodutor (que também tem uma dimensão ‘consumo’) admite a celebração de negócios jurídicos com o excedente de energia (mútuo, compra e venda e outras modalidades).

Ou seja, tanto com a credencial de consumidor (não veda) quanto com a credencial de autoprodutor já é juridicamente possível a venda do execedente.

A título de encerramento e justificação do que se diz, veja-se que parece possível ao micro ou minigerador distribuído enquadrar-se no § 5º do art. 26 da Lei 9.427/1996 e ter, eventualmente, sua energia agregada por comercializador varejista:

Art. 26 (…).

§ 5º Os aproveitamentos referidos nos incisos I e VI do caput deste artigo, os empreendimentos com potência igual ou inferior a 5.000 kW (cinco mil quilowatts) e aqueles com base em fontes solar, eólica e biomassa cuja potência injetada nos sistemas de transmissão ou distribuição seja menor ou igual a 50.000 kW (cinquenta mil quilowatts) poderão comercializar energia elétrica com consumidor ou conjunto de consumidores reunidos por comunhão de interesses de fato ou de direito, cuja carga seja maior ou igual a 500 kW (quinhentos quilowatts), observados os prazos de carência constantes do art. 15 da Lei no 9.074, de 7 de julho de 1995, conforme regulamentação da Aneel, podendo o fornecimento ser complementado por empreendimentos de geração associados às fontes aqui referidas, visando à garantia de suas disponibilidades energéticas, mas limitado a 49% (quarenta e nove por cento) da energia média que produzirem, sem prejuízo do previsto nos §§ 1º e 2º deste artigo.

Mas o que, exatamente, todas essas elocubrações sobre textos legais têm a ver com a revisão da REN 482, se é sabido que esta não é a direção que a regulação tomou? À primeira vista se poderia dizer que estas normas sugerem uma alternativa mais radical para a micro ou minigeração, à guisa de adequação da regulação à lei.

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1 Que este sujeito seja um autoprodutor não há dúvida: para lidar com a geração de energia, as normas legais apenas conhecem as figuras da autoprodução, da produção independente de energia e da geração em regime de serviço público. As diferenças internas entre autoprodutores – segundo a fonte, dimensão, localização etc. – não podem obscurecer esse fato: sempre de autoprodução se trata, considerando o destino primário da energia produzida no caso da mini e microgeração distribuída.

2 Deixo de lado o exame da aplicação deste dispositivo à co-geração qualificada.

3 Na verdade, a própria possibilidade de cessão gratuita é um argumento em favor da “transacionabilidade”, em abstrato, do excedente de energia.

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