Cautelas necessárias na compra e venda entre ascendentes e descendentes

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Daniel Alt da Silva, Daniela Russowsky Raad

07/10/2020 – CONJUR

 

É sabido que o planejamento sucessório, em suas multifacetadas formas, permite aos interessados a utilização de variados instrumentos, a fim de que a transmissão do patrimônio tenha maior racionalidade, inclusive diminuindo a incidência de conflitos familiares. A título ilustrativo, as estratégias podem passar pela adoção de instrumentos contratuais, reais e societários, sem esquecer, obviamente, das repercussões inseridas no ambiente tributário.

 

Do ponto de vista contratual, a compra e venda serve como um válido e eficaz artifício, dês que observadas algumas formalidades específicas. A desatenção é suscetível de causar insegurança ao projeto idealizado, com nefastas consequências. Em síntese, o contrato em questão tem a natureza jurídica de negócio bilateral oneroso, gerando aos contratantes efeitos obrigacionais recíprocos. Ou seja: enquanto ao comprador existe o dever de pagamento, ao vendedor — por consequência lógica — há a obrigação de transferência da propriedade da coisa.

 

Especificamente no âmbito das relações familiares, a compra e venda comporta a aplicação de específica norma restritiva de direitos, porquanto o artigo 496 do Código Civil dispõe que é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”. Em outras palavras, a legislação, para fins de validade do negócio, exige a expressa concordância da integralidade do conjunto familiar, tendo como pedra de toque a vedação de quebra da igualdade de quinhões na sucessão. Verdade seja dita, estimando a possibilidade de que o contrato realizado tenha como finalidade a ocultação da real intenção de doação, a restrição busca evitar prejuízo sobre a legítima dos herdeiros necessários.

 

À vista disso, é correto afirmar que a ausência de atenção a tal protocolo perpassa pelo plano de (in)validade do negócio jurídico. E considerando a perspectiva de projeção de efeitos jurídicos pelo decurso do tempo, cumpre esclarecer cronologicamente alguns aspectos atinentes à temática, a saber: 1) a Súmula nº 152 do Supremo Tribunal Federal, cujo teor prevê que a ação para anular venda de ascendente a descendente, sem consentimento dos demais, prescreve em quatro anos a contar da abertura da sucessão”, está revogada; 2) a Súmula nº 494 do Supremo Tribunal Federal, que assinala que a ação para anular venda de ascendente a descendente, sem consentimento dos demais, prescreve em vinte anos, contados da data do ato, segundo abalizada doutrina, está tacitamente cancelada, sobretudo por conta da orientação legislativa decorrente da atual codificação civil.

 

No ponto, para que dúvidas não pairem, importante pontuar que os enunciados sumulares remontam ao Código Civil de 1.916, ocasião em que não havia pormenorizada distinção legal sobre os prazos prescricionais e decadenciais. Ao seu turno, o Código Civil em vigor, que adotou a célebre doutrina de Agnelo Amorim Filho, imprimindo critérios científicos para a distinção entre os institutos da prescrição e decadência, arremata que a compra e venda de ascendente para descendente é passível de anulação, e não nulidade, obedecido o prazo decadencial de dois anos em razão do disposto no artigo 179 do Código Civil. Aliás, o Enunciado nº 368 da IV Jornada de Direito Civil (CJF/STJ) trafega na mesma linha de raciocínio.

 

A esse respeito, válido sublinhar que a questão foi recentemente submetida à análise do Superior Tribunal de Justiça. A ministra Nancy Andrigui, relatora do Recurso Especial nº 1.679.501/GO, lançou entendimento no sentido de que a compra e venda, seja diretamente realizada pelo ascendente ao descendente, seja pela via oblíqua, notadamente com a intermediação de interposta pessoa, está submetida ao regime de anulação, visto que a falta de expresso consentimento dos demais familiares é, de fato, a causa real de anulabilidade, não havendo razão para tratamento diferenciado. O prazo, segundo consta da posição adotada, é contado da conclusão do ato.

 

Nessa linha, deve-se observar que a decadência acarreta a extinção do próprio direito, uma vez não observado o lapso temporal para o seu exercício — ponto abordado na situação posta. Mas se por um lado há a literal decadência de um direito quando decorrido o prazo para postulação da anulação do negócio, de outro é exatamente esse fator que confere relevante grau de estabilidade às relações constituídas. São os efeitos, ônus e bônus, do instituto.

 

Ademais, interessa notar não apenas a questão de lapso temporal para anulação do negócio, mas especialmente a referência à possibilidade de ser mantida a transação efetuada entre ascendentes e descendentes, ainda que não preenchidos os requisitos legais. Em seu voto, a ministra Nancy Andrigui traz à tona que eventual desconstituição do negócio jurídico se dá em razão especificamente da averiguação de simulação, de modo que se confirmado que a compra e venda ocorreu de forma genuína, atendendo aos padrões de uma transação habitual — efetivado pagamento de valor de mercado e sem prejuízo à legítima dos herdeiros —, esta tende a ser mantida. Trata-se da prevalência da liberdade de contratar e dispor livremente sobre os bens de sua propriedade, conquanto a transação não gere agravo a direito fundamental dos demais herdeiros necessários.

 

Em suma, abstrai-se do regramento acerca da alienação onerosa de bens entre ascendentes à descendentes uma latente preocupação de burla do instituto da legítima, circunstância em que se tentaria mascarar uma doação sob o instrumento de compra e venda. E essa é, sem dúvidas, uma planificação de transferência de bens fadada ao fracasso, comprometendo profundamente um planejamento sucessório eficaz.

 

Nesse ínterim, ratificada a importância de uma atuação multidisciplinar e personalizada ao se tratar de desenvolvimento de estratégias sucessórias, a fim de se desenvolver e implementar um plano que seja eficaz e adequado ao que se objetiva em termos de organização patrimonial. As ferramentas disponíveis para se planificar a sucessão são diversas e interdisciplinares — tal como a própria transação de compra e venda entre familiares —, sendo necessária a análise pormenorizada do contexto familiar para afastar — ou minimizar — os riscos inerentes aos negócios realizados.[:]

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