Execução antecipada da pena: presunção de inocência e o peso da toga

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Antonio Tovo e Cássio Macedo

23/10/2019 – ESTADÃO

Há uma questão que subjaz a boa parte das decisões de política criminal: para punir mais culpados, pode-se compactuar com a punição colateral de alguns inocentes? Respeitando opiniões contrárias, adiantamos que nossa resposta é um sonoro não. Essa indagação volta à cena no julgamento da execução antecipada da pena, pelo Supremo Tribunal Federal, matéria das ações declaratórias de constitucionalidade (ADC) nº 43, 44 e 54, que prosseguirá nesta quarta-feira, dia 23.

Os votos dos julgadores representarão a contraposição dialética entre duas grandes concepções sobre o tema, a serem adaptadas pelas individualidades dos Ministros: 1) a concepção que o preceito constitucional de presunção de inocência impede o início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado dos processos, ou seja, antes de esgotarem-se os recursos cabíveis;  2) a concepção que a regra constitucional de inocência pode ser flexibilizada, para conferir maior celeridade à aplicação das condenações criminais.

O prenúncio do julgamento estabelece um terreno fértil para a reprodução de informações levianas, por isso é oportuno resgatar o histórico recente dos posicionamentos do Tribunal sobre a execução provisória da pena. Em 2009, no julgamento do habeas corpus 84.078/MG, relatado pelo Min. Eros Grau, prevaleceu o entendimento de que a pena de prisão cumprida antes da sentença condenatória transitada em julgado ofende o art. 5º, inc. LVII, da Constituição da República, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Em 2016, embora passados poucos anos da decisão no HC 84.078/MG, dois fatores impulsionaram um reexame da matéria: um maior envolvimento da sociedade com as decisões e com as sessões de julgamento do Supremo (iniciado pelo julgamento da Ação Penal 470, conhecida como Mensalão, e exponenciada pelos julgamentos da Operação Lava Jato) e a mudança do quadro de julgadores da Corte. No julgamento do habeas corpus 126.292/SP, de relatoria do Min. Teori Zavascki, o Tribunal, por maioria, reverteu aquilo que havia consolidado em 2009. Em linhas gerais, considerou-se que a presunção de inocência vai diminuindo a partir da reiteração de condenações pelas instâncias de jurisdição.

Outro argumento trazido para sustentar a tese vencedora foi que a segunda instância encerraria a possibilidade de discussão fático-probatória, portanto a possibilidade de reversão de uma condenação nos Tribunais Superiores seria demasiado reduzida. A fundamentação dos votos que aderiram à posição da maioria também fez referência à necessidade de se combater a corrupção, ao papel do Tribunal como um porta-voz da sociedade e ao trânsito em julgado como exigência para cumprimento de pena ser uma singularidade jurídica de nosso país.

Em nenhum momento a tese vencedora esclareceu suficientemente a acrobacia hermenêutica para burlar a expressa delimitação imposta pelo art. 5º, LVII da Constituição. Como dizer que o cumprimento antecipado da pena não seria uma violação de norma constitucional, mais ainda, de uma cláusula pétrea?

O objeto das ADCs é a declaração de constitucionalidade do art. 283[1] do Código de Processo Penal, o qual nada mais faz senão replicar a determinação constitucional. Alguns dos advogados que já fizeram suas sustentações orais no julgamento iniciado esforçaram-se para repisar a obviedade do princípio da inocência: trânsito em julgado significa esgotamento dos recursos; não considerado culpado implica não iniciar o cumprimento de pena. Assinalamos que essa discussão limita-se à prisão para execução de pena. As prisões provisórias, temporárias ou preventivas, continuarão a ser decretadas de acordo com o entendimento das autoridades judiciais, em qualquer fase processual.

A conjuntura político-judicial traz alguns elementos para rondar o julgamento do STF: a) como condicionar o cumprimento de pena ao trânsito em julgado vai repercutir em processos da Lava Jato; b) como a decisão vai afetar a situação processual do ex-Presidente Lula; c) quantas pessoas serão colocadas em liberdade por decorrência dessa decisão; d) as promessas de protestos caso seja revertido o entendimento de 2016.

Esses pontos e todas as demais consequências do julgamento são irrelevantes para o cerne do debate: a força normativa do preceito de presunção de inocência.

O Supremo Tribunal Federal não pode velejar ao sabor dos ventos da opinião pública. Pesquisas de opinião indicam que grande parte da população é favorável à instituição da pena de morte. Isso significa que o Supremo pode burlar a vedação constitucional à pena de morte, para satisfazer a voz das ruas? Certamente não.

O peso da toga é arcar com o fardo de tomar decisões impopulares. Precisamente por isso nosso sistema não adota eleições para juízes. Se o Supremo restabelecer o posicionamento de 2009, adotando uma postura contra majoritária, estará julgando em conformidade com as garantias constitucionais, parâmetro muito mais seguro e menos efêmero do que as vozes da turba e os eventos de ocasião. Ao preservar o ordenamento, o Judiciário tutela a população de si mesma.

Retomando a indagação inicial: não podemos compactuar com a punição colateral de inocentes, a fim de punir mais culpados[2]. Essa é a única interpretação possível dos arts. 5º, inc. LVII da Constituição e do art. 283, do Código de Processo Penal. A liberdade está entre os bens jurídicos mais elevados de nosso ordenamento jurídico. Para tolhê-la de alguém, necessita-se de um grau elevado de certeza – e o texto constitucional sedimenta que essa certeza só é atingida quando encerrados os recursos. Caso tolhida por equívoco, ainda que por curto período, não haverá indenização capaz de repará-la.


[1] Art. 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

[2] Alexandre Wunderlich e Salo de Carvalho já alertavam para isso em 2005: “(…) cumpre lembrar que o acesso aos recursos (direito do duplo grau de jurisdição e do devido processo penal), deve ser considerado como garantia processual constitucionalizada, como um direito fundamental inegociável. Somente desde esta perspectiva haveria a legitimação de um dos principais postulados do modelo penal de garantias, qual seja, o ônus de eventual impunidade de um culpado amparado pelo bônus de que nenhum inocente cumpra injustamente pena”. WUNDERLICH, Alexandre e CARVALHO, Salo. Crítica à execução antecipada da pena (a revisão da súmula 267 pelo STJ) in : Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 149, abril/2005.[:]

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