Existe abuso de autoridade no Brasil?

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Cássio Macedo

19/08/2019

 

O projeto de lei que dispõe sobre novos crimes de abuso de autoridade deve ser debatido com atenção e, especialmente, com o rigor técnico que é exigido para legislar penalmente.

Primeiramente, percebe-se uma inovação em leis penais que é a expressão “mero capricho” em seu primeiro artigo. No entanto, trata-se de uma inciativa louvável em diversos aspectos. Antes de apontá-los, cabe uma ressalva: enquanto advogado criminalista há de se combater sempre os tipos penais em aberto. Não podemos aplaudir a criação de legislação penal com excesso de elementos normativos ou subjetivos, isto é, elementos que não são descritivos e, desse modo, exigem um juízo valorativo acerca do que está escrito na lei (“mero capricho” talvez seja o melhor exemplo). Nesse caso, não pode ser diferente: se a aplicação da lei depende da interpretação de quem irá investigar, denunciar e julgar, cada qual atribuindo sentido ao que o legislador deixou “em aberto”, significa que será uma lei possivelmente “abusada”, o que causaria uma espécie de antropofagia jurídico-penal: o cometimento de abusos por meio da nova lei de abuso de autoridade.

Quanto ao mérito da lei, entendo que a pergunta inicial que deve ser feita é: atualmente, convive-se com abuso de autoridade em nosso país? Acredito que sim. Convive-se de maneira combativa ou conivente? Entendo que, em geral, nossa tendência é conviver de maneira leniente com o abuso de representantes do estado brasileiro.

A leniência dos órgãos de controle dos poderes da República fez algo que tem se repetido em nossa história recente: criminalizam-se condutas que já eram ilegais. Como por exemplo, a questão da condução coercitiva. Contudo, esse exemplo está associado a uma figura específica e as leis penais não devem ser pensadas a partir de exemplos pessoais, então, furto-me de adentrar no campo de como esse instituto foi utilizado ao arrepio dos requisitos processuais penais.

Para ilustrar meu ponto, trago algumas provocações sobre novos crimes propostos na lei: são os tipos penais dos artigos 12, 13, 14, 17, 20, 21, 23 e 24. Recomendo a todos a leitura e proponho o exercício de distanciamento dos eventos que chacoalham o mundo político cotidianamente para pensarmos racionalmente enquanto sociedade por meio de situações hipotéticas.

Queremos uma sociedade que normaliza que mulheres grávidas presas devam usar algemas durante o trabalho de parto? (art. 17) Não deveria ser crime manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento? (art. 21) Não deveríamos combater mais duramente a autoridade policial que não comunicar prisão em flagrante no prazo legal ao Poder Judiciário (art. 12)? ou que altere a “cena do crime” e constranja terceiros a alterar elementos materiais do crime (arts. 23 e 24)? Adianto que não quero viver em uma sociedade que impeça o contato pessoal e reservado do cidadão preso com o seu advogado (art. 20).

Todas as condutas acima são sabidamente ilegais, mas, mesmo assim, ocorrem naturalmente em nosso país. As autoridades que, por intermédio de seu poder, deixaram ou fizeram acontecer situações dessa sorte não deveriam ser responsabilizadas penalmente? Entendo que sim. Vale destacar que o projeto prevê a persecução penal para qualquer autoridade que utilizar dolosamente de seu cargo público para cometer excessos. Ainda, destaco aqui a questão do dolo e a previsão disposta no §2º do art. 1º do PL, a qual prevê que a divergência na interpretação da própria lei ou na avaliação de fatos e provas não irá configurar, por si, abuso de autoridade. Desse modo, está afastada qualquer hipótese de crime de hermenêutica, uma das preocupações em relação ao tema. Em outras palavras, os agentes públicos que não atuam à margem da lei não tem nada a temer. E os que vierem a cometer excessos puníveis contarão com as garantias do devido processo legal, tal qual qualquer cidadão comum.

O poder de punir do Estado deve sempre ser limitado, pois é assim que a democracia avança e nos afastamos da barbárie. O Estado também deve ser mínimo em sua intervenção penal e, obviamente, deve impor limites aos seus representantes que, dolosamente, desvirtuarem sua atuação.

A sociedade brasileira precisa parar e refletir sobre a normalização dos absurdos com que, lamentavelmente, aprendemos a conviver. Para finalizar, volto aos novos crimes do projeto de lei: os dos arts. 13 e 14, pois ambos criminalizam as condutas de constranger e expor o cidadão preso, de modo a humilhá-lo, de exibi-lo à sociedade como troféu, enfim, de praticar a execração pública. Pensando nas situações que ensejaram a criação desses tipos penais, lembro-me dos registros de Robert Capa, fotógrafo húngaro que desembarcou com os aliados nas praias da Normandia em junho de 1944 portando apenas uma câmera fotográfica. Alguns meses depois desse evento, ele registraria cenas que se repetiram em diversas cidades francesas libertas da ocupação nazista: a população, sedenta por justiçamento, saiu às ruas perseguindo o alvo mais fraco: as mulheres que haviam colaborado com o inimigo. Elas foram humilhadas de todos os modos e tiveram seus cabelos raspados em público. Procurem por les femmes tondues e vejam as fotos. É claro, trata-se de outra época e de um cenário de guerra, mas, questiono-me, se estamos mais distantes ou próximos de eventos assim. Sinceramente, não sei, mas tenho certeza de que a tolerância ao abuso de poder está ligada ao autoritarismo e ao sentimento de vingança e, se alimentarmos isso, estaremos escolhendo o caminho contrário ao da democracia.

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