Fato consumado e recuperação de empresas

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Gabriel Garibotti e Luis Felipe Spinelli 

21/10/2019 – JOTA

 

Aplicar a teoria nas recuperações é tão ou mais importante do que aplicá-la nas áreas em que o instituto se popularizou 

A teoria do fato consumado já é conhecida no Brasil há décadas, sendo aplicada especialmente em matéria de educação (aluno que obtém liminar que o permite cursar determinada cadeira ou fazer a matrícula em certa instituição de ensino, e, após anos, com o aluno já formado, há decisão em sentido contrário à tutela de urgência deferida) e de nomeação a cargos públicos (indivíduo que obtém liminar referente ao exame físico ou ao exame psicológico, é nomeado com base na tutela de cognição sumária, está no cargo há anos e somente então é proferida decisão de mérito em sentido contrário à liminar). Muito menos recorrente é a incidência do instituto no âmbito do direito de insolvência.

Todavia, aplicar a teoria do fato consumado nas recuperações de empresas – particularmente na recuperação judicial, mas também na recuperação extrajudicial – é tão ou mais importante do que aplicá-la nas áreas em que o instituto se popularizou.

Isso porque nas reestruturações, além de usualmente tratar-se de decisões proferidas após o curso de um longo procedimento (decisão de homologação do plano de recuperação judicial, por exemplo), se está diante de um cenário em que há uma série de sujeitos envolvidos que não necessariamente são partes e que precisam ter seus direitos tutelados.

O tempo do processo de recuperação, naturalmente, não é o tempo da economia. E, por isso, é preciso conferir-lhe estabilidade com o intuito de trazer segurança aos envolvidos – não só à devedora, mas aos credores e eventuais terceiros, como adquirentes de bens e UPIs da recuperanda.

Assim, não é desejável que, após um plano de recuperação judicial já estar homologado e sendo cumprido, que o Tribunal de Justiça ou o Superior Tribunal de Justiça revejam a decisão sob a alegação de existir alguma invalidade, determinando a apresentação de novo plano e a realização de nova assembleia geral de credores: parece evidente que eventuais recursos perderam-se no tempo.

Igualmente, após autorizada judicialmente a venda de determinado bem e realizada a sua alienação, como reverter tal decisão sem afetar o direito de terceiros de boa-fé? Isso, evidentemente, sem falar no financiamento DIP, que precisa de estabilidade para que possa funcionar. Na prática, a recuperação de empresas é como um castelo de cartas e, retirando uma delas, o desmoronamento do todo pode ser inevitável.

Ora, quem compraria algum bem em um processo de recuperação judicial se não há a mínima garantia de que a operação será mantida hígida? E como viabilizar que dinheiro novo ingresse diante de grandes incertezas?

Dessa forma, e independentemente de se defender a teoria do fato consumado com base na aplicação dos arts. 47 e 61, §2º, da Lei 11.101/2005, sua aplicação deve ocorrer à semelhança da construção ocorrida nos Estados Unidos com a equitable mootness (guardadas as devidas peculiaridades, uma vez que lá, por exemplo, tal doutrina inviabiliza o próprio conhecimento do recurso).

Assim, (i) não se tendo efeito suspensivo quando da interposição do recurso (o que pode ser garantido por meio da prestação de caução, como autoriza a legislação processual civil e como ocorre nos EUA), (ii) estando o ato (venda, DIP financing ou o plano de recuperação) consumado de modo substancial, (iii) caso a tutela recursal afete direitos de terceiros (de boa-fé) e (iv) se a tutela recursal afetar o plano de recuperação ou o ato de modo substancial, não é adequado que a decisão seja revertida.

Seria de bom tom que o legislador, diante da tramitação dos projetos de reforma da Lei 11.101/2005, previsse tal mecanismo para dar maior segurança aos processos recuperatórios – como ocorre nos Estados Unidos com a statutory mootness, que garante estabilidade aos financiamentos DIP e à venda de bens realizadas com autorização judicial.

Isto é, a própria legislação americana prevê que certas transações operadas no bojo da reestruturação de um devedor não são passíveis de reversão por meio da interposição de recursos a tribunais, a menos que o efeito suspensivo tenha impedido a consumação da operação.

A previsão expressa desse instrumento de estabilidade na legislação falimentar pátria, sem dúvida, traria grande contribuição ao desenvolvimento econômico do País.

De qualquer sorte, ainda que o legislador perca tal oportunidade, a jurisprudência já tem se manifestado nesse sentido, existindo alguns precedentes reconhecendo, ao julgarem o mérito dos recursos interpostos, a inadequação de reversão da decisão. A tutela da confiança é indispensável a todos os envolvidos. E, afinal, como diz o dito popular, um fim horrível parece melhor do que um horror sem fim.[:]

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