Grupos econômicos e o Parecer nº 4/2018 da Receita

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Pedro Demartini
JOTA
14/02/2019

A silenciosa ampliação do conceito de interesse comum no fato gerador

Nos últimos anos, tem sido cada vez mais comum a utilização do artigo 124, inciso I, do Código Tributário Nacional para responsabilização de empresas do mesmo grupo econômico, em decorrência de mero interesse comum na situação que constituiu o fato gerador do tributo devido, acarretando, inclusive, na inclusão da empresa como parte em autos de infração e no redirecionamento de execuções fiscais.

De acordo com o artigo 124, inciso I, do CTN, “são solidariamente obrigadas as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou, como no AgRg no AREsp 603.177/RS, no sentido de que o simples fato de empresas pertencerem ao mesmo grupo econômico não seria suficiente para a aplicação da solidariedade de todas as empresas do grupo quanto ao pagamento de tributo devido por uma delas.

Entretanto, verifica-se que, muitas vezes, o termo interesse comum acaba sendo utilizado para grupos econômicos como sinônimo de controle unitário na condução dos negócios, confusão patrimonial ou até mesmo fraude ocasionada por um (ou parte) de seus integrantes.

Pois bem. Tratando (inclusive) da responsabilidade tributária de grupos econômicos, foi publicado o Parecer Normativo nº 4, de 10 de dezembro de 2018, por meio do qual a Receita Federal do Brasil expôs seu entendimento acerca do tema, declarando que a “responsabilidade tributária solidária a que se refere o inciso I do art. 124 do CTN decorre de interesse comum da pessoa responsabilizada na situação vinculada ao fato jurídico tributário, que pode ser tanto o ato lícito que gerou a obrigação tributária como o ilícito que a desfigurou.”

Dentre outros pontos abordados no Parecer, a Receita Federal firmou entendimento no sentido de que devem ser considerados atos ilícitos e passíveis de responsabilização solidária aqueles decorrentes de abuso da personalidade jurídica, nos quais há desrespeito à autonomia patrimonial e operacional das pessoas jurídicas mediante direção única, ocasionando o chamado grupo econômico irregular.

O referido grupo econômico irregular teria como característica a unidade de direção e de operação das atividades empresariais de mais de uma pessoa jurídica, o que, por si só, demonstraria uma artificialidade da separação jurídica de personalidade, ou seja, uma separação sem uma justificativa empresarial.

Diante desses apontamentos, esse grupo econômico irregular realizaria – ainda que indiretamente – o fato gerador dos respectivos tributos, permitindo que seus integrantes sejam responsabilizados por possuírem interesse comum.

Fato é que a Receita Federal, apesar de trazer uma ressalva válida, qual seja a de que “não é a caracterização em si do grupo econômico que enseja a responsabilização solidária, mas sim o abuso da personalidade jurídica”, claramente extrapola o conceito de interesse comum ao afirmar que o interesse pode ser tanto no fato gerador como na relação jurídica relacionada ao fato gerador.

Primeiramente, importante esclarecer que, de acordo com a Exposição de Motivos da Lei das Sociedades por Ações¹, o próprio legislador reconheceu que foi uma opção a não criação da “responsabilidade solidária presumida das sociedades do mesmo grupo, que continuam a ser patrimônios distintos, como unidades diversas de responsabilidade e risco”, uma vez que “tal solidariedade, se estabelecida em lei, transformaria as sociedades grupadas em departamentos da mesma sociedade, descaracterizando o grupo, na sua natureza de associação de sociedades com personalidade e patrimônio distintos.”

Nesse sentido, a Lei das Sociedades por Ações, em seu artigo 266, ratificou o entendimento inicial ao dispor que as sociedades que integram os grupos econômicos, sejam eles de fato ou de direito, têm total autonomia jurídica e econômica, mantendo afastados seus bens e patrimônios, bem como suas personalidades jurídicas.

Ao tratar dos consórcios, por sua vez, a Lei das Sociedades por Ações em seu parágrafo 1º do artigo 278, também foi expressa ao determinar que não haverá presunção de solidariedade entre as pessoas jurídicas que compõem o grupo econômico, preservando a autonomia de cada uma.

Ademais, deve-se considerar que a aplicação do artigo 124, inciso I, do Código Tributário Nacional, depende de interesse jurídico comum entre as partes envolvidas, e não de interesse social ou econômico. Mas não é só isso. O fato de o artigo 124, inciso I, do Código Tributário Nacional regular tão somente a prática comum do fato gerador, evidencia que essa não é a ferramenta legal adequada para responsabilização de grupos econômicos.

Nesse sentido, Maria Rita Ferragut, ao tratar do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e os grupos econômicos², afirma que “o mero interesse social, moral ou econômico nas consequências advindas da realização do fato gerador não autoriza a aplicação do art. 124, I, do CTN. Deve haver interesse jurídico comum, que surge a partir da existência de direitos e deveres idênticos, entre pessoas situadas no mesmo polo da relação jurídica de direito privado, tomada pelo legislador como suporte factual da incidência do tributo.”

Ainda sobre o tema, e na mesma doutrina, Maria Rita Ferragut conclui que o artigo 124, inciso I, do Código Tributário Nacional só pode ser utilizado para responsabilizar solidariamente os grupos econômicos quando houver prática conjunta do fato gerador, não sendo possível a utilização desse mesmo artigo – ainda que na hipótese de fraude – sem que tenha havido a prática comum do fato gerador, já que a lei não permite essa flexibilização do sentido da norma.

Ora, está claro que para caracterização da solidariedade, prevista no artigo 124, inciso I, do Código Tributário Nacional, não basta o interesse na relação jurídica relacionada ao fato gerador, como previsto no Parecer Normativo nº 4/2018. É de fato necessário que todas as empresas envolvidas concretizem conjuntamente a situação fática que ocasionou o fato gerador do tributo.

Por essa razão, ainda que o Parecer Normativo nº 4/2018 reafirme que a comprovação pela fiscalização da existência de grupo irregular e o cometimento do ilícito societário seria essencial para responsabilização solidária, deve-se ter em conta que essa comprovação não poderá ser realizada por prova indireta ou meros indícios, mas sim por prova concreta.

Ademais, na contramão do que afirma o Parecer Normativo nº 4/2018, importante esclarecer que o artigo 124, inciso I, do Código Tributário Nacional em momento algum possibilita a responsabilização solidária decorrente de “interesse (…) no fato ou na relação jurídica relacionada ao fato jurídico tributário”, mas tão somente por interesse comum na situação que efetivamente constituiu o fato gerador.

Tentar expandir a interpretação e aplicação desse artigo – ao invés de fomentar a criação de legislação específica sobre o tema – certamente trará reflexos em autuações e redirecionamentos de execuções fiscais sem o embasamento legal correto, criando mais uma fonte de insegurança jurídica às empresas.

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1 Seção I do Capítulo XXI da Exposição de Motivos da Lei 6.404/76.

2 O Novo CPC e seu Impacto no Direito Tributário / Coordenadores Paulo Cesar Conrado e Juliana Furtado Costa Araújo – São Paulo: Fiscosoft, 2015.

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