Quando a regulação patina: o caso da explosão dos patinetes no trânsito

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Daniel Vila-Nova
Conjur
27/05/2019

Assim, seja sob a denominação de scooters, trottinettes e até mesmo patín del diablo, há uma grande confusão a ser resolvida: afinal, o oferecimento desse serviço de micromobilidade urbana deve, ou não, ser regulado?

Regular uma nova tecnologia, seguindo a inspiração da física de Einstein, envolve compreender que o universo de possibilidades regulatórias precisa levar em conta a variação incontável de arranjos urbanos que temos, não apenas no Brasil, mas, também no mundo.

Mais do que um exercício de direito comparado (o que nos seria útil, mas não será o escopo desta análise[1]), a discussão pública a respeito dos parâmetros (ou standards) regulatórios quanto a novas tecnologias não é algo inédito nesse pretenso “admirável mundo novo”.
Em matéria daquilo que, neste milênio, passou-se a chamar de mobilidade urbana, não é demais o resgate do impacto dos automóveis logo ao início do século XX. No início dos 1900’s, comumente, jornais reportavam acidentes e inconvenientes relacionados à novidade da época: os veículos automotores.

Por envolver a integridade física e até mesmo vida dos cidadãos, as notícias a respeito dos acidentes com patinetes e outros veículos autopropelidos revelam uma situação lamentável, que enseja uma séria – e cautelosa – avaliação quanto aos riscos envolvidos, assim como medidas e instrumentos aptos a mitigar tais ameaças.

De outra parte, como preservar o interesse das pessoas, assim como os investimentos econômicos na exploração e na fruição de um serviço que, além de permitir a mobilidade na “última milha” (last mille), agrega elementos lúdicos e de transformação radical da própria estrutura de circulação e logística de bens e de serviços nas cidades?
O balanceamento desses prós e contras não é tarefa simples. Logo, a promessa de panaceias legislativas ou regulatórias é, de antemão, descartada.

Em matéria de regulação, há de se diferençar o cuidado dos sintomas, das causas profundas que se pretende normatizar. Naquilo que a literatura administrativista brasileira consagrou como gerenciamento normativo da realidade[2], é fundamental estabelecer alguns critérios para essa avaliação de custo-benefício[3]. Afinal, o impacto da regulação não pode (nem deve) ocasionar a inviabilidade da própria atividade da regulação. O bebê e a água do banho devem receber destinos diversos.
Desse modo, para fins de um enfrentamento inicial dos limites e das possibilidades das questões constitucionais e institucionais envolvidas, há de se adotar, primeiramente, a premissa da relatividade dos tempos e dos espaços. Por uma questão de escopo, nossa exposição se centrará nos marcos constitucionais (jurídico-políticos) e institucionais (político-jurídicos) que norteiam o tema no Brasil.

Do ponto de vista constitucional, há um tratamento específico a respeito do trânsito. Inicialmente, da perspectiva legislativa, há previsão de que a matéria “trânsito” corresponde a competência “privativa” da União (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, CRFB/1988, art. 22, XI).

Nesses pouco mais de 30 anos de “Carta Cidadã”, a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal (STF) pautou-se por uma tendência centralizadora ao interpretar tal dispositivo. Assim, com raríssimas flexibilizações, segue a prevalecer a interpretação jurídico-política no sentido de que eventuais legislações estaduais e, também, municipais seriam inconstitucionais por vício de competência federativa para a edição de normas a respeito da questão.

O que se parece ignorar é que, paralelamente à competência para legislar, o art. 23, Inciso XII, da CRFB/1988, estipula específica competência comum, leia-se: uma atribuição administrativa que deve ser compartilhada entre União Federal, Estados, Municípios e Distrito Federal, para fins de “estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito”.

Observada a necessidade de que tal norma constitucional é, igualmente, válida e aplicável ao tema da regulação do uso dos patinetes, surgem novas possibilidades normativas e institucionais quanto às políticas públicas a implementar.

Ao compreender a questão também a partir do eixo da educação para a segurança do trânsito, o foco da atuação regulatória passa a ser a prevenção – e não somente a repressão ou a estipulação de parâmetros que acabem por inviabilizar a própria lógica comercial da utilização dos serviços de micromobilidade.

Vejam-se, a respeito, as inúmeras disposições do recente decreto do Município de São Paulo (Decreto 58.750/2019) que, a despeito de regular a questão, acabam por limitar, sobremaneira, a própria viabilidade da oferta do serviço. Também não nos impressiona o argumento de que é indispensável a imposição de multas mais severas ou a punição quanto a eventuais excessos na exploração da atividade.

Seja da perspectiva do cidadão que viole as normas de trânsito existentes, seja dos arranjos empresariais que buscam alocar os seus custos de oportunidade e meios tecnológicos de modo a otimizar o retorno da exploração da atividade, há de se ter em mente que já existem normas – gerais e específicas – que regulam a responsabilização de violações ou ameaças de lesão a direitos, tanto do ponto de vista civil, quanto do penal e do administrativo.

Logo, já um marco de regulação de responsabilidades. Se os níveis de responsabilização são, ou não, adequados, é uma matéria que merece um debate público qualificado e sereno. Afinal, a ênfase deve ser proporcionada não somente quanto à punição de agentes infratores, mas, por indicação constitucional, também à promoção de segurança viária – um elemento normativo que deve ser realizado.

Do ponto de vista institucional, ou político-jurídico, há dois aspectos que merecem nosso destaque.

O primeiro diz respeito à própria discussão federativa embutida. Aqui, apesar da jurisprudência ainda prevalecente no STF, há amplo potencial para que, em nome da emergência de um novo paradigma – o da cooperação federativa –, a implementação dessas políticas preventivas seja organizada a partir da lógica da colaboração mútua entre Municípios, Estados, Distrito Federal e União Federal.

A propósito, considerada a grande variância de arranjos urbanos e geográficos do país, não nos parece fazer muito sentido a adoção de uma legislação nacional que esmiúce todos os aspectos de uma eventual regulação dos patinetes. Pelo contrário, a depender do nível de adesão das 5.570 municipalidades brasileiras, vale a pena apostar no experimentalismo institucional[4] como uma postura que permite a maior diversificação das experiências regulatórias no âmbito do Estado brasileiro.
Ao adotar-se tal postura, essa multiplicidade de laboratórios legislativos nos permitirá observar, com a serenidade adequada, as melhores práticas, assim como os experimentos malsucedidos.

O segundo aspecto diz respeito à ambiência com melhor capacidade institucional para lidar com a questão, dado o nível de amadurecimento do tema. Nesse particular, ainda há grande demanda de harmonização entre o potencial econômico, tecnológico, social, logístico e urbanístico da oferta do serviço e o estabelecimento de limites gerais de normatização. Até mesmo pelo seu impacto local, há uma precedência institucional das Câmaras de Vereadores para o debate amplo da matéria.

Assim, a adoção da anômala figura de decreto municipal que “dispõe sobre regulamentação provisória(!)” – como é o caso do Decreto Paulistano 58.750/2019 – nos causa estranhamento em dois níveis de reflexão.

Num primeiro patamar – o constitucional –, atos de caráter normativo e transitório são típicos do Chefe do Poder Executivo Federal e, excepcionalmente, Estaduais e Distrital. Como se sabe, a edição de medidas provisórias corresponde a ato “com força de lei” que deve se submeter ao crivo do Poder Legislativo correspondente (no caso, Federal, Estadual ou Distrital – Municipal, jamais), para que haja a devida conversão em lei. Afinal, nos termos do Inciso II, do Art. 5º do texto constitucional “ninguém será obrigado fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei”. A medida normativa adotada pela Prefeitura paulistana não supera, portanto, esse vício de inconstitucionalidade formal.

Em um segundo nível, chamou bastante a atenção o fato de que o decreto municipal expedido pelo Prefeito de São Paulo contenha, além da previsão de sanções administrativas e cominações de caráter econômico e administrativo (art. 11 do Decreto), a fixação, quanto às empresas, “prazo de 15 (quinze) dias para se adequar às normas previstas neste Decreto, período em que a fiscalização terá cunho exclusivamente orientativo”.

O prazo nos parece bastante exíguo e, frise-se, foi definido sem que sequer tenha sido precedido de audiência pública (de especialistas e atores sociais e institucionais) ou, ao menos, sondagem (“market sounding”). Não bastasse esse déficit de legitimidade social e democrática quanto à operacionalização de implantação de padrões regulatórios inovadores – para não dizer, em alguns casos, surpreendentes –, o decreto de “regulamentação provisória” (sic) vai além.

No art. 14 da regulamentação municipal, a autoridade normativa já sinaliza aos atores envolvidos que, “no prazo máximo de 90 (noventa) dias”, eventuais ajustes e aperfeiçoamentos serão realizados tendo em vista a “avaliação da utilização desses equipamentos”. Que segurança jurídica é essa, que se aguarda e se impõe em relação aos cidadãos administrados-administradores[5]?
Ao interpretarmos os complexos desdobramentos desse caos regulatório, tanto do ponto constitucional, quanto do institucional, a sensação é a de que não há ovo de Colombo para sanear a questão das incertezas relacionadas ao gerenciamento normativo da realidade.

Sem a assimilação do foco preventivo, seguiremos a sanha de caráter controlista e punitivista quanto à livre iniciativa e ao desenvolvimento das atividades econômicas, em consonância com sua dimensão e respectiva função social. Se o objetivo for, unicamente, o de acolher a opinião pública ou apelos midiáticos para aplacar uma suposta “febre diabólica”, há de se ter a cautela da milenar sabedoria grega: a diferença entre o remédio e o veneno, é a dose (da regulação).
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[1] Para fins de uma interessante reflexão a respeito do tema, destaco o recente artigo de JOÃO PAULO BACHUR e GIULIANO CARDOSO SALVARANI, sob o título “Decreto que regulamenta patinetes elétricas gera insegurança jurídica a empresas e usuários”, em que os articulistas abordam a regulamentação no Município de São Paulo (Decreto 58.750, editado em 13 de maio de 2019 e publicado no dia seguinte). No texto, os autores realizam aproximações com a normatização (“Charte De Bonne Conduite”) dos usos dos trottinetes na Ville de Paris. Link: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/decreto-que-regulamenta-patinetes-eletricas-gera-inseguranca-juridica-a-empresas-e-usuarios-23052019.
[2] SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às Agências Reguladoras. In: SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000.
[3] A esse respeito, veja-se a obra de CASS SUSTEIN (The cost bennefit state: the future of regulatory protection. Washington: ABA, 2002).
[4] UNGER, Mangabeira. A constituição do experimentalismo democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 257, p. 57-72, mai. 2011. ISSN 2238-5177. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/8584. Acesso em: 24 Mai. 2019.
[5] A noção de cidadania administrada-administradora foi desenvolvida pelo autor, a partir do pensamento do Professor GARCIA DE ENTERRÍA. Para maiores aprofundamentos, vide VILA-NOVA, Daniel Augusto. “Rádios Comunitários, Serviços Públicos e Cidadania: uma nova ótica constitucional para a crise dos serviços de (tele)comunicações no Brasil. São Paulo: LTR, 2009.”

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