O Desafio Da Judicialização No Setor Elétrico

Rômulo Mariani
Canal Energia
13/10/2017

Passivo do GSF cresceu 45% em agosto, para R$ 3,72 bilhões. CCEE evita falar em paralisação do mercado, mas alerta que a conta deverá aumentar exponencialmente nas próximas três liquidações

A liquidação financeira do mercado de curto prazo em agosto foi concluída nesta semana pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), sendo que 54% do total financeiro ficou em aberto por causa de liminares vigentes que questionam o pagamento do risco hidrológico por agentes com contratos no mercado livre. A CCEE contabilizou R$ 6,82 bilhões, porém os credores receberam apenas R$ 2,54 bilhões. Do valor não pago em agosto, R$ 3,72 bilhões estão protegidos por ações judiciais e R$ 560 milhões representam inadimplência pura na liquidação.

Chama a atenção o crescimento do passivo do GSF na comparação julho/agosto: passou de R$ 2,55 bilhões para R$ 3,72 bilhões, aumento de 45,9%, ou R$ 1,17 bilhão. O crescimento acelerado é explicado pela combinação de dois fatores: hidrologia ruim e Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) no teto regulatório. Segundo o presidente do Conselho de Administração da CCEE, Rui Altieri, o resultado da liquidação de agosto aponta para a velocidade que o passivo do GSF deverá crescer nas próximas três liquidações, relativas aos meses de setembro, outubro e novembro. “Estamos num momento muito grave, mas não consideramos a hipótese de paralisação do mercado de energia. Estamos trabalhando para evitar isso”, disse Altieri.

São 161 liminares vigentes relacionadas ao GSF, que podem ser divididas em três grandes blocos, como mostra o quatro abaixo. As ações envolvendo GSF são as que mais preocupam o mercado e as que têm causado maior transtorno. Porém, o setor vive uma avalanche de liminares de todo o tipo, destaque para litígios contra à aplicação da resolução CNPE 03, pagamento da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e a mais recente, pagamento da indenização das transmissoras (RBSE).

O advogado Rômulo Mariani, do escritório Souto Correa, lembrou que desde o início das privatizações nos anos 90 o setor elétrico convive com algum grau de judicialização. “Historicamente, o setor elétrico sempre teve um nível de judicialização, em maior ou menor grau, mas claro que nunca comparado com o que temos vivenciado nos últimos anos”, disse Mariani.

Um nível mais alto de judicialização ocorreu entre 2001 e 2002, quando o Governo Federal brasileiro forçou a repactuação de contratos em meio a um cenário de racionamento de energia. Nos últimos 17 anos, 933 ações judiciais impactaram o setor elétrico de alguma forma, sendo que em 537 casos a CCEE esteve no polo passivo da disputa, como mostra levantamento feito pela própria Câmara, representadas temporalmente no gráfico abaixo.

“A judicialização é muito danosa para o mercado, tem uma séria de efeitos que são verdadeiros. Por exemplo, em um momento em que as usinas a biomassa poderiam ofertar um pouco mais de energia, elas não geram por conta da judicialização”, disse Altieri. “Recentemente recebemos uma comitiva de investidores e a primeira pergunta foi sobre o GSF. Não dá para falar que não é uma preocupação dos investidores”, completou.

Segundo Altieri, o tema do GSF caminha para uma solução, embora ainda não seja possível cravar um prazo. A negociação com os agentes envolve separar o que é risco hidrológico puro dos deslocamentos do MRE causados por atrasos em linhas de transmissão, importação de energia, geração fora da ordem de mérito, e aceleração de garantia física de hidrelétricas estruturantes como Santo Antônio, Belo Monte, Jirau, e Teles Pires.

Uma vez feita essa distinção, o que for risco hidrológico será absorvido pelos geradores. O montante financeiro restante também será pago pelas empresas, porém haverá uma compensação por meio da extensão de contrato de concessão. “Estamos caminhando para uma solução. O conceito está estabelecido: apurar o passivo e transformar em extensão da concessão o que não for risco hidrológico. Falta apenas definir como serão tratadas algumas questões para o futuro”, disse Altieri.

CONTORNANDO A CRISE

A judicialização não pode ser vista apenas pelo aspecto negativo. É inegável o transtorno causado no setor elétrico pela interferência do judiciário, porém os agentes são experientes jogadores e aprenderam a conviver com o atual momento de judicialização. “Temos agentes capacitados para lidar com um setor que é historicamente conturbado”, salientou Mariani.

Desde meados de 2015, quando a discussão sobre o GSF ganhou destaque nas páginas de jornais, algumas mudanças podem ser verificadas no mercado. Geradores passaram a ser mais cautelosos, deixando descontratada uma parcela maior de energia para se proteger do GSF. Outro movimento notável dos geradores está na diversificação de portfólio. Agentes que antes estavam mais concentrados na matriz hidrelétrica agora estão investindo em ativos não-hídricos, seja através de M&A, seja através de investimentos em projetos greenfield.

No campo da comercialização, o risco de não receber na liquidação da CCEE fez com que agentes com sobra de energia vendessem seus megawatts a preço bem inferior ao PLD, criando deságios superiores a 30% no mercado de curto prazo em alguns momentos, como pode ser visto no gráfico abaixo elaborado pela consultoria GV Energy.

Comercializadoras e consumidores livres também adaptaram suas estratégias ao cenário de judicialização. Segundo Pedro Machado, sócio da GV Energy, comercializadoras, que normalmente são vendedoras de energia, passaram a ser compradoras no período em que uma liminar da Associação Brasileira de Comercializadores de Energia (Abraceel) garantia aos associados a preferência no recebimento dos créditos do mercado de curto prazo.

Nesse período, Machado contou que sua empresa foi bastante procurada por agentes interessados em comprar sobras de energia de seus clientes. A GV Energy presta consultoria para consumidores livres. A estratégia de algumas comercializadoras foi comprar essas sobras com desconto e deixar essa energia fosse liquidada ao PLD, se valendo da liminar para receber seus créditos na frente de outros credores do mercado.

A estratégia dos comercializadores perdeu atratividade com a queda da liminar da Abraceel em julho, fazendo o spread dos contratos bilaterais em energia convencional abrir para até -70%, em um movimento de mudança de posição das comercializadoras.

Na outra ponta, com a mudança regulatória que permitiu a cessão de contratos, os consumidores viram na venda de energia uma oportunidade de melhorar seus resultados financeiros em meio a uma crise econômica no Brasil. “As indústrias perceberam que dava para fazer grana vendendo energia”, pontuou Machado. “De 2016 a 2017, as operações para apoiar meus clientes para venda de sobras de energia cresceram 500%”, disse.

Para contratos de energia de longo prazo, disse Machado, antes os consumidores compravam energia com um percentual a mais, pois, uma vez que não consumissem tudo, poderiam vender essa sobra de energia no mercado. “Agora eles compram um percentual abaixo da sua necessidade, ou pedem mais flexibilidade nos contratos”, explicou.

“Com o GSF, o consumidor passou a pedir mais flexibilidade e o fornecedor a dar menos. Ninguém quer mais vender flexibilidade. Antes você pedia 15% de flexibilidade em um contrato de longo prazo, hoje se você pedir 5% o vendedor te olha de lado”, disse Machado.

APOSTA NA INCERTEZA

Para o Rui Altieri, da CCEE, operar no mercado com base em ação judicial é apostar na incerteza, pois o resultado de um litígio nem sempre poderá ser o melhor para o agente ou para o setor.

Exemplo disso é disputa entre a Eletrobras e a AES Eletropaulo que se arrasta desde 1988. A discussão gira entorno da responsabilidade do pagamento de um empréstimo concedido pela Eletrobras em favor da então estatal paulista de energia. Pelos cálculos da Eletrobras, a dívida atualizada está em R$ 2 bilhões, valor próximo ao que a Enel pagou para adquirir o controle da distribuidora goiana Celg. Na semana passada, Eletrobras e Eletropaulo assinaram um acordo para suspender a ação e tentar resolver a questão de forma negociada.

Muitas vezes a judicialização é o único caminho que resta para o agente.

Rômulo Mariani, do Souto Correa

O advogado Rômulo Mariani pondera, contudo, que muitas vezes a judicialização é o único caminho que resta para o agente. “Esse movimento de judicialização não pode ser visto como algo que vai contra o setor elétrico. Nem sempre a boa vontade do regulador e do Poder Concedente é suficiente para resolver o problema”.

Alexei Vivan, presidente da Associação Brasileira das Companhias de Energia Elétrica (ABCE), disse que historicamente as concessionárias sempre evitaram a judicialização. A dificuldade do judiciário em entender a complexidade do setor elétrico introduzia o risco de decisões ruins. Além disso, os agentes evitavam se indispor com a Aneel ou com o Poder Concedente.

“O que acontece hoje é que as empresas já têm pronta uma medida judicial para o caso de não conseguirem uma decisão negociada. A judicialização se tornou mais uma estratégia”, disse executivo. Na opinião de Vivan, para cada erro que tiver por parte do regulador ou do Poder Concedente haverá uma liminar para evitar um desembolso imediato. “Essa situação não é nada saudável para o setor”.

Para o diretor geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Romeu Rufino, há três caminhos que precisam ser trilhados para se chegar a uma melhora do nível de judicialização no setor elétrico. Primeiro, as decisões tomadas pelo regulador e pelo Poder Concedente precisam ser cada vez mais discutidas com os agentes. “As autoridades precisam ter a consciência que é preciso melhorar a qualidade dos atos que são praticados”, afirmou Rufino.

O segundo ponto criticado pelo regulador é que os agentes têm delegado à gestão de seus negócios aos escritórios de advocacia. “Viver administrando problemas com base em liminar é um negócio arriscado. Deslocar para o judiciário uma questão administrativa talvez não seja uma boa estratégia, porque daqui a pouco o mercado trava”, disse Rufino. “É fundamental que haja uma consciência que o nível de judicialização nos patamares que estamos trava o mercado, causando um custo de transação e uma instabilidade que não interessa a ninguém”, completou.

Por último, Rufino pede que o judiciário evite entrar no mérito administrativo das discussões e se concentre em avaliar a legalidade dos atos. “Acho que nessas três vertentes precisamos melhoras e tenho identificado evoluções importantes”, disse o regulador.

“Se há uma falha do regulador, que aponte para que a gente possa melhorar. Eu sei que tem e estamos fazendo um esforço para melhorar. O meu apelo é esse. Vamos resgatar a capacidade de resolver os assuntos do setor elétrico sem deslocar as decisões importantes para a Justiça”, concluiu.

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