O mosaico do risco hidrológico e seus impactos no mercado

Gustavo Kaercher e Lívia Amorim
Valor Econômico
20/10/2017

Desde 2014, o mercado de energia elétrica no Brasil tem vivido tempos difíceis no que diz respeito à liquidação das transações de comercialização de energia no curto prazo. Os últimos números divulgados para a liquidação de agosto de 2017 revelaram um montante de R$ 4,28 bilhões em aberto, a serem recebidos pelos credores.

Em um cenário de ruptura de condições estruturais do setor, manifestada em grande escala pelos pleitos relativos ao gerenciamento do risco hidrológico – o GSF, no jargão setorial – e (até então) na falta de uma solução igualmente estrutural para o problema, o impacto foi sendo repassado adiante através de sucessivas “gerações” de liminares.

A primeira geração de liminares foi concedida em resposta a questionamentos de que estariam sendo transferidos aos geradores hidrelétricos riscos que excediam o risco assumido na origem, que contemplava uma outra conformação da matriz energética e uma operação do sistema pautada por decisões técnicas e segundo o parâmetro de déficit legalmente estabelecido.

Como as causas da subperformance não estariam relacionadas a riscos por eles assumidos e gerenciáveis, os custos da exposição ao mercado de curto prazo não deveriam ser repassados a estes agentes. Na implementação das decisões, o impacto foi transferido aos geradores hidrelétricos participantes do MRE que não haviam obtido a liminar de “primeira geração”.

A segunda geração de liminares, então, buscava proteção dos efeitos das primeiras liminares, de modo que a exposição não fosse repassada aos geradores do MRE, por entender que o repasse representava o compartilhamento de um risco financeiro – associado às decisões de primeira geração – e não o risco hidrológico objeto do compartilhamento pactuado pelo MRE. Na implementação das decisões, o impacto foi transferido aos agentes credores do mercado de curto prazo, o que levou à alocação pelo rateio de inadimplências em resposta a perdas.

Por fim, foi a vez dos agentes com possível exposição positiva ao mercado de curto prazo – os credores – judicializarem a questão, o que levou à terceira geração de liminares. Neste caso, as ações buscavam proteção contra o rateio dos valores devidos em função das liminares de primeira geração e repassados ao rateio da inadimplência pelas liminares de segunda geração. As partes que tiveram concedidas as liminares passaram a receber integralmente seus créditos de exposição ao mercado de curto prazo. Os demais agentes credores não alcançados por estas liminares passaram então a receber um percentual menor do que o de adimplência geral do mercado.

Após longo processo de discussão, a Aneel regulamentou dispositivo da Lei 13.203/15, que permitia repactuação do risco hidrológico. A medida foi objeto de adesão essencialmente por parte dos geradores com contratos negociados nos leilões do ambiente regulado. No entanto, a questão e seus impactos sobre a liquidação financeira das transações do curto prazo permanece sem uma solução de longo prazo. Em consequência, emergem postergações e arranjos particulares, a exemplo do observado para a UTE Mauá 3, que foi excluída do rateio da inadimplência até dezembro de 2018 pela Portaria MME 387/2017. Referido regulamento prorrogou a isenção já outorgada pela Portaria MME nº 179/2016 até dezembro de 2017.

No âmbito da política setorial, é esperado que seja apresentada uma solução pelo governo nas próximas semanas no escopo da primeira etapa da reforma, que cuidará das condições de privatização da Eletrobras e de uma proposta de solução para o GSF e seus impactos. Esse tema está contemplado na Consulta Pública Ministério de Minas e Energia 33/2017, que trata de aperfeiçoamentos no marco legal do setor elétrico.

No âmbito da regulação, a Aneel colocou em audiência pública – AP 50/2017 – proposta de alteração do mecanismo de rateio da inadimplência do mercado.

Atualmente, os credores arcam com as perdas na proporção dos seus créditos. Pela proposta em discussão, todos os agentes do mercado passarão a assumir as perdas, na proporção de seus votos na CCEE – determinados, em grande parte, em função da energia comercializada.

Apesar da relevância da discussão do mecanismo de rateio no escopo de estruturação das regras de um mercado organizado, é importante destacar que esse debate deve fazer parte de um debate maior, que envolve – dentre outras questões – a estrutura de alocação de riscos no mercado e a disciplina de crédito que se quer impor aos agentes, por exemplo com o desenho de instrumentos de garantia mais desenvolvidos (com os quais a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, CCEE, atualmente não conta).

O cenário de escassez hídrica e as sinalizações de que o CMSE buscará alternativas de suprimento de gás a usinas indisponíveis por falta de combustível tornam ainda mais urgente a propositura de um arranjo setorial para a questão, pois aumentará a exposição dos geradores sem contrato ao mercado de curto prazo e a busca por soluções pontuais para o recebimento de seus créditos. Além disso, os agentes têm recorrido ao litígio para debate de outras questões da regulação setorial que impactam a liquidação, a exemplo da recente liminar obtida pela Cesp para não alterar parâmetros do mecanismo de aversão a risco CVaR, o que resulta em um PLD específico para o agente na próxima liquidação. A continuidade deste cenário coloca um grau de incerteza tal sobre os agentes que acaba por favorecer medidas individuais e conjunturais como resposta à falta de uma resposta setorial para o problema.

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