A negociação na recuperação judicial e o Projeto de Lei 4.458/2020

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Luis Felipe Spinelli

26/10/20 – ConJur

 

É inerente à recuperação judicial a negociação entre devedor e credores. O devedor em crise, ao ajuizar o processo recuperacional, deve apresentar um plano de recuperação, o qual usualmente é fruto de longas tratativas com os credores. E os credores têm autonomia para decidir sobre a proposta de reestruturação, corriqueiramente em assembleia geral de credores. A rigor, foi justamente o que a Lei 11.101/2005 buscou.

Para tanto, foi conferida autonomia às partes — devendo o Poder Judiciário adentrar, única e exclusivamente, no exame da legalidade do procedimento assemblear, dos votos lançados no conclave e de dispositivos do plano de recuperação. Nesse sentido, como a prática demonstra, o procedimento de negociação é dinâmico, sendo que, quando necessário, pode-se lançar mão de meios autocompositivos como a mediação e a conciliação — apesar de, infelizmente, não raras vezes o Poder Judiciário interferir nesses processos, normalmente diante de requerimentos de devedores que buscam uma proteção indevida.

E essas são as razões pelas quais causam espécie as propostas do Projeto de Lei 6.229/2005, aprovado pela Câmara dos Deputados e enviado ao Senado Federal, tramitando, agora, sob o nº 4.458/2020, que buscam alterar a Lei 11.101/2005 ao endereçar a questão da negociação, bem como ao buscar estabelecer regras sobre mediação e conciliação, entre devedores e credores nos procedimentos recuperatórios.

Em primeiro lugar, o PL aumenta as competências do administrador judicial, estabelecendo, no âmbito da recuperação judicial, ao modificar o artigo 22, II, da Lei 11.101/2005, que ele deve, entre outras coisas: “e) fiscalizar o decurso das tratativas e a regularidade das negociações entre devedor e credores; f) assegurar que devedor e credores não adotem expedientes dilatórios, inúteis ou, em geral, prejudiciais ao regular andamento das negociações; e g) assegurar que as negociações realizadas entre devedor e credores reger-se-ão pelos termos convencionados entre os interessados ou, na falta de acordo, pelas regras propostas pelo administrador judicial e homologadas pelo juiz, observado o princípio da boa-fé para solução construtiva de consensos, que acarretem maior efetividade econômico-financeira e proveito social para os agentes econômicos envolvidos”.

Disso tudo, derivam alguns questionamentos:

a) Cabe, de fato, ao administrador judicial acompanhar negociação por negociação entre devedor e credores, sendo sua função assegurar que não adotem expedientes dilatórios, inúteis ou prejudiciais?

b) Deve o administrador judicial assegurar que as negociações sigam um procedimento determinado, devendo ele, caso isso não exista, estabelecer as regras para a negociação, o que deve ser homologado pelo juiz?

c) Ademais, é necessário estabelecer que as regras devem ser pautadas pela boa-fé, a fim de que seja feita uma solução construtiva, sempre buscando o maior benefício econômico-financeiro e o melhor proveito social?

d) Por fim, e em síntese, qual o sentido em se prever, agora, o modo como as partes devem negociar?

Parece que o legislador nega a realidade e busca estabelecer atribuições indevidas e que não podem ser minimamente cumpridas de modo adequado pelo administrador judicial — ou mesmo pelo Poder Judiciário.

Mas, infelizmente, não é só isso.

Em segundo lugar, o referido projeto de lei também propõe a inserção dos artigos 20-A a. 20-D na Lei 11.101/2005, estabelecendo aquilo que designa “das conciliações e das mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial”. Tal proposição é igualmente inoportuna e irrazoável.

Isso porque, em primeiro lugar, o artigo 20-A dispõe que “a conciliação e a mediação deverão ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição, inclusive no âmbito de recursos em segundo grau de jurisdição e nos tribunais superiores (…)”. É de se questionar, de forma sincera, se de fato precisa a Lei 11.101/2005 assim dispor considerando o já previsto no Código de Processo Civil e na própria Lei 13.140/2015.

Além disso, refere-se ser admitida a conciliação e a mediação (sendo vedada a negociação sobre a natureza jurídica de créditos, classificação de créditos e critérios de votação em assembleia geral de credores, o que parece evidente), antecedente ou incidental ao processo de recuperação judicial, “I. nas fases pré-processual e processual de disputas entre os sócios e acionistas de sociedade em dificuldade ou em recuperação judicial, bem como nos litígios que envolverem credores não sujeitos à recuperação judicial, nos termos dos §§ 3º e 4º do artigo 49 desta lei, ou de credores extraconcursais; II. em conflitos que envolverem concessionárias ou permissionárias de serviços públicos em recuperação judicial e órgãos reguladores ou entes públicos municipais, distritais, estaduais ou federais; III. na hipótese de haver créditos extraconcursais contra empresas em recuperação judicial durante período de vigência de estado de calamidade pública, a fim de permitir a continuidade da prestação de serviços essenciais; IV. na hipótese de negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial”. Ora, qual a utilidade de existir tal disposição legal? Por acaso, em não existindo tal previsão, as conciliações e mediações seriam proibidas entre tais agentes? Parece-nos claro que não…

Ademais, de acordo com o PL, a mediação e a negociação antecedente podem ensejar a suspensão dos prazos por consenso entre as partes ou por determinação judicial. Assim, não há qualquer parâmetro para a determinação da suspensão dos prazos. É adequado conferir tal competência ao Poder Judiciário sem a fixação de qualquer critério?

O devedor que preencha os requisitos legais para requerer recuperação judicial pode obter tutela de urgência, nos termos da legislação processual, para que sejam suspensas as execuções propostas por credores sujeitos ao procedimento recuperacional pelo prazo de até 60 dias com o objetivo de buscar a composição com seus credores em procedimento de mediação ou conciliação — sendo que, se houver pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, o período de suspensão seria deduzido do prazo do stay period. Mais uma vez, entendemos que se trata de dispositivo que normatiza o que não deve: se existe a necessidade de preenchimento dos requisitos para que seja obtida a tutela de urgência de acordo com o Código de Processo Civil, qual a necessidade de tal alteração legislativa? Isso tudo para não dizer que é um tanto quanto irreal acreditar que o período de suspensão será descontado do prazo do stay period se, atualmente, o que se observa é que a suspensão é usualmente prorrogada sem qualquer cuidado, apesar de a Lei 11.101/2005 dispor que em hipótese nenhuma o stay period excederá o prazo improrrogável de 180 dias…

Mas não acaba aqui. Caso o devedor requeira recuperação judicial ou extrajudicial em até 360 dias, contados do acordo firmado durante a conciliação ou mediação antecedente, os direitos e garantias do credor serão reconstituídos, deduzidos valores eventualmente pagos e resguardando-se os atos praticados. Não seria mais interessante determinar ao credor que colabora e que investiu tempo e recursos na negociação — e que já ficou sujeito à suspensão de medidas executivas — que o acordo seja respeitado em eventual plano de recuperação judicial ou extrajudicial ou, ao menos, autorizar que as partes assim o façam? Por sua vez, não deveria existir previsão de reconstituição dos direitos e garantias, deduzidos eventuais valores pagos e protegendo-se os atos praticados na hipótese de decretação da quebra?

De tudo isso, constata-se que, em verdade, o regime proposto pelo Projeto de Lei tende a aumentar a judicialização da negociação entre credores e devedor — determinando, ainda, que o juiz competente deve homologar o acordo realizado por meio de conciliação ou de mediação de acordo com o procedimento previsto. E parece um contrassenso querer que o Poder Judiciário — ainda que se admita a conciliação e a mediação por meio virtual e realizada pelo Cejusc — assuma mais essa obrigação, disponibilizando recursos humanos e técnicos para viabilizar tais negociações, enquanto é cediço que, atualmente, sequer consegue dar uma resposta adequada a todos os conflitos que batem à sua porta.

A intervenção do legislador na esfera negocial — e que não se esgota nas propostas aqui analisadas, mas que vão além, como a obrigatoriedade de, sem qualquer fundamento, exoneração de garantias de pessoas naturais na hipótese de plano de recuperação apresentado por credores — caminha no sentido contrário do espírito da Lei 11.101/2005 e somente pode ser explicada pelo fetichismo legislativo de tudo querer regrar. Mas o que se antevê é um incentivo perverso: o uso dos instrumentos fornecidos pelo legislador por devedores com o objetivo de ganhar tempo, uma vez que conseguirá suspender as execuções sob os auspícios da preservação da empresa, não existindo qualquer obrigação de efetivamente negociar ou sanção caso a negociação, na prática, não ocorra. Ou seja: mais burocracia, aumento da judicialização, crescimento da insegurança jurídica e dificuldade da satisfação do crédito.[:]

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