A empresarialidade e o acesso ao Direito da Insolvência: um sistema em xeque

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Gabriel Garibotti

12/09/2020 – ConJur

 

O Direito Privado pátrio essencialmente unificou as obrigações de naturezas civil e comercial. Em que pese sejam cada vez menos nítidos os contornos entre referidas classes de obrigações, o critério da empresarialidade ainda tem um papel de suma importância no país: é o critério que define quem pode — e quem não pode — ter acesso à legislação de recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência (Lei 11.101/2005, LREF), exclusiva aos empresários. Ante a inexistência de alternativas à LREF, contudo, há casos na jurisprudência em que o rol subjetivo da LREF tem sido flexibilizado, o que traz à tona novos debates.

 

Diferentes critérios separaram os comerciantes (sujeitos às normas de Direito Comercial) e os não comerciantes ao longo do tempo. O Código Civil de 2002 adotou, para esse fim, a teoria da empresa: a figura do comerciante é aferida a partir do exercício de empresa. Assim, nos termos do artigo 966 do Código Civil, é empresário “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. Por sua vez, nos termos do parágrafo único do referido dispositivo legal, não é empresário aquele que “exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística”.

 

Ocorre que, diferentemente de outrora, já não subsiste em nosso país uma clara distinção entre as obrigações de cunho civil e as de cunho empresarial: comerciantes também fazem uso de institutos de Direito Civil, ao passo que não comerciantes igualmente valem-se de institutos mercantis [1]. Em meio a esse cenário, uma das poucas dimensões em que a empresarialidade de um indivíduo ou de uma sociedade ainda tem papel marcante é a seara do Direito da Insolvência.

 

O ordenamento pátrio conta com um diploma central responsável por reger o Direito da Insolvência: a Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. É o estatuto que disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência. O artigo 1º da LREF já deixa claro seu principal corte subjetivo: a legislação em comento é aplicável ao empresário ou à sociedade empresária (excluídos os não empresários).

 

De outra senda, qual a legislação responsável por disciplinar a reestruturação e a liquidação de não empresários? Infelizmente, o ordenamento jurídico pátrio não conta com remédio legal para endereçar a crise financeiro-econômica desses agentes sob a ótica da reestruturação. Ademais, não bastando a ausência de métodos de soerguimento, a própria liquidação de não empresários (insolvência civil) é um processo lento e ineficiente, ainda regido pelo Código de Processo Civil de 1973 (artigos 748 a 786-A). Nesse sentido, também destaca-se a liquidação extrajudicial de cooperativas, regida pela Lei 5.764/1971 (o tipo societário de “cooperativa” nunca terá natureza empresária, conforme artigo 982, parágrafo único, do Código Civil).

 

E como se justifica a discrepância do tratamento legal conferido aos empresários e aos não empresários? Curiosamente, verifica-se que a distinção operada pela teoria da empresa muito mais é o resultado de uma dependência histórica do que propriamente de algum critério objetivo que confortavelmente pudesse separar estes daqueles [2].

 

As pressões sociais e as necessidades próprias do tráfico mercantil acabaram dando ensejo, finalmente, a pedidos de recuperação judicial por parte de agentes não empresários. É o caso, por exemplo, do recente pedido ajuizado pela Associação Sociedade Brasileira de Instrução (Asbi), mantenedora da Universidade Candido Mendes (Processo nº 0093754-90.2020.8.19.0001, em trâmite perante a 5ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro/RJ).

 

Ademais, na jurisprudência também são encontrados julgados confirmando o trâmite de recuperações judiciais de sociedades não empresárias cujo processamento havia sido admitido pelos respectivos juízos de primeira instância [3]. Nos casos em comento, foi utilizada a teoria do fato consumado (instituto que assume relevância própria na seara do Direito da Insolvência [4]) para ratificar-se a validade dos atos praticados ao longo do trâmite processual.

 

Diante de um pedido de recuperação judicial por parte de um agente não empresário, em uma análise ainda superficial, parecem chocar-se, de um lado, as expectativas dos credores e sua gerência de risco, legitimamente construídas com base nos termos do texto legal, e, de outro, as necessidades próprias do tráfico mercantil (necessidades que o legislador historicamente tem dificuldade de acompanhar).

 

Sabe-se que tem ganhado corpo a discussão quanto à reforma da LREF, principalmente a partir do Projeto de Lei nº 6.229 de 2005, recentemente aprovado pela Câmara de Deputados [5]. O projeto engloba uma série de outros projetos de lei para apresentar um estatuto que segue tendo a LREF como base, mas com incrementos e aperfeiçoamentos importantes. O PL 6.229/2005, porém, não altera a abrangência subjetiva do diploma falimentar, que segue exclusivo aos empresários.

 

Em meio a esse cenário, não se pode encarar o debate com soluções simplistas. Importar não empresários para dentro da LREF sem maiores cuidados poderia, inclusive, ser a receita para um desastre. Nem todos os sujeitos não empresários são iguais: por exemplo, o produtor rural atua em busca de lucro, ainda que a atividade seja não empresária; a associação, por outro lado, é essencialmente destinada a fins não econômicos (artigo 53 do Código Civil); as cooperativas têm um sistema de responsabilidade próprio (artigo 1.095 do Código Civil) etc. Ademais, a falência pessoal das pessoas físicas (consumidores) envolve toda uma outra problemática de políticas públicas (mas o fato é que seria bem-vindo um estatuto capaz de modernizar o ineficiente instituto da insolvência civil). Igualmente não se harmoniza com a equidade conferir tratamento idêntico àquilo que é desuniforme.

 

Ao que tudo indica, seguiremos com esse nó górdio em nosso ordenamento jurídico por mais algum tempo. Corre-se o risco, contudo, de a jurisprudência, tendo de dar solução a anseios sociais, passar a pouco dialogar com a legislação falimentar posta, cenário que privilegia a insegurança.

 

 

 

[1] “A própria divisão do direito privado em direito civil e direito empresarial por vezes se embaralha. A crescente importância das atividades econômicas intelectuais (por definição legal, atividades não empresárias — parágrafo único do artigo 966 do CC), o caráter dúplice da atividade rural (CC, arts. 971 e 984) e a utilização de institutos tipicamente mercantis como as sociedades limitadas, as duplicatas e os bens da propriedade industrial (marcas, invenções) indistintamente por empresários e não empresários contribuem para essa confusão.” SCALZILLI, João Pedro; TELLECHEA, Rodrigo; SPINELLI, Luis Felipe. Introdução ao Direito Empresarial. 1. ed., Porto Alegre: Buqui, 2020, p. 28.

 

[2] “Essa divisão do sistema concursal é fundada em razões de path dependence. Ou seja, atualmente reserva-se o sistema do direito concursal para os agentes qualificados como empresários, enquanto os não empresários são excluídos, apenas porque em um dado momento do passado essa divisão foi afirmada. No entanto, se observado o contexto econômico atual, não há nenhuma razão que justifique a opção de excluir quem não for empresário do sistema concursal da LRF.” AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. 3. ed., rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 3.

 

[3] Nesse sentido: TJSP, Agravo de Instrumento nº 0087069-56.2012.8.26.0000, Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Enio Zuliani, j. 26.06.2012; STJ, REsp nº 1.004.910/RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. em 18.03.2008.

 

[4] GARIBOTTI, Gabriel; SPINELLI, Luis Felipe. Fato consumado e recuperação de empresas. JOTA. Disponível aqui.

 

[5] Link.[:]

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