A incômoda im(p)unidade dos irmãos Joesley e Wesley Batista
Emília Malacarne e Juliana Malafaia
Consultor Jurídico (CONJUR)
01/06/2017
O acordo de colaboração premiada fixado pelos empresários Joesley e Wesley Batista com a Procuradoria-Geral da República tem certa peculiaridade em relação aos demais acordos celebrados no âmbito da operação “lava jato”: para além de expor as entranhas das negociações imorais naturalizadas no sistema político brasileiro, trouxe incômodo quanto às consequências de uma delação premiada espontânea e organizada.
Apesar de cada vez mais comum, a reação social após a divulgação do acordo de colaboração dos irmãos Batista destoou dos demais casos verificados até o momento. Após o alvoroço causado pelas informações veiculadas pela imprensa durante as últimas duas semanas, passou-se a levantar questionamentos quanto às sanções impostas aos irmãos Batista, ou melhor, quanto às sanções não impostas. Restou indigesto aos brasileiros que participantes confessos de esquema criminoso que teria gerado prejuízo bilionário aos cofres públicos estejam, hoje, assistindo ao caos do sistema político e econômico do país no conforto de seus luxuosos apartamentos nova-iorquinos.
Diante disso, questiona-se se tal reação decorre meramente do fato de a delação dos empresários da JBS ser um caso emblemático, ou se os termos desse acordo de colaboração ferem algum princípio norteador do ordenamento jurídico pátrio.
O mandado de segurança impetrado pelo Instituto Brasileiro do Direito de Defesa (Ibradd) questiona, no Supremo Tribunal Federal, a constitucionalidade do acordo. Dentre seus apontamentos, ganham especial destaque questões como falta de proporcionalidade, razoabilidade e moralidade do “conteúdo light e excepcionalmente benevolente e generoso do referido acordo de colaboração premiada em favor dos referidos colaboradores e desfavor da coletividade brasileira”[1].
Observa-se que a alegação de inconstitucionalidade não estaria na delação em si, mas nas consequências brandas suportadas pelos delatores. Isso porque, ainda que impostas sanções, essas não teriam o caráter aflitivo que usualmente se espera de uma pena. Surge aí o “sentimento de impunidade” que tanto incomoda os brasileiros.
E incomoda, dentre outros motivos, também por este: nosso sistema de Justiça criminal é regido pelo princípio da obrigatoriedade da promoção processual[2], sendo a oferta de denúncia uma atribuição do MP fora da sua esfera de disponibilidade. Uma vez constatada a prática de um delito, o parquet está obrigado a propor ação penal, sob pena de incorrer no crime de prevaricação.
Todavia, a Lei 12.850/13 permite a relativização desse princípio, ao autorizar, no parágrafo 4º do artigo 4º, que o Ministério Público deixe de oferecer denúncia contra colaborador que não for líder da organização criminosa e for o primeiro a prestar a colaboração. Vige, no âmbito dessa lei, o princípio da oportunidade.
A questão que remanesce é: os princípios norteadores do processo penal brasileiro são feridos apenas no caso em que a delação premiada é aplicada in extremis, ou são ofendidos também quando fixadas sanções penais de maior proeminência aos delatores sem o devido processo legal?
Entendemos que, seja em um caso ou no outro, se está a ferir a ordem vigente. Contudo, a partir das reações sociais verificadas após as delações dos executivos da Odebrecht e a colaboração dos irmãos Batista, depreende-se que a diferença está no fato de que, no Brasil, tolera-se melhor a violação ao princípio nullum poena sine judicio do que a ofensa ao princípio da indisponibilidade da ação penal.
Kant de Lima, no estudo comparado dos sistemas jurídicos do Brasil e dos Estados Unidos realizado em 1999, chama a atenção para as diferenças essenciais entre os modelos de administração de conflitos e os “sistemas de verdade” em cada país. Destaca que, apesar das críticas possíveis ao sistema norte-americano, a sua lógica é una, inequívoca e universalmente disponível: “A verdade pública é fruto de uma negociação explícita e sistemática entre as partes interessadas”[3]. Por outro lado, o sistema jurídico brasileiro consiste em um mosaico de “sistemas de verdades”, utilizando alternativa e alternadamente lógicas distintas[4].
Passadas quase duas décadas, a análise do antropólogo mostra-se, ainda, bastante pertinente. Isso porque, apesar das diferenças entre os institutos, a delação premiada inspira-se na famosa plea bargaining, característica do sistema americano, regido pelo princípio da oportunidade para a propositura de ação penal. Entretanto, a consolidação do sistema jurídico americano é fundamentalmente distinta da brasileira, e isso gera consequências na importação, às avessas, de seus mecanismos e institutos processuais.
Na história do processo penal brasileiro, nunca houve espaço para negociações (ao menos, às claras). Nosso modelo de administração de conflitos não busca o consenso, como faz o modelo americano. O modelo de Justiça criminal brasileiro busca, ou deveria buscar, o controverso conceito de “verdade” (real, para alguns). E se “não há delito sem pena”, quando existe a confissão de crime e a existência de elementos que o comprovem, espera-se, naturalmente, pela punição correspondente.
Segundo Canotilho, o colaborador é suscetível de responsabilização criminal fundada no delito por ele próprio delatado, sendo esse o motivo pelo qual lhe são prometidos benefícios penais caso auxilie a investigação. Tais benefício visam estimular a sua colaboração, mas não teriam razão de ser se nenhuma punição criminal pudesse ser associada ao crime delatado[5].
A imunidade penal conferida aos irmãos Batista pelo MPF e homologada pelo ministro Fachin, legalmente respaldada, portanto, recebeu a pronta antipatia popular, demonstrando que, até o momento, a prisão da maioria dos delatores no âmbito da operação “lava jato” permitiu-nos esquecer que a colaboração não vem sozinha. Acompanha-a um adjetivo: premiada. Não se pode esperar que o delator abra mão da garantia do devido processo para o recebimento de sanções (por menores que sejam), sem que também o Estado ceda em seu direito-dever de punir.
Entretanto, são as incongruências das previsões da Lei 12.850/13 com o sistema jurídico brasileiro que causam esse desconforto, essa sensação de que há algo de inconstitucional no acordo firmado entre Joesley Batista e o MPF. A lógica da legislação específica não segue os princípios constitucionais que regem o processo penal pátrio.
E o rompimento dessa lógica é identificado nas diversas aplicações do instituto, não apenas quando se mostra mais favorável ao delator, pois, se não há delito sem pena, também não há pena sem processo.
A aplicação desses dispositivos importados pode apontar para uma mudança de paradigma no modelo processual brasileiro. Por outro lado, pode apenas indicar a ampliação do já complexo “mosaico” que é nosso sistema jurídico. De uma ou outra forma, o instituto da colaboração premiada veio para ficar. Só não podemos esquecer que, ao final, sempre vem a conta — travestida de “impunidade” ou de sacrifício de direitos fundamentais.
[1] STF, MS 34.831. Relator ministro Celso de Mello.
[2] J. J. Gomes Canotilho e Nuno Brandão. Revista de Legislação e de Jurisprudência. Secção de doutrina: Colaboração premiada e auxílio judiciário em matéria penal: a ordem pública como obstáculo à cooperação com a operação Lava Jato.
[3] LIMA, Roberto Kant de. Polícia, Justiça e Sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 13, pp. 23-38, nov./1999, p. 29.
[4] Idem, p. 34.
[5] CANOTILHO, J. J. Gomes e BRANDÃO, Nuno. Revista de Legislação e de Jurisprudência. Secção de doutrina: Colaboração premiada e auxílio judiciário em matéria penal: a ordem pública como obstáculo à cooperação com a operação Lava Jato.