A inserção da CLT no sistema do processo constitucional

Regras de bom senso, na CLT e no processo comum, precisam reger os processos trabalhistas

Por Flavio Portinho Sirangelo, consultor de Souto Correa Advogados na área Trabalhista

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) está por completar 80 anos de vigência. Nesse período, a CLT recebeu alterações legislativas apenas pontuais e, mais recentemente, uma reforma substantiva, introduzida pela Lei 13.467, de 13 de julho de 2017 – a chamada reforma trabalhista.

As disposições que a reforma trabalhista acrescentou à CLT buscaram atualizar não apenas o sistema regulatório das relações individuais e coletivas de trabalho. A reforma também incorporou ao texto da CLT um conjunto de regras de natureza processual para garantir mais segurança e consistência ao processo judiciário trabalhista.

A doutrina inspiradora da CLT, em nome de princípios que visavam à simplicidade das formas e à celeridade processual, não admitia, nos seus primórdios, que as ações trabalhistas fossem regidas pelas mesmas regras do processo civil, prescrevendo que o direito processual comum só poderia ser aceito como fonte subsidiária do direito processual do trabalho nos casos omissos e, mesmo assim, quando as regras do processo civil não se mostrassem incompatíveis com as normas do processo trabalhista.

No curso do tempo, porém, o direito processual comum passou por mudanças notáveis, exatamente buscando abraçar os mesmos princípios de simplificação e de celeridade nos quais o processo judiciário trabalhista havia sido precursor. E, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, tem vigência a regra de aplicação não apenas subsidiária, mas também supletiva das normas processuais comuns ao processo do trabalho, conforme o artigo 15 do CPC. A aplicação supletiva da regra processual comum se dá quando a lei processual trabalhista, embora contemplando determinado instituto processual, não se mostra completa. Nesse caso, cabe aplicar o CPC “de forma complementar, aperfeiçoando e propiciando maior efetividade e justiça ao processo do trabalho”.[1]

Tem-se, desse modo, um conjunto orgânico e congruente de regras para nortear a condução das causas trabalhistas, que se apresenta em perfeita sintonia com os princípios e valores do estado constitucional inaugurado em 1988, pelos quais as leis processuais devem servir à tutela não só do direito das partes, como também às exigências de unidade do sistema jurídico e à eficiência da jurisdição estatal. As leis processuais, nesse sentido, devem ser instrumento de efetivação de um processo justo, caracterizado, conforme a doutrina, pelo direito à colaboração judicial, ao contraditório como direito de influência e pelo dever de fundamentação como dever de debate.[2]

Entretanto, observam-se, por vezes, decisões em que as regras atuais sofrem rejeição e não são aplicadas – a título de exemplo, a interpretação recente da SBDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) sobre o dispositivo do artigo 790, § 4º, da CLT, flexibilizando a regra que estabelece justa limitação do benefício da justiça gratuita somente à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo[3].

Será por situações tais que o número de casos pendentes na Justiça do Trabalho voltou a crescer e ficar próximo dos patamares anteriores à reforma trabalhista? A movimentação processual trabalhista dos últimos anos deixa ver que o número de casos pendentes de resolução na Justiça do Trabalho estava em torno de 5,5 milhões no final de 2017; esse número chegou a cair para 4,5 milhões até o final do ano de 2019; mais recentemente, contudo, no final de 2021, deu um salto para 5,2 milhões de processos, de acordo com os dados da pesquisa Justiça em Números (2022) do CNJ.

Um cenário no qual se verificam manifestações da jurisprudência e iniciativas no Legislativo, voltadas para a derrogação ou revogação de textos legais que a reforma trabalhista introduziu, justifica o receio de que fique comprometida a manutenção de um conjunto de regras de natureza processual, criadas precisamente com o objetivo de garantir mais segurança e consistência à atuação da Justiça do Trabalho na condução das milhares de ações judiciais que lhe são submetidas a cada ano.

Com efeito, a CLT incorporou, a partir da reforma de 2017, dispositivos processuais que são instituidores, por exemplo: de requisitos mínimos à aceitação formal da petição inicial (art. 840); de vedação à desistência da ação, pelo autor, após o momento em que é oferecida a contestação (art.841, §3º); da possibilidade de prorrogação de prazos processuais e da ampliação de poderes ao juiz (art. 775); da possibilidade de sucumbência (art. 791-A); da exigência de prova da insuficiência econômica para a concessão da gratuidade de justiça (art. 790, §4º); da disciplina de controle de probidade processual e da responsabilidade por dano processual (artigos 793-A a 793-D); da distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 818); da previsão de jurisdição voluntária para a homologação de conciliação extrajudicial (art. 855-B); da aplicação ao processo do trabalho do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 855-A); da definição dos elementos objetivos de configuração de grupo econômico, para efeito de atribuição de responsabilidade solidária (art. 2º, §2º); da estipulação da hipótese de responsabilidade exclusiva do sucessor nos casos de sucessão empresarial e a possibilidade de atribuição dessa responsabilidade ao sucedido, quando comprovada a fraude na transferência (art. 448-A). Todos esses preceitos legais contêm disposições tendentes a:

  1. Contribuir para a diminuição do estado natural de dúvida do julgador na resolução de questões de fato e de direito surgidas na causa, viabilizando segurança, previsibilidade e presteza à prestação jurisdicional trabalhista.
  2. Controlar a litigiosidade, permitindo a redução do excesso de conflitos e a contenção de litigâncias que se mostram, ocasionalmente, frívolas ou artificiosas, adversas às exigências do bem comum e causadoras de prejuízos ao funcionamento da máquina judiciária.

Por todos esses motivos, é justo e necessário que se valorize, na celebração dos 80 anos da CLT, a importância dos avanços que o diploma consolidado recebeu para assegurar a sua inserção no sistema do processo constitucional democrático, iniciado com a Constituição de 1988 e consagrado pelo Código de Processo Civil de 2015. É o que se deve esperar, em homenagem ao preceito orientador de toda atuação jurisdicional, inserto no artigo 8º do CPC, que impõe ao juiz o dever de atender, na aplicação da lei, aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.


[1] Conforme SCHIAVI, Mauro, A reforma trabalhista e o processo do trabalho: aspectos processuais da Lei n. 13.467/17 — 1a. ed. — São Paulo: LTr Editora, 2017, página 40.

[2] Nesse sentido, MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. SP: Revista dos Tribunais, 2015. págs. 85/86.

[3] Ac. proc. E-RR-415-09.2020.5.06.0351, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Lelio Bentes Correa, DEJT 07/10/2022.

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