Aos netos, meu avatar

Artigo publicado pelo Estadão, em 18 de agosto 2022.

Uma casa, um carro antigo, joias de família, algum dinheiro e até um relógio de parede, adquiridos com muito esforço pelas gerações mais antigas, são exemplos de bens normalmente deixados em testamento para os que ficam. Não devemos estranhar, contudo, se em breve esses mesmos bens existirem apenas em um endereço virtual, e não mais na casa de nossos avós.

O mundo digital evolui exponencialmente, e a novidade que envolve o Metaverso tem assumido papel relevante nas discussões sobre o assunto. Isso é reforçado pelo fascínio de permitir a criação de uma realidade em que o que sonhamos possa se tornar realidade mais facilmente, ainda que apenas virtualmente. Não à toa temos visto notícias de terrenos em ambientes virtuais sendo negociados por milhões de dólares, bolsas e roupas de grife para personagens virtuais, avatares, sendo vendidas por outros milhares de dólares. O mundo virtual tem convergido com o físico de forma cada vez mais intensa.

Hoje o espectro de bens digitais não inclui apenas os tradicionais como músicas, fotos, livros e softwares, mas também itens de maior complexidade, a exemplo das criptomoedas e dos tokens não fungíveis (NFTs). E isso sem falar em contas de e-mail e perfis em redes sociais que, igualmente, podem atingir um valor relevante de mercado.

Essa realidade acaba refletindo no mundo jurídico e, no que diz respeito à sua sucessão, suscita diversas dúvidas. Uma das principais questões a serem enfrentadas diz respeito à identificação do que compreenderiam os bens digitais passíveis de integrar a herança e quais são aqueles conteúdos ou materiais cujo direito à intimidade do falecido limitaria a sua transmissão. Nessa seara surgem argumentos que envolvem tanto questões como o valor de mercado atribuído a esses bens virtuais, a exemplo das roupas, acessórios e terrenos comprados no metaverso, quanto a privacidade dos e-mails e mensagens trocados pelo falecido por meio de suas redes sociais e contas de e-mail.

De um lado, termos de uso de algumas plataformas dispõem sobre situações de sucessão, incluindo permissões e restrições do que pode ser transferido ou não, numa tentativa de endereçar esse problema. De outro, não há ainda legislação ou entendimentos consolidados sobre o assunto, sendo que as poucas decisões já proferidas no Brasil vão em sentidos diversos, carecendo sempre de uma avaliação a cada caso.

Sabe-se da existência de diferentes projetos de lei em tramitação sobre o assunto, inclusive contemplando a preocupação com os possíveis impactos arrecadatórios que tal herança poderia gerar. Ora, em se tratando de bens de valor que integram o patrimônio do falecido, sua transmissão aos herdeiros deveria observar as regras do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). E mais, caso essa herança seja considerada como um bem mantido no exterior, no contexto legal atual sequer haveria a incidência desse imposto, o que torna esse patrimônio ainda mais interessante.

Diante desse cenário repleto de novidades e incertezas, deve-se jogar com as regras atuais de que dispomos. Ainda que não sejam soluções perfeitas ou tão tecnológicas como o patrimônio em questão, a exemplo dos testamentos em Blockchain que já vemos alguns experimentos, um testamento tradicional e a manutenção de alguma propriedade digital por meio de estruturas empresárias podem ser uma alternativa para assegurar que diferentes bens sejam passados a quem desejamos.

Em outras palavras, mesmo diante das incertezas sobre o que comporia a herança digital e sobre os possíveis impactos tributários atualmente, parece vantajoso preparar disposições testamentárias ou acordos societários claros e objetivos, não conflitantes com as regras de cada plataforma, caso o desejo seja deixar uma casa, uma bolsa de grife virtual ou uma carteira digital de criptomoedas para nossos entes queridos. Não seria surpresa se, em breve, o dinheiro no banco deixado em testamento seja substituído por chaves de acesso a carteiras digitais repletas de criptomoedas.

Não sabemos como essas relações serão firmadas e o que acontecerá com tudo o que tem sido desenvolvido em âmbito virtual. Contudo, sabe-se que aquele relógio de parede da casa dos nossos avós terá que correr para conseguir marcar a hora certa na velocidade em que a vida digital tem evoluído.

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