Carga Pesada ao Custo Brasil

Artigo publicado pelo Valor Econômico.

Promulgada há mais de 20 anos, a Lei do Vale-Pedágio (10.209/01) permanece sendo objeto de importantes discussões perante o Judiciário. O objetivo principal dessa lei é o de assegurar ao transportador o recebimento do vale-pedágio, de forma antecipada e separada do frete.

A questão mais polêmica é o art. 8º, que estabelece que, se o embarcador não adiantar ao transportador o valor do pedágio para o transporte da carga, deverá pagar ao transportador indenização correspondente ao dobro do valor do frete contratado. É evidente a desproporcionalidade da penalidade: em vez de incidir sobre o valor do pedágio não pago, ela se aplica sobre o valor do frete.

Para piorar, o STJ entende que o prazo prescricional para cobrança é de dez anos. Tendem, assim, a ser desastrosas – e monetariamente relevantes – as potenciais consequências da aplicação dessa norma.

Um hipotético exemplo ilustra essa conclusão: uma empresa transportou cargas para um embarcador por dez anos. A soma dos fretes e dos pedágios pagos no período foram, respectivamente, de R$ 150 milhões e R$ 700 mil. Se o embarcador não pagou o vale-pedágio à transportadora, de forma separada e destacada do frete, a transportadora teria o direito a receber inacreditáveis R$ 300 milhões de indenização, ou 428 vezes o valor do pedágio não pago.

Esse exemplo demonstra que a indenização prevista no art. 8º da Lei 10.209/01 constitui uma aberração jurídica e econômica. Não há justificativa para a aplicação dessa penalidade. A indenização postulada pelas transportadoras, com base no art. 8º, equivale a trocar um pneu furado por um caminhão novo em folha. A regra do art. 8º cria, assim, incentivos para que transportadoras deixem de oferecer serviços, para concentrarem seus esforços em litígios parasitários.

Não por outras razões, a desproporcionalidade dessa indenização despertou a atenção do Judiciário. Percebeu-se que embarcadores eram condenados ao pagamento de centenas de milhões de reais em razão do não adiantamento de vale-pedágio, não obstante a insignificância deste último.

Em razão disso, em 2016, o TJSP declarou a inconstitucionalidade do art. 8º. E, no mesmo ano, o STJ consolidou o entendimento de que a indenização poderia ser reduzida a critério do julgador. O problema tinha sido (bem) resolvido.

Porém, em 2020, o STF declarou a constitucionalidade do art. 8º (ADI nº 6.031). Infelizmente, houve mudança completa da rota dos casos relacionados a esse artigo.

A partir desse precedente constitucional, muitas transportadoras enxergaram novo terreno fértil para obtenção de lucros milionários, sem a devida contraprestação, e passaram a acionar a máquina judiciária em busca de indenizações.

Seria altamente recomendável que o STF revisitasse o tema. Afinal, como bem apontado no voto vencido do Min. Gilmar Mendes, não faltam argumentos para justificar a inconstitucionalidade da norma: violação aos princípios da proporcionalidade, da isonomia e da vedação ao enriquecimento sem causa.

A chancela do STF ao art. 8º representa, na verdade, mais um exemplo do famigerado custo Brasil, que deve ser zerado para que o país seja mais competitivo e cresça em um ambiente livre e atrativo para negócios. Não é razoável beneficiar uma classe em detrimento de cadeias produtivas inteiras.

Enquanto, porém, o STF não altera sua decisão, restam aos embarcadores algumas opções de defesa.

A primeira é provocar nova análise do tema pelos Tribunais. O STJ já proferiu decisão não apenas contrária à aplicação literal do art. 8º (REsp 1.520.327/SP), como também, recentemente, assentou que o êxito da demanda condiciona-se à prova do trânsito por rodovias pedagiadas (REsp 1.714.568/GO). Este acórdão – embora trivial e óbvio – é bastante importante. Por mais aberrante que possa parecer, alguns Tribunais haviam consolidado o entendimento de que existiria uma presunção de veracidade das alegações da transportadora, que não precisariam sequer comprovar o trânsito por rodovias pedagiadas. Não há, contudo, nenhuma regra autorizando a aplicação automática da inversão do ônus da prova nesse tipo de ação.

A segunda é sustentar que a análise dos casos relacionados ao assunto deva passar pela aplicação dos princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento sem causa. É nesse contexto que deve ser examinada a regra do art. 8º, sendo necessário considerar se o transportador agiu de boa-fé. Assim, se, por exemplo, o próprio transportador informou ao embarcador que o valor do pedágio estava incluído no montante do frete, não poderá, posteriormente, ajuizar ação contra o embarcador postulando a aplicação do art. 8º, sob pena de tutelar-se conduta contraditória (venire contra factum proprium), que viola a boa-fé.

A terceira é sustentar a aplicação do prazo prescricional trienal (art. 206, §3º, V, do CC), em detrimento do decenal. Com base no acórdão proferido pelo próprio STF, a pretensão das transportadoras melhor se enquadra no conceito de reparação civil, que prescreve em 3 anos.

Em síntese, apesar do infeliz precedente constitucional, existem chances para a vitória dos embarcadores. É necessário, todavia, que o Judiciário analise as disputas não apenas mediante aplicação literal do art. 8º, como também à luz da boa-fé, da vedação ao enriquecimento ilícito e do abuso de direito. Mas não apenas isso. É importante que se perceba que a aplicação do art. 8º, sem análise de impactos regulatórios e econômicos, revela-se prejudicial a objetivos e políticas públicas que visam ao bem da nação. Menos carga pesada ao custo Brasil, é o que se espera.

Ricardo Quass Duarte, mestre em Direito Processual pela USP, LL.M. pela Columbia University, sócio do Souto Correa Advogados.

Vitorio Alfaro Boettcher, advogado em Souto Correa Advogados.

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