Contratando a prevenção da corrupção

Luiz Gustavo Kaercher Loureiro
Portal Jota
12/04/2017

É cada vez mais frequente em contratos entre privados que possuam algum tipo de interação possível com o poder público, a inserção de cláusulas destinadas a prevenir a prática, pelos contratantes, de crimes contra a Administração Pública (corrupção ativa, tráfico de influência etc.). Grosso modo, tais cláusulas preveem obrigações recíprocas de (i.) abstenção de atos que possam configurar tais delitos (pagamentos, ofertas de presentes, promessas de vantagens, recompensas etc.); (ii.) constituição e execução de programas de compliance; (iii.) submissão a diferentes tipos de auditorias, de parte à parte, para verificação do cumprimento das obrigações anteriores (“cláusulas de ingerência”).

Não obstante compreensíveis essas iniciativas, elas podem trazer embutido um risco de responsabilização penal para as pessoas físicas encarregadas de executar tais cláusulas, assim como de outros sujeitos da empresa. O risco está nas “cláusulas de ingerência” e se relaciona com a figura penal do “garante”, prevista no art. 13, § 2º, do CP. Ao “receber o direito” de fiscalizar a conduta da outra parte (e não a executar a contento), o garante pode responder por delitos por ela cometidos, atendidas certas condições que vêm se atenuando nos últimos tempos.

Diz o CP que responde pela omissão o sujeito que “podia e devia agir para evitar o resultado”. Este dever de agir pode advir de uma lei que preveja para o agente um dever de cuidado, proteção ou vigilância (alínea a do § 2º do art. 13); pode surgir de um contrato ou de alguma “outra forma” (alínea b); ou pode ainda se originar de um “comportamento anterior” do sujeito (alínea c). No caso em exame, o dever de evitar o resultado surge do contrato e, mais exatamente, das cláusulas de ingerência, caso estejam redigidas de modo a dar aos contratantes, fundamentalmente, duas capacidades: (i.) acesso contínuo, em bases periódicas, a informações da outra parte que lhe propiciem indícios e/ou provas da prática de atos criminosos; (ii.) poderes para não só detectar como para determinar a cessação de tais práticas. Se assim for, certas pessoas físicas da empresa colocam-se na posição de “garantes” da lisura da conduta da outra parte (art. 13, § 2º, b). Ocorre a assunção voluntária de risco pelo comportamento de outrem, diferente do que se verifica nas hipóteses em que gestores e diretores respondem por atos de seus próprios funcionários pois neste caso a relação se dá dentro da estrutura empresarial.

Como referido, os requisitos para que se verifique essa responsabilidade estão se atenuando. Para o que aqui interessa, são relevantes duas dessas tendências.

A primeira diz respeito à relativização do dolo nos delitos de omissão imprópria. Não é raro ver-se a utilização de figuras como o dolo eventual, da culpa consciente ou mesmo a importação de figuras como a “cegueira deliberada” ou a negligência grosseira. De modo resumido: se não estamos caminhando para uma absoluta “objetivização” da responsabilidade pela omissão, é certo que tem se tornado menos relevante indagar se aquele que tinha o dever de vigilância queria que, com sua omissão, o crime ocorresse.

A segunda tendência refere-se à ampliação dos garantes. É frequente o uso das figuras dos “garantes primários” e “garantes secundários”, para procurar alargar o círculo dos omitentes, a partir daquele que é direta e imediatamente responsável pela vigilância do outro contratante, para, daí, ascender na hierarquia (o reverso da delegação, ou imputação bottom up) ou alargar-se lateralmente (i.e., em direção outros sujeitos que, devendo colaborar com o garante primário, deixaram de o fazer).
Considerando esse cenário, redobrada atenção deve ser prestada às cláusulas de ingerência.
Em certas situações a vigilância é menos problemática. Tal é o caso quando os contratantes são conhecidos, em relações de terceirizados ou quando estão em pé de igualdade. Em outras circunstâncias, porém, o cenário pode ser bastante complexo. Basta pensar em contratos envolvendo partes completamente heterogêneas, em que uma não domina a área de atuação da outra, ou em que por trás de uma das partes há um universo de terceirizados, consórcios, consultores; ou em que há uma real assimetria de informações e de condições de poder. Nesses casos, paradoxalmente, a vigilância, quando mais robusta no papel, mais pode tornar-se um risco de fato.

Se assim é, não há solução uniforme. Algumas cautelas se impõem para mitigar o risco de uma pandemia de responsabilização penal assumida contratualmente.

Em primeiro lugar, não custa indagar se é efetivamente necessário incluir tais cláusulas. Não se trata de questionar a necessidade ou utilidade dos compromissos – de resto óbvios – de não praticar crimes, ou das obrigações relativas ao compliance, mas de adotar medidas de vigilância do cumprimento de tais obrigações. Além do compromisso de se comportar bem é necessário substituir-se ao Estado e ser também polícia?

Em segundo lugar, sendo necessário algum grau de controle, convém deixar a padronização de lado e dimensioná-lo à medida das possibilidades e características das duas empresas, fazendo-se algumas perguntas como, p.ex., qual é a real capacidade de vigilância que a empresa A possui sobre a empresa B, considerando suas especificidades? Qual é o tipo mais adequado de supervisão, para este contrato? Quais são os red flags?

Em terceiro lugar, uma vez estipuladas as cláusulas de modo realista, há de se seguir uma execução à risca. Assim como já há quem entenda que a não implementação ou não execução de um programa de compliance constitui falta do dever de vigilância do empresário, é bem possível entender que construir uma cláusula de auditoria e não a cumprir é pior do que não a ter.

Por fim, convém estabelecer com clareza as competências e atribuições relacionadas à execução das cláusulas de ingerência. Essa medida pode mitigar o risco das ampliações verticais e horizontais de responsabilidade de que se falou acima. A figura do garante, no âmbito empresarial, foi pensada para evitar a “irresponsabilidade organizada” que acabava por penalizar apenas o funcionário subalterno que cometia materialmente o delito, deixando impunes as esferas mais altas da organização. Organizar a responsabilidade é o melhor modo para prevenir a “responsabilização desorganizada e desenfreada”.

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