CRD-Infra: primeiras impressões e expectativas para o futuro

O cenário dos conflitos envolvendo contratos de infraestrutura nacional ganhou um novo capítulo. A partir da publicação da Portaria nº 142, em 29 de abril de 2022, o Conselho Nacional de Justiça (Portaria CNJ) instituiu o Comitê de Resolução de Disputas Judiciais de Infraestrutura (CRD-Infra).

A iniciativa do CNJ nasce do interesse do Ministério da Infraestrutura (MInfra) de garantir segurança jurídica na busca de soluções céleres e eficientes nos conflitos, principalmente, oriundos do setor de transportes. O objetivo é expandir o projeto aos demais setores que compõem a infraestrutura nacional, à medida que os comitês se desenvolvam e se aprimorem.

A intenção do MInfra faz parte de um plano maior: posicionar o Brasil como “líder da América Latina em Infraestrutura de Transportes” [1]. O aumento dessa competividade nacional ganhou forças desde a edição da Lei nº 13.334/16, com a previsão do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).

O PPI busca, justamente, a ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria para a execução de empreendimentos públicos de infraestrutura e de outras medidas de desestatização. Além disso, a meta do MInfra tem por base um cenário crítico: em 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou que o Brasil possuía cerca de 14 mil obras paralisadas, mais de 1 mil apenas na área de transporte, que somavam um investimento de R$ 144 bilhões. Quase metade dos motivos da paralisação eram problemas técnicos, seguidos de abandono de obra e dificuldades de orçamento [2]. A judicialização desses impasses, por sua vez, pouco contribui para o cumprimento dos contratos do regime PPI, cujos objetivos específicos são a ampliação das oportunidades de investimento e o estímulo ao desenvolvimento social e econômico do país; a garantia da expansão com qualidade da infraestrutura; a promoção da ampla e justa competição na celebração de parcerias e o compromisso pela estabilidade e segurança jurídica de contratos (artigo 2º da Lei nº 13.334/2016).

A título exemplificativo, o CNJ divulgou existir em curso, até 2021, mais de 75 milhões de processos pendentes de julgamento [3], um saturamento do Poder Judiciário que impede a resolução de conflitos com a celeridade e especificidade que contratos de infraestrutura requerem. É nesse contexto exatamente que surge a criação do CRD-Infra, voltado exclusivamente para o tratamento adequado de conflitos referentes a projetos qualificados no âmbito do PPI (artigo 1º Portaria CNJ) e subordinado à Presidência do CNJ (parágrafo único, artigo 1º Portaria CNJ).

Após a edição da Portaria CNJ, com a instituição do CRD-Infra, o CJN lançou a Recomendação nº 129, datada de 15 de junho de 2022, que traz advertência aos tribunais para a “adoção de cautela visando a evitar o abuso do direito de demandar que possa comprometer os projetos de infraestrutura qualificados” nos programas PPI, previstos na Lei nº 13.334/2016 [4]. A preocupação externada pelo CNJ é fruto do dia a dia dos magistrados, que são alvo de diversos pedidos de suspensão de obras e concessão de liminares, impedindo a execução célere e eficaz dos contratos de infraestrutura. O próprio artigo 2º da Recomendação nº 129 definiu o abuso de direito como sendo “o ajuizamento de ações com aparente caráter de urgência infundada, em expediente normal ou plantão judiciário, com o intento de questionar projetos, leilões ou contratos de infraestrutura que se encontram em fases de desenvolvimento”. Essa sinalização é também importante para respaldar o CRD-Infra.

Vale dizer que, a princípio, o recurso a comitês de resolução de disputa, em geral, enfrentou certa resistência em sua aplicação, principalmente antes da Nova Lei de Licitações nº 14.133, de 2021, que expressamente previu sua viabilidade no art. 151. Foi o caso da decisão do TCU de dezembro de 2020, que restringiu o uso de dispute boards, na concessão de projetos da BR que ligam Anápolis (GO) a Aliança do Tocantins (TO), e Sinop (MI) a Itaituba (PA) [5]. Por isso, é importante o alinhamento de entendimentos entre Judiciário e atores envolvidos, já que o recurso aos Comitês é para a garantia de um bem maior. Por meio do CRD-Infra se pretende garantir a continuidade e a conclusão dos contratos, sem necessidade de interrupção das atividades contratuais como decorrência da judicialização de qualquer das mais variadas questões que podem surgir ao longo da vida do contrato. Esses comitês são formados por especialistas na área objeto de um determinado contrato, não necessariamente da área jurídica (em contratos de construção, por exemplo, pode-se pensar em engenheiros), tendo a responsabilidade de realizar acompanhamento do desenvolvimento das atividades contratuais, e atuando de forma próxima para, havendo uma discussão ou dúvida, resolvê-la de imediato [6].

Nessa mesma toada, a consultora jurídica do MInfra, Natália Resende Andrade explica que o intuito do CDR-Infra é “primar pela solução célere e eficiente de conflitos observados em projetos naturalmente complexos, incompletos por essência, com vultosos investimentos, riscos e incertezas, como são as concessões de infraestrutura de transportes” [7]. Tendo-se em mente que os principais problemas que impedem a conclusão das obras de infraestrutura são de ordem técnica, contar com um meio de resolvê-los a partir de um time especializado, evitando o uso de medidas judiciais, auxilia na meta lançada pelo MInfra, de liderar os meios de transporte na América Latina. A opção do CNJ pelos comitês de resolução de disputas, também denominados dispute boards, coaduna-se com tendências estrangeiras. Desde 1995, o Banco Mundial prevê a obrigatoriedade da utilização dos dispute boards nos contratos que participa, tendência seguida pela maioria dos bancos de investimento [8].

Essa tendência é reforçada a partir da análise do “Belt and Road Iniciative”, capitaneada pela China, como estratégia de desenvolvimento de projetos de infraestrutura ao redor do mundo. Com um investimento de quase US$ 1 trilhão, o governo chinês condicionou o aporte desses valores em contratos que prevejam o dispute board, sem a necessidade de submetê-los a um procedimento arbitral, preservando a relação contratual a longo termo [9].

Embora a arbitragem seja, sem dúvida, um método célere e especializado para a resolução de conflitos, ainda assim implica considerável nível de litigiosidade entre as partes envolvidas. Por isso, no caso do recurso meramente à arbitragem, é bastante provável que o contrato em discussão no procedimento arbitral seja interrompido até a solução do imbróglio de suas estipulações. Nesse sentido, “um estudo realizado pelo DRBF em mais de 230 projetos financiados pelo Banco de Desenvolvimento Asiático demonstrou uma taxa de 94% de êxito dos comitês em evitar a instauração de arbitragens” [10].

Assim, entendemos que os dispute boards não devem ser vistos exatamente como substituição à arbitragem que, por sua vez, funciona – ou deveria funcionar — como alternativa ao judiciário. Os dispute boards devem ser vistos como complemento imprescindível às ações para a continuidade dos projetos de infraestrutura. Nesse contexto, verifica-se que o caso do CRD-Infra — que busca, por meio de um painel de diálogo, alcançar a autocomposição do conflito entre as partes — mais se assemelha aos dispute review boards, e menos a dois outros tipos de dispute boards existentes de acordo com a International Chamber of Commerce: Dispute Adjudication Boards e Combined Dispute Boards [11]. Os dispute adjudication boards emitem decisões vinculativas [12] e os combined dispute boards podem prestar recomendações ou emitir decisões [13] enquanto os dispute review boards fazem recomendações às partes — sem obrigação de cumprimento.

Justamente por essa característica, dentre os desafios verificados para o bom funcionamento do CRD-Infra está o próprio comprometimento das partes em buscarem a autocomposição. De fato, a opção pela sujeição ao dispute board está inteiramente fundamentada na autonomia das partes [14].

Segundo a Dispute Resolution Board Foundation de Seattle/USA, por exemplo, a adesão das partes às decisões dos dispute boards relaciona-se de forma direta com a confiança no saber técnico e na imparcialidade dos membros do painel, bem como com o conhecimento específico dos membros sobre as características do projeto [15]. Desse modo, o CRD-Infra terá que enfrentar o desafio de se mostrar como ambiente sério e efetivo na resolução de disputas para os agentes do setor de infraestrutura. Por fim, apesar do nobre objetivo do CNJ e do Minfra, que deve ser certamente reconhecido, sobretudo em um contexto de assoberbamento do judiciário e longos prazos de determinadas arbitragens, há que se questionar sobre a limitação da Portaria CNJ no tocante a quem pode fazer uso dela.

Parece-se nos uma grande lacuna, ou possível falha da portaria CNJ, a impossibilidade de que os atores particulares manifestem interesse em levar disputas para o CDR-Infra, já que a solicitação para atuação do CRD-Infra poderá ser feita de ofício pelo presidente do CNJ ou mediante solicitação a ele dirigida, oriunda exclusivamente do Ministro de Estado responsável por um dos projetos qualificados no PPI, conforme impõe o artigo 1º da Portaria CNJ, e após a manifestação da Advocacia-Geral da União acerca da sua viabilidade (artigo 2º).

Verifica-se que a diferença no tratamento dos agentes particulares e dos agentes públicos pode levar a uma menor confiança dos players privados no comitê — o que dificultaria a aceitação desse fórum como um meio adequado de resolução de conflitos. Desse modo, a necessidade de que o presidente do CNJ indique os casos para atuação do CRD-Infra — bem como a possibilidade de veto do ministro de Estado responsável — acaba por impedir a autonomia das partes, um atributo extremamente importante para a resolução de conflitos por meio do comitê.

O uso da CDR-Infra de que trata a portaria CNJ nos dirá se essa percepção está correta. Sobretudo quando o objetivo do MInfra não é limitar seu uso ao setor de transporte, tal como originalmente se pretendeu, mas sim ampliá-lo para todos os setores de infraestrutura. Projeto relacionados ao 5G, por exemplo, poderão estar no rol de temáticas levadas ao CDR-Infra, seja por ser um tema transversal aos diversos setores da economia, seja pelo fato do próprio PPI ter listado a temática do 5G (e o próprio leilão à época) dentre seus temas de atuação.

O próprio Congresso Nacional também tem se preocupado com assunto. Há projetos voltados à regulamentação de comitês de resolução de disputas, dentre eles o Projeto de Lei nº 9.883/2018 que trata do uso dos Comitês de Resolução de Disputas (dispute boards) em contratos administrativos, e que foi apensado ao Projeto de Lei nº 2.241/2021, que permite que contratos públicos possam ter comitês para a resolução extrajudicial de conflitos.

Como a portaria é recente, ainda não estão claros os frutos de sua edição, mas as perspectivas são positivas, sobretudo porque vemos que diversos agentes públicos estão imbuídos da percepção de que iniciativas nesse sentido são imprescindíveis para a boa consecução de grandes contratos do setor de transporte e infraestrutura no Brasil. Isso se dá, sobretudo, em cenário de inovação e transformação digital em que as empresas são estimuladas a pensar fora da caixa a cada vez projetos do interesse da sociedade são lançados, projetos esses que são respaldados, na maioria das vezes, por contratos milionários.

Artigo publicado pelo Conjur em 18 de agosto 2022.

Referências

[1] O Mapa Estratégico do Ministério da Infraestrutura foi lançado em abril de 2019, durante os cem dias do governo Bolsonaro e "representa a consolidação das visões dos técnicos e das lideranças do Ministério, alinhados à estratégia do novo Governo". Disponível em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas. Acesso em 1/7/2022. [2] Disponível em https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/obras-paralisadas-no-pais-causas-e-solucoes.htm. Acesso em 1/7/2022. [3] Relatório "Justiça em Números 2021". Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf. Acesso em 1/7/2022. [4] Íntegra da Recomendação nº 129, de 15 de junho de 2022. Disponível em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/conjur/original1332482022062362b46b80afe37.pdf. Acesso em 1/7/2022. [5] Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/1693620205.PROC/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/2/%2520. Acesso em 1/7/2022. [6] CANTALI, Rodrigo; e SENNA, Matheus. Os dispute boards vieram para ficar. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-nov-08/senna-cantali-dispute-boards-vieram-ficar. Acesso em 1/7/2022. [7] Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-participa-do-lancamento-do-comite-de-resolucao-de-disputas-judiciais-de-infraestrutura. Acesso em 28/6/2022. [8] FERNANDES, Michelle Cristina Santiago. Dinâmica dos Dispute Boards e perspectivas de utilização. em contratos de construção no Brasil. 2019. 331 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) — Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 64. [9] SABET, John. Paris Arbitration Week Recap: Belt and Road Initiative – Recent Evolutions, Western Reactions, and Dispute Resolution. Disponível em http://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2022/04/23/paris-arbitration-week-recap-belt-and-road-initiative-recent-evolutions-western-reactions-and-dispute-resolution/. Acesso em 28/6/2022. [10] CANTALI, Rodrigo; e SENNA, Matheus. Os dispute boards vieram para ficar. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-08/senna-cantali-dispute-boards-vieram-ficar. Acesso em 28/6/2022. [11] INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (Paris). Dispute Board Rules, Arts. 4-6. Disponível em: https://iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2015/09/icc-dispute-board-rules-english-version.pdf. Acesso em: 24 jun. 2022. [12] INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (Paris). Dispute Board Rules, Arts. 4-5. Disponível em: https://iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2015/09/icc-dispute-board-rules-english-version.pdf. Acesso em: 24 jun. 2022. [13] INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE (Paris). Dispute Board Rules, Art. 6. Disponível em: https://iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2015/09/icc-dispute-board-rules-english-version.pdf. Acesso em: 24 jun. 2022. [14] RAVAGNANI, Giovani dos Santos; NAKAMURA, Bruna Laís Sousa Tourinho; LONGA, Daniel Pinheiro. A utilização de dispute boards como método adequado para a resolução de conflitos no brasil. Revista de Processo, São Paulo, v. 300, p. 343-362, fev. 2020. [15] VAZ, José Gilberto. Breves considerações sobre os dispute boards no direito brasileiro. Doutrinas Essenciais Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 6, p. 1137-1144, set., 2014.
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