Eleições na Califórnia definem que motoristas de aplicativos não possuem vínculo de emprego. E no Brasil, como está a situação?
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Manoela Pascal e Lucas Martins
06/11/20 – ESTADÃO
Em paralelo às eleições presidenciais, com aproximadamente 58% dos votos[1], os eleitores da Califórnia/USA aprovaram, através de plesbicito realizado na última terça-feira (3/11/2020), a chamada “Proposition 22” (Proposta 22) e, com isso, declaram válido o modelo de negócio adotado por plataformas de transporte e serviços, baseada na chamada “economia colaborativa”, em que não há relação de emprego entre o motorista/entregador, denominado “parceiro” e os aplicativos (Uber, Lyft e DoorDash), mas apenas a intermediação de serviços. Assim, restou vencida a possibilidade de reconhecimento de vínculo empregatício, o que se dava em observância à Legislação Estadual “Assembly Bill 5” (AB 5), vigente desde 01/01/2020[2]. No Brasil, a questão ainda padece de uma solução definitiva tendo em vista a falta de legislação específica sobre o tema.
As operações da Uber surgiram em 2010 na Califórnia[3] que é responsável por 9% das corridas da Uber nos Estados Unidos[4]. A Legislação Estadual AB 5 exige o reconhecimento da relação empregatícia nos casos em que há controle na forma de execução das funções ou quando o trabalho ocorre cotidianamente, garantindo aos motoristas os mesmos direitos de empregados contratados por tempo integral, incluindo hora extra, previdência social e seguro desemprego[5]. Assim, em 10/08/2020, foi proferida decisão liminar pelo Tribunal Superior de São Francisco para que a Uber e a Lyft fossem proibidas de classificar os motoristas como prestadores de serviços[6]. Em decorrência da decisão, as empresas afirmaram publicamente que suspenderiam as suas atividades até que a questão fosse definida via votação. Além disso, recorreram ao Tribunal de Apelações da Califórnia e obtiveram liminar para permitir que continuassem operando em seus modelos tradicionais até o plebiscito[7], o que fez com que as ações de Uber e Lyft subissem 6,7% e 5,7 respectivamente[8].
As empresas defendem que a maioria de trabalhadores não querem ser considerados empregados, que o modelo de negócios é flexível e incompatível com a legislação trabalhista tradicional. Assim, propuseram uma “terceira classificação” de trabalho, concretizada pela Proposta 22, que prevê a concessão de piso salarial e benefícios limitados aos motoristas, como acesso a seguro-saúde subsidiado e ganhos por hora garantidos, além da implementação de novas medidas de segurança. Apesar de prever menos proteções sociais que a AB 5, dá flexibilidade aos trabalhadores para decidirem quando e quanto trabalharão.
No Brasil, as operações da Uber, estão presentes em mais 500 cidades, há mais de 1 milhão de motoristas/entregadores parceiros e 22 milhões de usuários[9] o que, por si só, demonstra a relevância e os impactos dessa nova forma de mobilidade e de trabalho[10] [11]. Ocorre que, assim como na Califórnia, a chegada da Uber e de outras plataformas, além de inovação, trouxe relevantes debates centrados, principalmente, na natureza da relação existente entre as empresas de tecnologia e os motoristas/entregadores. Assim, o judiciário vem tentando acomodar a situação e encontrar formas de equilibrar a proteção aos trabalhadores, a manutenção da atividade e a autonomia de vontade das partes, sem deixar de observar o ordenamento jurídico e a legislação vigente.
Em setembro de 2019, o STJ decidiu que motorista de aplicativo é trabalhador autônomo e, por isso, ações contra a empresa, envolvendo obrigações de fazer e indenizações, são de competência da Justiça Comum (CC 164.544 – MG).
Em fevereiro de 2020, a 5ª Turma do TST proferiu a primeira decisão sobre o caso, reconhecendo a inexistência de vínculo empregatício entre a Uber e um dos motoristas que utilizava o seu aplicativo (RR 1000123-89.2017.5.02.0038). Da mesma forma, a 4ª Turma do TST (AIRR 10575-88.2019.5.03.0003): em 09/09/2020, afastou a existência de vínculo empregatício entre outro motorista parceiro e a Uber. Em ambos os casos – únicas decisões proferidas até o momento no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho – não foi reconhecido o vínculo empregatício por não haver o preenchimento dos requisitos formais para tal, o que ocorre, também, porque a definição técnica celetista sobre relação de emprego é antiga e não se encaixa às formas contemporâneas de trabalho
É o que muitos estão chamando de “Futuro do Trabalho”, que ainda passará por debates não só nas principais Cortes do país, mas também no legislativo.
Fato é, que a CLT, criada em 1943 em um contexto social e econômico muito diferente ao atual, não acomoda adequadamente essas novas formas de trabalho. Isso gera insegurança jurídica que preocupa os empresários e os trabalhadores, principalmente diante da inexistência de legislação específica que discipline essa nova relação de trabalho e da possibilidade de decisões divergentes sobre a (i)existência de vínculo de emprego, em razão da parca manifestação sobre o tema por parte dos Tribunais Superiores.
Se, por um lado é inegável que eventual enquadramento desses profissionais como empregados pode inviabilizar a manutenção das atividades de intermediação conforme havia sido anunciado na Califórnia, não apenas por questões econômicas, em razão do aumento dos custos, encargos e burocracia, como também do ponto de vista social, uma vez que muitos profissionais que operam via plataformas se opõem a formalização do emprego, priorizando a possibilidade de atuarem com total autonomia e flexibilidade nos horários. Por outro, a regulamentação mínima de tais atividades, além de ser fundamental para segurança jurídica, é necessária para que sejam garantidos direitos e deveres às partes (trabalhadores, usuários e empresas de tecnologia intermediadoras de serviços), observadas as particularidades da relação e respeitada a autonomia de vontade dos envolvidos.
Devido a relevância do tema, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de sua Comissão Especial de Direito Sindical, promoveu uma Audiência Pública na última quarta-feira, dia 04/11/2020, para tratar do tema: “A Chamada “Uberização” e a Organização Sindical: Novo Proletariado Digital ou Microempreendedores Individuais?”. No evento, foram discutidas as formas de organização profissional e as relações de trabalho realizadas via aplicativos através de painéis com o Poder Legislativo; Sindicatos, Centrais Sindicais, Empregados e Empregadores; e, Entidades Jurídicas, Pesquisadores e demais representantes da sociedade.
Ainda que as discussões estejam longe de uma solução final, é bastante provável que venha a ocorrer uma regulamentação neste sentido em um futuro próximo.
O Projeto de Lei nº 3.748, de autoria da Deputada Tabata Amaral (PDT-SP), foi apresentado recentemente à Câmara dos Deputados visando à instituição de uma nova categoria de trabalhadores, intitulada “trabalho sob demanda”, não regida pela CLT (art. 1º, parágrafo único), mas com garantias mínimas. O projeto parte das disposições gerais (seção I), para regras específicas sobre remuneração única (seção II), nunca inferior ao piso da categoria por hora, além de valores específicos a título de 13º, férias proporcionais (com adicional) e tempo de espera; cadastramento, descadastramento, avaliação dos trabalhadores e disponibilização de dados (seção III); redução dos riscos à saúde e segurança (seção IV); seguro-desemprego, remuneração por período de inatividade, salário-família, salário-maternidade e recolhimento de INSS (seção V); informações ao eSocial e, inclusive, competência para processar e julgar as lides (seção VI).
Na mesma linha, foi apresentado o PL nº 4.172, de autoria do Deputado Henrique Fontana (PT/RS) que prevê a obrigação de a empresa comunicar o valor da proposta à prestação do serviço, a distância e o destino; a possibilidade de o trabalhador recusar, sem qualquer penalidade; a livre escolha de horários; o pagamento em até 72 horas após os serviços prestados; adicional por trabalho noturno de 15%; consideração como tempo de trabalho todo o período que o trabalhador estiver logado; garantia de salário mínimo proporcional; adicional de 50% às horas prestadas além da 44ª semanal; seguro-desemprego, 13º, férias com 1/3; limitação à taxa de serviço da empresa em 20%; criação de uma Contribuição de Intervenção do Domínio Econômico (CIDE) de 5% entre outros.
Fato é, que o Poder Legislativo precisa solucionar a questão através de legislação específica para essa atividade.
Assim, de modo similar à Proposição 22, uma alternativa interessante para a situação no Brasil seria a criação de lei que dê proteções sociais aos trabalhadores, mas mantenha a flexibilidade de os motoristas decidirem quando e quanto trabalharão. Isso porque, apesar dos direitos garantidos pelo contrato de emprego tradicional, muitas pessoas optam pela liberdade de não precisar cumprir os deveres dele oriundos, como controle de jornada, horários e dias definidos, além de outras regras engessadas, não sendo crível e nem razoável que toda a população possa e queira se amoldar na relação: empregado e empregador.
[1] Disponível em: https://ballotpedia.org/California_Proposition_22,_AppBased_Drivers_as_Contractors_and_Labor_Policies_Initiative_(2020) Acesso em: 23/10/2020
[2] Disponível em: https://www.laborrelationsupdate.com/files/2019/05/NLRB-Uber-memo.pdf
[3] Disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/hist%C3%B3ria/
[4] Disponível em: https://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20200305-em-decis%C3%A3o-hist%C3%B3rica-justi%C3%A7a-da-fran%C3%A7a-reconhece-motorista-de-uber-como-funcion%C3%A1rio
[5] Disponível em: https://www.jota.info/autor/renard-aron
[6] Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/08/10/juiz-dos-eua-proibe-uber-e-lyft-de-classificar-motoristas-como-prestadores-de-servico.ghtml
[7] Disponível em: https://www.internetlab.org.br/pt/tags-semanario/lyft/
[8] Disponível em: https://canaltech.com.br/legislacao/uber-nao-suspendera-suas-atividades-na-california-pelo-menos-ate-novembro-170341/
[9] Disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/
[10] Disponível em: ttps://www.uber.com/pt-BR/blog/uber-futuro-mobilidade/
[11] Disponível em: https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,por-ano-paulistano-passa-em-media-1-mes-e-meio-preso-no-transito,10000076521[:]