Em terra de gás, quem tem biometano é rei
Por Edoarda Victer, Isabela Marzullo, Lívia Amorim, Maurício Paschoal
Para a coluna de agosto, o tema escolhido é a estruturação de projetos de biometano no Brasil, uma das principais pautas do debate de transição energética. Sem a pretensão da exatidão acadêmica, o texto é quase um depoimento livre sobre experiências das autoras e do autor com o tema.
Diante de um movimento mundial pela redução da emissão de gases efeito estufa na atmosfera, a pergunta recorrente tem sido: “como dar uma destinação econômica aos resíduos gerados pela sociedade?” Tais resíduos são produtos inevitáveis de nossas atividades cotidianas (geradoras de lixo e esgoto), industriais, comerciais e agropecuárias (geradoras de resíduos orgânicos) e, portanto, reflexos do mundo moderno. Ainda que o mundo tenha evoluído nas últimas décadas quanto ao descarte, reciclagem e tratamento de seus resíduos, parece claro que vamos continuar a produzi-los em velocidade superior àquela com a qual o planeta pode absorvê-los.
Nesse contexto, surge a possibilidade de tratamento da matéria orgânica, com a consequente redução de sua carga poluidora, de forma anaeróbica ou aeróbica. O tratamento anaeróbico dos resíduos gera subprodutos e, dentre eles, o biogás (que nada mais é do que uma combinação de gases como metano, dióxido de carbono, sulfeto de hidrogênio, entre outros). Em outras palavras, ao inserir a matéria orgânica
(ou biomassa) em um reator (denominado biodigestor), sem a presença de oxigênio, há a geração de um gás com potencial energético. O processo pode tanto ser implementado em grandes aterros quanto em plantas com alta produção de matéria orgânica, como as tipicamente existentes na indústria da proteína.
O biometano, por sua vez, é o biocombustível gasoso produzido a partir da purificação do biogás, para o qual há regras de especificação de qualidade fixadas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), nas Resoluções ANP n.º 886/2022 e 906/2022. Apesar de haver diferenças na composição, a fixação de uma especificação para o biometano o torna fungível em relação ao gás natural,
possibilitando a injeção na rede dutoviária. Em outras palavras, é conceitualmente possível, ainda que sujeito à superação de desafios, a substituição de um combustível fóssil por um combustível renovável, que tem ainda o duplo benefício de ter sido produzido a partir de resíduos.
O aproveitamento do potencial do biogás e do biometano na matriz energética brasileira ainda é muito incipiente. Segundo divulgado pela ABiogás (Associação Brasileira de Biogás)¹, o Brasil tem capacidade de produzir até 121 milhões de metros cúbicos diários (m3/dia) de biometano (que poderia ser injetado na rede) e de produzir biogás suficiente para gerar 19 gigawatts (GW) de energia elétrica.
Feitas estas considerações iniciais – nem tanto um depoimento assim -, vamos então ao relato da nossa experiência com a estruturação de projetos de biometano no Brasil. Os projetos a biogás, por mais que possam ter intersecções, seguem uma rota um pouco diferente e não são abordadas aqui.
O ponto – já sabido e lugar comum – é que a conta não fecha. Então como faz para a conta fechar?
A grata surpresa é que – dada a necessidade de cumprimento dos compromissos corporativos de redução de emissões – a demanda tem mostrado uma maior disposição a pagar, ofertando um prêmio pela aquisição do biometano, quando comparado ao gás natural fóssil. Como do lado da oferta ainda há um potencial relevante de crescimento, o mercado ainda está fazendo o cherry picking e acessando estes compradores que estão dispostos a pagar mais para acessar este produto verde de oferta ainda limitada. Foi um primeiro pedaço da conta.
Além do prêmio de preço, dado que a oferta ainda está vivendo sua curva de aprendizado e formando portfólio, os contratos para venda do biometano são, em nossa experiência, estruturados como uma put para o produtor, uma opção de venda de biometano a preço e condições de entrega previamente acordados. Como ainda não há um portfólio do lado do vendedor, os offtakers âncora do projeto acabam, na maioria dos casos, tomando parte do risco de cronograma de construção (inclusive referente ao ramp-up da planta) e da variação da curva de produção ao longo do contrato. Essa divisão de riscos é comum em mercados que estão começando e é uma incubação relevante para que a oferta reduza o grau de incerteza ora experimentado e possa estruturar novos produtos com maior flexibilidade para o lado da demanda. O mercado do concorrente gás natural, como sabemos, tem a dinâmica oposta, ainda definida a partir da influência da Petrobras e dependente de ativos desestatizados.
Outro ponto de destaque, que contribui para a monetização dos projetos de biometano a partir de seus atributos ambientais, é a possibilidade de emitir o Crédito de Descarbonização, o CBIO, no âmbito do programa Renovabio. Com isso, os produtores de biometano que vendam o produto atendendo aos critérios para formação de lastro previstos pela Resolução ANP n.º 802/2019 podem capturar também a receita de comercialização do CBIO na bolsa. Para além disso, os titulares dos projetos também podem emitir os certificados de rastreabilidade GAS-REC por meio do Instituto Totum, que, por garantirem a origem renovável do produto, sã utilizados pelo comprador para cumprimento dos compromissos corporativos de redução de emissões.
Para destravar o potencial da oferta, é também importante assegurar que o biometano vai estar sempre – pelo menos – em pé de igualdade tributária com os demais combustíveis de origem renovável. Caso contrário, perde-se competitividade em um momento em que os projetos estão na curva de aprendizado e conectando os pontos para fechar a conta. Nesse sentido, cita-se, por exemplo, a alteração da Portaria MME n.º 19/2021 pela Portaria Normativa MME n.º 37/2022, que passou a prever expressamente a possibilidade de enquadramento de projetos de produção de biometano no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (REIDI). A depender da política pública escolhida por cada governo, parece-nos haver benefícios que justifiquem a adoção de benefícios tributários, tal como historicamente foi feito para estimular a geração de energia elétrica a partir de fontes renováveis,
especialmente eólica e solar.
Em resumo, portanto, a conta tem fechado (i) pelo prêmio de preço e pela maior flexibilidade dados pela demanda para acessar um combustível de origem renovável que não se viabilizaria sem este push inicial; (ii) pela possibilidade de monetização do CBIO; e (iii) pela possibilidade de se manter, pelo menos, um level playing field em termos tributários em relação a outros combustíveis (de origem fóssil e renovável).
A criação de mais fontes de financiamento direcionadas para a nova indústria, ainda que sem qualquer tipo de subsídio, também ajudaria no seu fomento. No entanto, ainda é preciso transpor alguns obstáculos para alavancar o mercado de biometano no Brasil.
Há um potencial maior a ser explorado e a rede tem um papel estratégico aqui também. Da mesma forma que vem sendo repisado em relação ao gás natural de origem fóssil, um maior dinamismo na contratação da rede (gasodutos de transporte e de distribuição) permitirá a esses projetos alcançar novos mercados consumidores dispostos a pagar por esse “prêmio verde”. A contratação da rede, contudo, não pode representar um custo proibitivo e sem visibilidade dos mecanismos de gestão de risco (balanceamento, por exemplo), pois levaria ao resultado oposto do esperado.
Neste meio tempo, enquanto a oferta vive a curva, é importante nivelar as expectativas nas negociações. Apesar da fungibilidade em relação ao gás natural fóssil, o comprador ainda não pode ir com a expectativa de que a compra do biometano será a salvação para a redução da quantidade adquirida de terceiros (seja do supridor de gás, no caso das distribuidoras, seja da distribuidora, no caso dos consumidores), salvo em casos muito limitados. Como já discutido em outra coluna, esta redenção ainda não é completamente viável sequer em relação à compra do gás fóssil. Para que a negociação avance, é importante ter clareza que se está negociando uma put para o vendedor e regulando suas condições de exercício.