Governança no Setor Elétrico – Apontamentos

[:pt](texto-guia de apresentação feita na DEINFRA-FIESP)

O tema governança pode ser abordado a partir de diversos pontos de vista. Um deles é o do Direito, na medida em que normas jurídicas ocupam-se de (i.) conceber, criar e organizar estruturas de decisão formalizadas – órgãos ou pessoas jurídicas; (ii.) atribuir a essas estruturas competências e responsabilidades juridicamente acionáveis; (iii.) estabelecer procedimentos vinculantes para o exercício das competências e para a concretização de responsabilidades.

 

Aplicando-se esses três elementos ao setor elétrico, resulta que estamos preocupados em conhecer o arranjo institucional setorial: os sujeitos (normalmente públicos) que possuem competências em face da indústria; os modos como essas competências se manifestam; as responsabilidades que o eventual mau uso das atribuiçoes acarreta e, finalmente, as relações que esses agentes mantêm entre si e com os destinatários de suas ações (empresas, usuários, sociedade em geral). Queremos, em resumo, conhecer esses aspectos em relação ao Congresso Nacional, à Presidência da República, ao CNPE, ao MME, à ANEEL, ao CMSE, à EPE, ao ONS, à CCEE etc.

 

Para cada um desses atores isoladamente considerado e para o conjunto todo deles, a governança pode ser apreciada sob duas perspectivas analíticas distintas:

1. Perspectiva de mérito: qual é o arranjo institucional que melhor promove certos valores como a transparência, a participação dos interessados, a celeridade, a eficiência, a isonomia etc.? Ou que evita desvalores, como a captura regulatória, o conflito de interesses, o arbítrio e o casuísmo, a barganha política ou mesmo a corrupção? A resposta a essas perguntas convoca várias racionalidades materiais e diz respeito ao conteúdo da governança. Questões assim são o campo de reflexão conjunta de economistas, políticos, cientistas sociais.

2. Perspectiva de formal ou estrutural: qual é o arranjo institucional que melhor promove a Segurança Jurídica, isto é, que garante clareza, estabilidade e previsibilidade de resultados (seja a governança, em seu mérito, boa ou má)? Como evitar obscuridades, antinomias, intersecções ou sobreposições, vazios de atribuições e de responsabilidades, pelos quais podem se infiltrar o (puro) jogo de poder para ver quem manda – jogo que oscila segundo as circunstâncias do momento – ou o jogo de empurra, para ver quem se safa? Nesse plano, a razão jurídica tem muito a contribuir.

 

O que segue está concentrado nos aspectos formais ou estruturais da governança setorial. Veremos quais são os passos para construir uma clara e estável organização institucional e onde estamos falhando (não pouco). Ao final, espero sugerir que um dos grandes responsáveis – senão o maior – por nossas falhas de governança é um fenômeno muito mais amplo, que vai além dela: a baixa qualidade formal e estrutural de nossa construção jurídica setorial como um todo. Enquanto não prestarmos atenção para o que muitas vezes é tido como um aspecto marginal – “filigrana de advogado” – da regulação, seguiremos tendo, não apenas uma governança insegura e instável, como também uma identificação claudicante e incerta dos direitos e deveres de usuários, empresas e mesmo dos próprios sujeitos institucionais. E isso por melhor que seja, no mérito, uma regulação que não sabe se expressar direito. Não poderemos desenvolver este tema aqui, mas fica a sugestão: precisamos melhorar urgentemente o modo como lançamos no papel nossas boas intenções, em todos os campos do setor elétrico[1].

 

Então, como estruturar uma governança que promova a segurança jurídica? Vários são os requisitos. Em outro estudo, chegamos a identificar 15 “passos” que, se bem dados, poderiam levar a uma organização clara e estável das competências e de suas manifestações, das responsabilidades e dos procedimentos. E das relações entre os atores responsáveis por bem conduzir o setor elétrico. Aqui vamos nos limitar àqueles passos que ou são os mais importantes ou são os mais críticos à vista da situação atual do SEB.

 

Primeiro passo: delimitação do universo dos sujeitos dotados de competências e responsabilidades em face da indústria. Realizar essa tarefa pode parecer à primeira vista coisa fácil e pouco útil, mas não é assim. Muitas vezes ter apenas noção do número de órgãos, pessoas, departamentos etc. envolvidos na governança setorial já permite intuir sua complexidade. Além disso, análises setoriais frequentemente fazem o famoso organograma do “quem é quem” omitindo sujeitos importantíssimos, apenas porque eles não são específicos do setor, ou porque não são “do governo”. Sair listando CNPE, MME, ANEEL, CMSE (e, com algum favor, ONS e CCEE) é fornecer uma visão truncada do panorama institucional. Lá em cima, temos a Constituição; logo em seguida, o Congresso Nacional (que produz leis); depois, a Presidência da República (que produz MP’s e decretos). E também não convém eliminar de plano sujeitos como a EPE só porque é uma empresa estatal “auxiliar do Ministério” (a importância que ela e suas notas técnicas possuem sabem todos os que lidam com a expansão e planejamento da geração, por exemplo). Além disso, esse primeiro passo coloca em evidência uma questão que retomaremos depois: ONS e CCEE são entes institucionais? Estão na governança do SEB?

 

Segundo passo: determinação do âmbito de competência (e, consequentemente, da extensão da responsabilidade) de cada sujeito. Em direito, isso é o objeto ou a matéria da competência, a área da indústria em que alguém pode tomar providências de certo tipo (v. terceiro passo, adiante). De forma simplificada, encontramos na governança do SEB sujeitos que têm uma área ampla de ação (“serviços de energia elétrica”), como o Congresso e a ANEEL. E temos sujeitos que têm áreas mais restritas (“planejamento da geração”, “monitoramento das condições de oferta de energia” etc.). Sustentamos que as normas setoriais delimitam mal – de modo obscuro ou vago – os âmbitos de competência de muitos sujeitos, com prejuízos à clareza do sistema, em particular, prejuízo à clareza das relações entre os entes públicos.

 

Terceiro passo: determinação do tipo de competência. Um sujeito que tenha habilitação ampla para tratar do setor elétrico pode não ter um cheque em branco para agir “de qualquer forma admitida em direito”. A fim de evitar choques, sobreposições ou mesmo para adequar a providência requerida à estrutura e capacidade do sujeito, as normas setoriais costumam especificar tipos de competência: normativa (de certa qualidade, como “diretrizes”, ou “regulamentação”, p.ex.); de fiscalização; de planejamento; de fomento; de acompanhamento ou até mesmo mera atribuição consultiva. A ANEEL, por exemplo, tem um âmbito amplo (geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica) e dispõe de vários tipos de competência: normativa (regulação), de fiscalização, de incentivo, de solução de controvérsias etc. Outros atores encontram-se em situação diversa: possuem uma área limitada de ação (apenas em relação à transmissão, p.ex.) e um único tipo (planejamento, p.ex.). Normalmente, uma adequada disciplina da governança ainda se preocuparia em estabelecer o modo como cada tipo de competência se manifesta (se por “resolução”, “estudos técnicos”, “deliberações” etc.) para evitar que, p.ex., um “ofício” (ato que não costuma despertar muita atenção) tenha, materialmente, a importância de uma “resolução” solenemente publicada e previamente discutida. Mas vamos deixar esse aspecto de lado.

 

Os passos 2 e 3 são críticos. Sem uma clara indicação da área em que o sujeito pode atuar e do tipo de providência que pode tomar na área que lhe foi atribuído, o risco de ocorrrem choques, redundâncias e lacunas, com todas as consequências indesejáveis que se seguem, é grande. E não estamos pontuando bem aqui. Um caso paradigmático, ao qual retornaremos, é a incerta e oscilante relação existente entre Ministério e Regulador (ou entre Regulador e Poder Concedente – que não é a mesma coisa que MME). A partição de competências entre eles não promove a segurança jurídica em grande medida porque ambos têm áreas de atuação semelhantes (amplas) e a (ineficiente) coordenação se faz a partir da vaga ideia de que o MME faz “política setorial” enquanto que a ANEEL “regula”.  Problemas concretos que terminaram em embates ou jogo de empurra são a prova disso. Também dá para lembrar algumas controvérsias envolvendo atos do CNPE, os quais, segundo certo entendimento, não teriam força de normas, mas seriam simples manifestações de aconselhamento (ou seja: o Conselho pretenderia ter um tipo de competência que não lhe foi reconhecida). Ou, por outro viés, tais atos teriam invadido área de competência de outros sujeitos (ou seja: o Conselho pretenderia ter um âmbito de competência que não lhe foi reconhecido). Exemplos podem ser multiplicados, mas a raiz do problema está sempre em torno de práticas inadequadas: (i.) distribuição de competências a partir de dois modos entre si não harmônicos (enunciados gerais vs. enunciados pontuais de atribuição de tarefas); (ii.) fragmentação nas imputações de competências, feitas por diferentes leis, esparsas aqui e ali (e nem sempre apenas em leis); (iii.) uso e abuso de termos vagos e ambíguos (“políticas e diretrizes” vs. “regulação”); (iv.) atribuições de competência em cascata (lei, regulamento, portaria); (v.) frequentes oscilações de orientação (ora se privilegiam instâncias do Executivo, ora o Regulador).

 

Quarto passo: determinação das relações entre os sujeitos dotados de competência. Aqui, grosso modo, três modalidades são possíveis e devem ser estabelecidas de maneira adequada: (i.) hierarquia jurídica (não política); (ii.) coordenação/complementação; (iii.) atuação conjunta (“condomínio de competência”). Ponto importantíssimo é que essas relações devem ser estabelecidas por normas externas aos sujeitos que se relacionam – e não provenientes de um deles, como muito se vê no SEB, em que, p.ex., o Ministério determina que a ANEEL regulamente ato seu. Também aqui ainda há muito o que fazer e até hoje ainda discutimos acerca da “força” de resoluções do CNPE, das relações entre atos normativos da ANEEL e os regulamentos do Executivo, portarias do MME etc.

 

Quinto passo: estabelecimento de procedimentos certos e (sempre) necessários, mediante os quais os sujeitos atuam suas competências ou são responsabilizados por seus atos. Previsibilidade na manifestação, racionalidade na concatenação das etapas de tomada de decisão são requisitos óbvios, mas nem sempre estão presentes. Atos normativos da ANEEL, por exemplo, são produzidos em base a uma sequência de providências que prestigiam os valores de transparência, agilidade, simplicidade, participação dos interessados, atenção às consequências da medida (análise de impacto regulatório) e outros valores. Em outras esferas, as providências a cargo do ente competente não estão submetidas (ao menos necessariamente) a requisitos procedimentais que assegurem esses valores. O processo de edição de um Decreto, por exemplo, não é cercado desses cuidados. E podemos pensar em outros casos em que que medidas importantes são tomadas sem maiores cautelas e deliberações.

 

Sexto (e último) passo: a responsabilidade deve ser coextensiva à competência. Este é um tema pouco versado, mas que que merece atenção. Até pouco tempo atrás, era entendimento unânime que atos normativos “superiores”, se mal produzidos (por alguma razão juridicamente relevante), não ensejavam responsabilidade, salvo em umas poucas hipóteses de vícios gritantes. Essa ideia vem perdendo terreno, ao menos para os atos administrativos normativos, mas ainda está cercada de obstáculos. Menos impermeáveis à responsabilização são outros tipos de competência, como a de fiscalização. Mas ainda há muito o que se fazer para estabelecer responsabilidade em atos de planejamento, de fomento, em casos de exercício negligente de competências em geral etc. O problema, como veremos, é particularmente sensível em face de certos sujeitos como o ONS e a CCEE.

 

Trilhados esses seis – dos quinze – passos para a construção de uma boa governança desde a perspectiva formal e jurídica, vamos lançar para a discussão alguns casos que podem ser analisados à luz deles.

– O papel do Poder Executivo no setor elétrico, nas suas diversas configurações (Presidência da República, CNPE, MME).

– A (já referida) relação do Regulador com o Concedente e, em especial, com o MME (cujo papel necessita de melhor determinação).

– A organização, as competências e o regime de atuação e responsabilidade do ONS e da CCEE.

– Papel da Lei na disciplina setorial (pode ela tomar o lugar da regulação e dispor normas miúdas se isso for feito para contornar decisões da Agência sobre certo tema técnico?).

 

Para concluir estas notas, gostaria de voltar a um ponto que mencionei no início: as falhas formais de governança que encontramos no SEB são sintomas de um mal maior, qual seja, a baixa qualidade formal da regulação como um todo. Quem tem familiaridade com a história recente do setor elétrico e com a sua produção normativa[2] pode dar crédito às duras palavras do Prof. Floriano de Azevedo Marques Neto, que qualificou nossa legislação como  “atabalhoada, tecnicamente ruim, casuística e assistemática[3].” E pode concordar com o diagnóstico de Jerson Kelman que atribuiu não pouca parte da responsabilidade pelo apagão de 2001 a problemas semelhantes àqueles que elencamos aqui[4]. Em seu Relatório, Kelman pontuou a inexistência de leis para estabelecer a responsabilidade pelo planejamento da expansão do setor elétrico (apenas “Portarias do MME”)[5] e asseverou que “a regulação não se caracterizou por regras estáveis, claras e concisas de forma a criar um ambiente de credibilidade que tivesse propiciado o investimento, propiciando, ao mesmo tempo, o interesse do consumidor[6]”. Acrescentou ainda que “a legislação existente algumas vezes é vaga e conflitante. Nem sempre define com clareza as atribuições de cada instituição e nem aloca responsabilidades específicas na gestão do Setor[7]” e que “[a] solução passa necessariamente por uma revisão da legislação atual, que é um emaranhado confuso e, algumas vezes, conflitante ou vago de leis, decretos, portarias, protocolos de entendimentos, contratos de gestão etc[8]. Mais recentemente, Edvaldo Santana suscitou problemas semelhantes em relação ao episódio do Amapá[9].

 

Vê-se que regulação confusa e instável não é problema de segunda divisão. Pode ser tão perniciosa quanto regulação ruim no mérito. Em outro estudo procurei mostrar as razões que nos levam a tal estado de coisas e sugeri que, nada obstante a intrínseca dificuldade de regular um fenômeno social tão complexo como a indústria elétrica, com algum esforço – que não precisa chegar a um dificilmente realizável Código da Energia Elétrica – é possível fazer melhor.


[1] Para um diagnóstico, veja-se KAERCHER LOUREIRO, Gustavo, Instituições de Direito da Energia Elétrica – Volume I, São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 449 e segs.

[2] Procurei traçar esse desenvolvimento nas já citadas Instituições, Vol. I, p. 193 e segs., especialmente p. 297 e segs.

[3] Marques [s/d], acesso em https://www.migalhas.com.br › arquivo_artigo › manesco_4

[4] Com efeito, o chamado Relatório Kelman identificou uma mescla de problemas sob a rubrica “causas institucionais e normativas que contribuíram para a crise”. Foram elas: (i.) lacunas de atribuições e de atuação do CNPE e do MME/Secretaria de Energia; (ii.) dificuldades da ANEEL na implantação de um ambiente regulatório adequado; (iii.) desobediência a condições contratuais; e (iv.) legislação incompleta e insuficiente.

[5] KELMAN, Jerson, Relatório da Comissão de Análise do Sistema Hidrotérmico de Energia Elétrica, Brasília: [s.n.], 2001., cit. , p. 13 e segs.

[6] Ibid., p. 14.

[7]Ibid., p. 15.

[8] Ibid. p. 63. Considerações semelhantes encontram-se em PIRES, José Cláudio Linhares; GIAMBIAGI, Fabio; SALES, André Franco., As perspectivas do setor elétrico após o racionamento, Revista do BNDES, v. 9, p. 163–203, 2002., cit., p. 12 e segs.

[9] “Saliva, pólvora, apagão e lágrimas.”, publicado no Jornal Valor Econômico (texto disponibilizado pelo autor).[:]

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