Gustavo Kaercher Loureiro e Rômulo Mariani, advogados: Um novo Decreto para um velho problema

Canal Energia
Gustavo Kaercher Loureiro
Rômulo Mariani
Sócios de Souto Correa Advogados

E aqui está a tendência que se disse que tais Decretos manifestam: eles revelam, sob uma perspectiva específica, a precariedade no trato da CDE como um todo
Gustavo Kaercher Loureiro e Rômulo Mariani, advogados, para a Agência CanalEnergia, Artigos e Entrevistas

Na edição extra do Diário Oficial da União de 07 de março de 2014 foi publicado o Decreto 8.203. Por meio dele, inseriu-se o inciso III no art. 4.A do Decreto 7.891/2013, possibilitando ao Governo utilizar recursos da Conta de Desenvolvimento Energético – CDE para cobrir a exposição involuntária das distribuidoras no mercado de curto prazo “decorrente da compra frustrada no leilão de energia proveniente de empreendimentos existentes realizado em dezembro de 2013”. No ano de 2013 semelhante medida já havia sido adotada (Decreto 7.945), para cobertura da exposição involuntária das Distribuidoras oriunda de insuficiências contratuais em razão do procedimento de alocação das quotas de energia (Lei 12.783/2013) e também para cobertura do custo adicional decorrente do despacho de usinas termelétricas acionadas em razão de segurança energética (art. 4.A, incs. I e II, respectivamente).
Ambos os Decretos guardam semelhanças entre si e manifestam uma tendência que também se verifica em outros aspectos relacionadas com a Conta de Desenvolvimento Energético.
Quanto à semelhança, em primeiro lugar, ambos os Decretos revelam uma preocupação governamental absolutamente pertinente diante da situação financeira das distribuidoras. Com a edição desses atos, parece reconhecer a União que tal situação de desequilíbrio financeiro é (i.) de grande magnitude; e (ii.) oriunda de fatores que não podem ser imputados às empresas. Não fossem essas características, os atos não teriam razão jurídica para existir.
Em segundo lugar, a edição destes atos mostra que a solução para o problema reconhecido vem a conta gotas, por um ato pontual (o Decreto) e aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo. Se o problema é admitido e conhecido (como ele, de fato, é), seria melhor que a sua solução fosse estável e previsível. Mas ela não é.
E aqui está a tendência que se disse que tais Decretos manifestam: eles revelam, sob uma perspectiva específica, a precariedade no trato da CDE como um todo.
Tal precariedade começa já no procedimento que enseja a construção do orçamento da conta.
Para aperceber-se disso não são necessários longos argumentos ou provas de fatos complexos. É o próprio regulador a reconhecer essa circunstância.
No plano propriamente normativo, entende a ANEEL que a nova metodologia de fixação das quotas – alterada sensivelmente pela Lei 12.783/2013 – exigiria a elaboração de um novo Decreto que, dentre outras coisas, estabelecesse um fluxo ordenado de comunicação e informação entre os vários entes públicos encarregados de prestar-lhe informações (Eletrobras, Tesouro Nacional, Ministério de Minas e Energia, dentre outros) para a construção das despesas e receitas da CDE e, por via de consequência, da fixação das quotas da conta. Leia-se: “21. Cumpre ressaltar que faz-se necessária a regulamentação da fixação das quotas anuais da CDE, restando lacunas e revogações tácitas nos atuais regulamentos vigentes, quais sejam, os Decretos 4.541, de 23/12/02, n. 4.970, de 30/01/04 e 7.583, de 13/10/2011, dificultando a delimitação do papel dos agentes.” (Nota Técnica 33/2014-SRE/ANEEL).
Ainda no plano normativo, faltam também regras ulteriores que devem ser editadas pelo regulador, para disciplinar aspectos de sua competência não alcançados pelos Decretos, como mesmo reconhecido pela ANEEL que, de modo louvável, abriu audiência pública para esse fim. Leia-se: “100.
Assim, no entendimento desta SRE, tendo em vista a novidade do presente procedimento de cálculo das quotas da CDE e a ausência de regulamentação da matéria pela ANEEL, conclui-se pela submissão dos valores apresentados nesta Nota Técnica ao processo de Audiência Pública, pelo prazo de 30 dias, com vistas ao seu aperfeiçoamento.” (Nota Técnica 33/2014-SRE/ANEEL).
Por fim, adicione-se a esse panorama normativo impreciso a dificuldade empírica que possui a ANEEL de recolher a tempo e de modo adequado (nos termos do art. 42 do Decreto 4.541/2002) todas as informações de que necessita para a elaboração do orçamento da CDE.
Isso ficou patente em episódios também muito recentes.
Exemplo mais candente desse problema foi sentido quando a Agência teve que, em novembro de 2013, fixar provisoriamente as quotas da CDE sem considerar o aporte do Tesouro Nacional, por falta de tal informação (Nota Técnica ANEEL 527/2013-SRE/ANEEL). Em razão disso, a Resolução Homologatória 1.673 simplesmente prorrogou as quotas de 2013 para 2014.
Chegada a informação, em fevereiro de 2014, o Regulador refez o orçamento, majorando as quotas, também de modo provisório – porque entende necessário submeter o processo a uma audiência pública – em significativos 447% (REH 1.685/2014).
É nesse contexto que são onerados os consumidores de energia elétrica e os contribuintes.
Um ambiente regulatório saudável não combina com medidas emergenciais, dependentes da boa vontade do Governo, nem com a fixação de altos valores de contribuição para a CDE em meio a “lacunas” e “revogações tácitas” que dão origem a um procedimento inseguro de construção da conta.
Reconheça-se, por justiça, que houve, até o momento, ação adequada do Governo e grandes esforços do Regulador, mas reconheça-se, também, que o setor não pode viver aos sobressaltos, dependente de soluções que decorrem da sensibilidade e da competência técnica dos específicos agentes públicos envolvidos.
Mais do que eliminar problemas, a (correta) solução provisória do Decreto 8.203/2014 expõe as fragilidades do sistema. E, mais uma vez, vê-se que a juridicamente adequada condução do assunto envolve formalidades, procedimentos, definição de competências e outras tecnicalidades de que é feito o direito.

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