Liberdade acima dos 70 anos: reflexões acerca da escolha do regime de bens
[:pt]09/05/2022
ConJur
O início da organização econômica de um casal ocorre desde a constituição da relação, seja ela o casamento ou a união estável. Isso porque, logo que estabelecido o vínculo conjugal, há a eleição do regime de bens que regerá o aspecto econômico do relacionamento.
A escolha do regime de bens é tida como a maior prerrogativa de liberdade — ou a famigerada autonomia privada — no âmbito patrimonial do Direito de Família. O artigo 1.639 do Código Civil, por exemplo, estipula que é lícito aos nubentes dispor sobre os aspectos patrimoniais da forma mais conveniente, conferindo um espaço de liberdade na preferência das regras particulares da organização econômica e familiar. A prerrogativa significa que é possível adotar um dos regimes previstos na legislação: comunhão universal, comunhão parcial, separação de bens ou participação final nos aquestos; ou ainda elaborar um contrato (pacto antenupcial, no caso de casamento, e contrato ou escritura pública de união estável, no caso desta última) em que os pares estabelecem normativas próprias, inclusive podendo mesclar características dos regimes já estabelecidos em lei.
É possível, também, escolher um regime de bens quando do início da união e, passado o tempo, realizar a sua alteração para aquele que melhor se adeque ao contexto futuro. Atendidos os requisitos legais, o casal pode postular em juízo a alteração do regime patrimonial e, dessa forma, torna-se viável manter uma organização econômica dinâmica, que corresponda aos anseios da vida comum de forma constante. É, no entanto, esse grau de autonomia estendido a todos?
A resposta é negativa: a liberdade de disposição sobre a organização econômica familiar não está disponível a todos, sem exceção. Muito embora haja a previsão de que aos casais é permitida a escolha do regramento patrimonial que regerá a relação, o artigo 1.641 do Código Civil institui restrições, impondo o obrigatório regime da separação de bens em algumas circunstâncias. No rol daqueles que não possuem a liberdade de disposição sobre o patrimônio conjugal estão os que se casam sem observar as causas suspensivas do casamento, os maiores de 70 anos e os que dependem de suprimento judicial para casar.
Para estes, o regime de bens que regrará a vida econômica do casal será o da separação obrigatória de bens, criando, assim, uma nova categoria de regramento. O regime da separação obrigatória de bens carrega consigo características próprias, como a exclusão do cônjuge ou companheiro do rol de herdeiros concorrentes na herança ao lado de descendentes (artigo 1.829, I, do Código Civil), e a aplicação da Súmula nº 377 do STF, que estabelece que “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.
Nessa perspectiva, a restrição da liberdade de escolha do regime matrimonial instituída por lei visa, especialmente com relação aos idosos, a proteção do seu patrimônio e dos interesses dos seus herdeiros. O que há, em outras palavras, é uma presunção de vulnerabilidade, assumindo que não possuem plena capacidade de discernir sobre a escolha do regime de bens que regerá as suas relações constituídas a partir desse marco etário, de modo que caberia ao Estado estabelecer o regramento que confere maior isolamento patrimonial entre os consortes.
As consequências da obrigatoriedade de vigência do regime separatório são diversas. No plano sucessório, como já mencionado, o cônjuge ou companheiro é retirado do rol de herdeiros quando houver descendentes, devendo, caso seja a intenção do casal instituir um ao outro como seu respectivo sucessor, recorrer para as ferramentas de planejamento, como o testamento. Nesse caso, o interessado pode formalizar a disposição de última vontade instituindo o cônjuge como herdeiro testamentário, respeitada a legítima, que deve ser reservada no caso de existência de outros herdeiros necessários (como ascendentes e descendentes).
Por outro lado, no caso de não haver deixado descendentes, o companheiro ou cônjuge, ainda que submetido ao regime da separação obrigatória, passa a compor a linha sucessória. Segundo o artigo 1.829, II e III, do Código Civil, não havendo descendentes, o consorte concorre com os ascendentes e, igualmente não subsistindo estes, o cônjuge ou companheiro é o único herdeiro a receber os bens deixados pelo falecido, seguindo a ordem de vocação hereditária.
Por outro lado, ainda mais sensível é o debate que circunda a aplicabilidade da Súmula n.º 377 do STF, uma vez que o seu teor implica medida de confusão patrimonial entre aqueles que estão submetidos ao regime da separação legal. Em que pese o texto estipule a comunicação dos “bens adquiridos na constância do casamento”, atualmente é pacífico o entendimento de que, para que haja a comunhão do patrimônio, deve haver a comprovação do esforço comum para a sua respectiva aquisição (REsp nº 1.623.858).
A controvérsia, contudo, não finda aí. Considerando a impossibilidade de disposição sobre o regime de bens àqueles que se enquadram na hipótese etária, estariam, então, fadados à aplicabilidade da Súmula n.º 377 do STF e sua consequente comunicação parcial de bens, quando averiguado a existência de esforço comum. Sob essa perspectiva, o STJ lançou entendimento no sentido de que há a possibilidade de que os interessados afastem a aplicabilidade da mediante contratação própria — pacto antenupcial ou contrato de união estável —, fundamentalmente por se tratar de medida que impõe ainda maior proteção ao patrimônio do idoso, que é o propósito central do regime separatório em seu formato mandatório (REsp nº 1.922.347/PR).
Outra questão interessante aparece nos casos em que os interessados — sejam casados ou conviventes — vivem na relação conjugal desde antes de completarem 70 anos e, após essa idade, pretendem alterar o regime de bens, observados os requisitos legais previstos no artigo 1.639, §2º, do Código Civil. Esse debate ainda remanesce em aberto no âmbito dos julgamentos dos Tribunais Superiores. A prerrogativa de alterar o regime de bens é acompanhada da necessidade de 1) autorização judicial; 2) pedido motivado de ambos os cônjuges; e 3) resguardo do direito de terceiros. Atendidas tais premissas, e considerada como relativa e flexível a motivação dos interessados para o encaminhamento da alteração, é plenamente possível a modificação do regramento matrimonial durante a vivência da relação.
Contudo, a questão circunda a (im) possibilidade daqueles casados por um regime de bens, eleito quando inexistente qualquer restrição para a respectiva escolha, realizarem a sua alteração para qualquer outro, depois de completados os 70 anos. O STJ já decidiu, em casos com certa similitude, que, quando precedido da convivência em união estável enquanto o casal poderia escolher o regime de bens, o matrimônio constituído por maiores de 70 anos não estaria restrito ao regime da separação obrigatória (REsp nº 1.318.281).
Esta não é, entretanto, a solução derradeira para o debate, uma vez que não destrincha a possibilidade de realizar a alteração do regime de bens após o referido marco etário. Para desvendar tal controvérsia, há que se destacar que a escolha do regime de bens é prerrogativa diversa da sua alteração. Se, por um lado, os consortes poderiam escolher o seu regramento patrimonial à época do casamento ou união estável, deveria lhes ser restringida a alteração, se ocorresse depois de completados os 70 anos?
Em suma, diante da dinâmica das relações conjugais atuais, os indivíduos clamam, cada vez mais, por maior autonomia e liberdade de disposição acerca de sua organização patrimonial. Por outro lado, incumbe ao Direito acompanhar as transformações sociais tornando-se perenemente capaz de atender as demandas das relações familiares, comportando a adaptação daqueles vínculos constituídos sob um contexto que, nos moldes atuais, não mais refletem o desejo dos envolvidos. Assim, ainda que reconhecido o espaço de autodeterminação conquistado na seara patrimonial das relações familiares, há passos importantes a serem dados em busca da melhor adequação da norma e da vontade particular, especialmente em relação aos maiores de 70 anos, que ainda enfrentam restrições mais significativas no âmbito econômico do Direito de Família a serem enfrentadas pelos Tribunais Superiores.
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