Transferência de tecnologia e inovação: lições da pandemia

A Covid 19 causou estragos e transformações na saúde, na economia, nos comportamentos e modos de vida e nas relações de trabalho e pessoais. A esperança de melhora recaiu no empenho da ciência para acelerar, com esforços sem precedentes, o desenvolvimento e a produção de vacinas e soluções imunológicas de aplicação em massa, sem renunciar a segurança e a eficácia, na tentativa de garantir o acesso equitativo entre países.

A comunidade científica constatou, entretanto, que não é viável a produção de imunizantes em quantidades suficientes para abastecer todo o mundo. A procura tão elevada e inédita fez com que muitos países se vissem em uma situação de grande dificuldade no acesso a vacinas, limitado por insuficiente capacidade de produção, a par de uma procura anormalmente elevada.

No Brasil, vivemos exatamente essa realidade, enfrentando  a falta de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para a produção dos imunizantes. Se o país tivesse a capacidade de produção internalizada desde o primeiro momento, teria sido possível produzir muito mais doses e deslanchar a campanha de vacinação de forma mais antecipada e eficiente para a população.

É nesse cenário que dois laboratórios lideraram parte da solução da crise do coronavírus no Brasil por meio de parcerias de transferências de tecnologia: o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fiocruz e o Instituto Butantan, os maiores produtores de imunobiológicos do país. Vale reforçar que os dois laboratórios fazem parte do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que, ao longo de décadas, alcançou reconhecimento mundial por seus aspectos tecnológicos, logísticos e estratégicos. É um dos maiores programas de vacinação do mundo, com expertise em vacinação em massa.

A Fiocruz fez parceria com a Universidade de Oxford e a AstraZeneca, do Reino Unido, para produzir a vacina de tecnologia de vetor viral, enquanto o Instituto Butantan fez acordo com a empresa Sinovac, da China, para a produção da CoronaVac, composta pelo Sars-Cov2 inativado e usado para estimular a resposta do organismo.

O processo de transferência de tecnologia firmado com Oxford/AstraZeneca e Sinovac para a produção de vacinas no Brasil foi dividido em três etapas: a primeira com a importação das vacinas prontas para envasamento e rotulagem no Brasil; a segunda com a importação apenas do IFA para que fossem incorporados os excipientes para posterior envasamento e rotulagem no Brasil; e a terceira com a fabricação do IFA nacional, não tendo mais a necessidade de importar qualquer ingrediente.

Para a produção do IFA nacional, tanto o Butantan quanto a Fiocruz receberam capacitação tecnológica para que incorporassem etapas de produção das vacinas em suas próprias unidades. Em janeiro deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o registro do IFA totalmente produzido pela Fiocruz.

Vacinas são produtos complexos, assim a transferência de tecnologia acelera a capacitação tecnológica da instituição receptora, pois a produção não é iniciada do zero. A entidade detentora do conhecimento compartilha o know-how, garantindo que etapas do processo sejam aprendidas sem tantos tropeços no caminho. A receita é compartilhada, aprendendo-se mais rápido a fabricar o produto.

Países em desenvolvimento, como o Brasil, precisam utilizar de forma mais estratégica a ferramenta de transferência de tecnologia, como visto no caso das vacinas para a Covid-19, para auxiliar na capacitação de indústrias de alta-tecnologia no âmbito doméstico, alavancando a competitividade do país no cenário econômico mundial com a aquisição de conhecimentos tecnológicos.

Embora seja possível competir por meio de conquista de mercado por preço, design, novos produtos ou valor agregado, a inovação é a chave para um ambiente competitivo e necessitado de novas soluções. Esse processo está fortemente ligado à tecnologia, que pode ser criada internamente por Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), bem como  adquirida de fontes externas. Em qualquer caso, as atividades de P&D são necessárias, já que a inovação não prescinde de uma adaptação da tecnologia adquirida de terceiros para se atingir o que se propõe.

Com a capacidade de replicar competências tecnológicas, uma nação tem a chance de evoluir tecnicamente e ser cada vez mais capaz de realizar seus próprios desenvolvimentos. A transferência de tecnologia garante, não só no setor farmacêutico, a ampliação das chances de inovação e fortalecimento de uma posição privilegiada no mercado. O conhecimento técnico gerado é um fator determinante de competitividade. E no longo caminho que há na atividade de P&D, a transferência de tecnologia é um catalisador que encurta muito o tempo dispendido para que os resultados possam ser alcançados.

Referências

Artigo publicado pelo Estadão.
Autoras: Leticia Provedel e Sinara Travisani
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