Vinculação dos árbitros aos precedentes judiciais

Guilherme Amaral
Consultor Jurídico (CONJUR)
03/10/2015

Em recente Congresso realizado pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr),[1] discutiu-se o tema da vinculação dos árbitros aos precedentes judiciais, tendo o professor Francisco José Cahali proferido brilhante palestra sobre o tema.

O objetivo deste breve artigo não é tratar do tema de modo abrangente, o que foi feito em obra específica, na qual concluímos pela vinculação dos árbitros a determinados precedentes judiciais.[2] Pretendo tão somente dialogar com algumas ideias que foram apresentadas pelo ilustre palestrante.

Cahali iniciou sua exposição partindo de um problema hipotético, consistente na decisão do árbitro que ignora uma reforma legislativa e decide julgar com base no texto da lei revogada. Estaria o árbitro autorizado a fazê-lo? No entender de Cahali, não. O árbitro deve julgar conforme o direito vigente, salvo quando autorizado pelas partes a deixar de fazê-lo.

Seguiu-se a exposição, afirmando-se que, da mesma forma que o árbitro deve observar o direito legislado, deve também observar os precedentes judiciais que, com o novo CPC, passariam a constituir fonte normativa. A inobservância dos precedentes pelo árbitro estimularia a imprevisibilidade e a insegurança jurídica.

Ao final, contudo, concluiu Cahali que a sentença arbitral que deixa de aplicar o precedente não estará sujeita a anulação com base no artigo 32, IV, da LArb, sendo os precedentes persuasivos e devendo os árbitros agir com bom-senso na sua aplicação.

Observo que, reconhecido o dever do árbitro de seguir o precedente, a licença para o uso do bom-senso nada mais é do que um apelo ao senso de justiça do julgador. Trata-se, aqui, de franquear ao árbitro a possibilidade de avaliar a conveniência de reproduzir o mesmo entendimento da corte de precedentes ou de, dele, se desgarrar.

Esse apelo ao senso de justiça ou conveniência do árbitro, contudo, confunde-se com a ideia de julgamento por equidade, como reconhece a doutrina arbitral.[3] Julgamentos por equidade — que não se confundem com julgamentos com equidade[4] — são exceção, somente legitimados quando autorizados expressamente pelas partes.[5] Isso porque a autorização de julgamento por equidade implica autorização para julgar contra legem, ou ainda a própria derrogação do direito positivo.[6] A necessidade de expressa autorização das partes, nesses casos, erige-se em princípio largamente reconhecido na arbitragem internacional[7] e doméstica.[8] Decisões que ignoram o direito e são proferidas com base exclusivamente no senso de justiça do árbitro são extravagantes e, assim, passíveis de anulação, como reconhecem as cortes de diferentes países.[9]

A arbitragem doméstica brasileira não destoa desse princípio. O Brasil adota em sua lei de arbitragem (Lei 9.307/96 – LArb, artigo 11) a orientação da Lei Modelo de Arbitragem da UNCITRAL, segundo a qual o tribunal somente poderá decidir por equidade se expressamente autorizado pelas partes (artigo 28-3). Nisso se alinha com a orientação da ampla maioria das legislações nacionais e das regras institucionais, sendo honrosa exceção o direito arbitral argentino, que prevê, na ausência de manifestação expressa das partes, estar o árbitro autorizado a agir como amiable compositeur (Código Procesal Civil y Comercial, artigo 766).[10]

No Brasil, quando o árbitro decide por equidade sem autorização das partes, está decidindo fora dos limites da convenção de arbitragem, atraindo a sanção de nulidade para sua sentença, nos termos do artigo 32, IV, da LArb. Como afirma Cahali em festejada obra, “vedado na convenção o julgamento por equidade, mesmo nas hipóteses em que a lei material eventualmente autoriza tal método, o árbitro estará adstrito à vontade das partes, e assim, caso a sentença venha a decidir o conflito fundamentando-se na equidade, será nula, na forma prevista no inciso em exame”.[11]

Facilmente se vê, portanto, que se Cahali reconhece o dever dos árbitros em julgar conforme os precedentes judiciais e vê, nestes, fonte de direito tal qual a lei emanada do parlamento, deveria coerentemente reconhecer a anulabilidade da sentença arbitral que desconsidera o precedente.

O reconhecimento do precedente judicial vinculante como fonte de direito não deve ser visto como algo extravagante.[12] Já a ideia de que o árbitro poderia aplicar ordenamento jurídico distinto daquele aplicado pelo juiz, esta sim, deve ser vista como extravagante, na medida em que confunde diferentes sistemas de resolução de conflito (judicial e arbitral) com diferentes ordens jurídicas.[13]

O árbitro vincula-se aos precedentes judiciais na medida em que as partes elegem arbitragem de direito e que os precedentes judiciais vinculantes integram o Direito brasileiro. É dizer: não está o árbitro vinculado aos precedentes por conta da (inexistente) aplicação direta de dispositivos do CPC à arbitragem, mas pela vontade das partes que deram ao árbitro a missão de julgar conforme o direito.

Essa constatação não implica fragilização da definitividade da sentença arbitral. Pelo contrário, legitima-a como ato consentâneo com o interesse das partes que, aliás, podem muito bem optar por arbitragem por equidade ou, ainda, por expressamente excluir, no compromisso arbitral, a aplicação de precedentes.[14] O que não se pode é presumir tal escolha quando as partes assim não dispuserem expressamente.

Além disso, é preciso aquilatar o impacto real dessa conclusão.

Estudos sobre arbitragem internacional apontam que 60% a 70% dos casos são decididos com base na prova e não em controvérsias sobre a interpretação de normas jurídicas.[15] Nestes casos, precedentes não teriam impacto algum. Como se não bastasse, quando a controvérsia diz respeito a questões de direito, não raro diz respeito à interpretação de cláusulas contratuais, hipótese em que, também, precedentes dificilmente exercerão algum papel, mormente aqueles das Cortes Superiores (os únicos que, no meu sentir, são vinculantes para os árbitros).[16]

Restaria, assim, um reduzidíssimo número de arbitragens em que se controverteria sobre interpretação de leis ou dos próprios precedentes. Ainda aqui, serão extremamente raros os casos em que decisões de tribunais superiores exercerão algum papel. Ocorre que não é possível extrair precedente de toda e qualquer decisão judicial. Como já ressaltamos,[17] o precedente não se confunde com a decisão judicial do qual emana. Ele deve ser dela extraído por quem o aplicará subsequentemente a partir da ratio decidendi. Na clássica definição de Salmond, “o precedente é uma decisão judicial que contém em si mesma um princípio. O princípio subjacente que forma seu elemento de autoridade é geralmente chamado de ratio decidendi”.[18] Pode-se dizer que o precedente reside fundamentalmente na ratio decidendi de uma decisão judicial, ou seja, nos motivos determinantes e generalizáveis que podem ser aplicados no processo decisório de outros casos semelhantes.

É fácil ver, portanto, que para uma decisão judicial gerar precedente vinculante para o árbitro, será preciso nela identificar motivos determinantes generalizáveis e deles extrair uma ratio decidendi capaz de ser aplicada ao substrato fático análogo de um conflito arbitral.

Digamos, contudo, que uma tal hipótese ocorra. Poderá a sentença arbitral ser anulada simplesmente se aplicado erroneamente o precedente? É claro que não. Tal qual ocorre nos julgamentos por equidade, não é porque o árbitro errou ao interpretar a lei que a sentença estará viciada. O que gera o vício e a possibilidade de anulação é o julgamento expressa e conscientemente contra legem. Nele se reconhece a existência de lei ou do precedente vinculante mas se deixa de aplicá-los por entender, o árbitro, ser capaz de encontrar solução mais justa do que encontrou o legislador ou a corte de precedente. É assim, por exemplo, nos Estados Unidos, que limita as hipóteses de revisão judicial do mérito da decisão ao manifest ou conscious disregard of the law,[19] e também na Inglaterra, cujo appeal on point of law não autoriza o Judiciário a corrigir a aplicação do direito pelo árbitro, mas apenas a escolha do direito, seja ele oriundo do parlamento (statutory law) ou do judiciário (precedent).[20]

Assim, se o árbitro reconhecer o precedente mas fizer o distinguishing equivocadamente, sua sentença não será passível de anulação. Se, por outro lado, o árbitro reconhecer o precedente mas decidir julgar contrariamente a ele por entender estar errada a corte de precedentes, a sentença arbitral será passível de anulação na medida em que o árbitro estará julgando exclusivamente conforme seu senso de justiça. É dizer, estará julgando por equidade, contrariando a vontade das partes que escolheram arbitragem de direito. Se, por fim, o árbitro for provocado a se manifestar sobre o precedente e deixar de fazê-lo, a sentença será passível de anulação por falta de fundamentação (LArb – artigo 32, III, combinado com 26, II).

[1] XVI Congresso Internacional de Arbitragem – Gramado-RS, 24 a 26 de setembro de 2017.

[2] Amaral G. Judicial Precedent and Arbitration: are Arbitrators Bound by Judicial Precedent? London: Wildy, Simmonds & Hill, 2017.

[3] “This type of flexible, non-legal standard is generally referred to as amiable composition or arbitrators deciding ex aequo et bono. (…) In principle, when parties authorise the arbitrators to act as amiables compositeurs or ex aequo et bono, they allow them to depart from the constraints of any particular national system. They have to decide according to fairness and common sense principles; they can ignore any applicable law rules but arguably not the contract between the parties” (Lew JDM, Mistelis LA, Kroll S. Comparative International Commercial Arbitration. Kluwer Law International; 2003, 470-471).

[4] No julgamento com equidade o julgador não está autorizado a se afastar do direito positivo, porém dele mesmo extrai o poder de julgar equitativamente (vide, por exemplo, art. 928, parágrafo único, Código Civil). No julgamento por equidade, o julgador está autorizado a se afastar do direito positivo para decidir com base no seu senso de justiça.

[5] Lei Modelo da UNCITRAL, art. 28 (3); ICC Rules, art. 21 (3); LCIA Rules, art. 22.4; SIAC Rules, art. 31.2; HKIAC Rules, art. 35.2; AAA International Dispute Resolution Procedures, art. 31 (3): 3.

[6] Nesse sentido, Della Valle M. Arbitragem e Equidade: uma abordagem internacional. São Paulo: Atlas; 2012. p. 143.

[7] “Except where some other criteria is expressly stated by the parties, a tribunal must determine the issue between the parties taking account of the contract terms, trade usages and the applicable law. One such exception is where the parties agree the tribunal should determine the issues in accordance with its view of what is right and fair in the circumstances” (Lew, Mistelis et al. 2003, 470-471).

[8] Carmona CA. Arbitragem e Processo, 3ª edição. São Paulo: Atlas; 2009, p. 210-211.

[9] Exemplos claros disso podem ser encontrados em decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos e do Judiciário Irlandês:

“It is only when [an] arbitrator strays from interpretation and application of the agreement and effectively ‘dispense[s] his own brand of industrial justice’ that his decision may be unenforceable.” (Stolt-Nielsen S. A. et al. v. Animalfeeds International Corp. [No. 08-1198] 548 F. 3d 85. US Supreme Court).

“The arbitrator has no power to disregard the law. While he or she has a wide measure of discretion to decide how a dispute is to be resolved such decision must be according to the law unless the parties agree to an arbitrator acting as amiable compositeur. (…) The duty of an arbitrator is to decide the questions submitted according to the legal rights of the parties and not according to what he may consider fair and reasonable under the circumstances” (Marshall v Capitol Holdings Limited [2006] IEHC 271. Murphy J, High Court of Ireland).

[10] Há diferenças entre julgamento por equidade e amiable compositeur, porém não são relevantes para a presente discussão. Sobre o tema, vide Yu L. Amiable Composition – A Learning Curve. Journal of International Arbitration. 2000;17(1):79-98.

[11] Cahali F. Curso de Arbitragem. SP: Revista dos Tribunais, 2015. 5ª ed. p. 295.

[12] Cruz e Tucci, JR. Precedente judicial como fonte de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004; Zaneti Jr., H. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016. 2ed. p. 175-178; Mitidiero D. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 98.

[13] Amaral 2017, 50-57.

[14] Amaral 2017, 74-79.

[15] Blavi F, Vial G. The burden of proof in international commercial arbitration: are we allowed to adjust the scales? Hastings International and Comparative Law Review. 2016;39(1):41. 2016, p. 43.

[16] Precedentes de cortes estaduais somente vinculariam quando tratassem de questão envolvendo direito municipal (vide Amaral 2017, 71-74).

[17] https://www.academia.edu/29309760/Precedentes_e_a_Tetralogia_de_Streck

[18] Salmond J. The Theory of Judicial Precedents. 16 L. Q. Rev. 376 (1900). p. 387.

[19] “For there to be ‘manifest disregard of the law’ the arbitrators must have been presented with controlling precedents which they refused to apply”. (Detroit Auto. Inter-Insurance Exchange v. Gavin. Supreme Court of Michigan. (1982) 416 Mich. 4073416 Mich. 407, 331 N.W.2d 418).

“Examples of manifest disregard therefore tend to be extreme, such as ‘explicitly reject[ing] controlling precedent’ or otherwise reaching a decision that ‘strains credulity’ or lacks even a ‘barely colorable’ justification”. (Countrywide Financial Corp. v. Bundy. Court of Appeal, Second District, Division 5, California. 2010. 187 Cal.App.4th 234).

“Only an arbitrator’s explicit rejection of controlling precedent or willful flouting of governing law or some similar egregious impropriety suffices to justify judicial vacatur of an arbitration award (Williams v. Mexican Restaurant, Inc. United States District Court, E.D. Texas, Beaumont Division. (2009) WL 531859)”.

“(…) this description of manifest disregard is very narrow. Because the arbitrator is fully aware of the controlling principle of law and yet does not apply it, he flouts the law in such a manner as to exceed the powers bestowed upon him. This scenario does not include an erroneous application of that principle” (Citigroup Global Markets, Inc. v. Bacon, United States Court of Appeals, Fifth Circuit. 2009 562 F.3d 349).

[20] O standard aplicado na revisão de sentenças arbitrais pelas cortes inglesas foi concebido pelo Justice Mustil no caso Vinava Shipping Co Ltd v Finelvet AG (The Chrysalis) [1983] 1 WLR 1469, [1983] 1 Lloyds Rep 503, em que Mustil propôs uma análise em três estágios: (1) definição dos fatos, (2) definição do direito e (3) aplicação do direito. Apenas o segundo estágio é passível de revisão no appeal on point of law da Section 69 do English Arbitration Act.

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