Com alfinetadas a Porto Alegre, Jan Gehl diz que cidades têm de voltar a ser pensadas para as pessoas

Jornal Zero Hora

 

Para o arquiteto dinamarquês, não se pode mais repetir a “síndrome de Brasília”, com projetos que não levam em conta o bem-estar da população

Em uma apresentação inspirada e espirituosa, o arquiteto dinamarquês Jan Gehl arrancou aplausos e risos da plateia presente na última conferência do ano do ciclo Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre. O encontro desta noite no Salão de Atos da UFRGS mostrou um palestrante retomando conhecidos preceitos de seus trabalhos, mas aproveitando a oportunidade para mostrar à capital gaúcha que humanizar seus espaços públicos, a exemplo de cidades como Copenhague e Nova York, passou a ser essencial para a vida no século 21.
Usando como exemplos algumas das cidades em que trabalhou — pessoalmente ou através da empresa de consultoria Gehl Architects, que executou projetos em São Paulo e Rio de Janeiro —, o arquiteto condenou a abordagem modernista que passou a definir as metrópoles, segundo ele, principalmente após o advento em larga escala dos carros, por volta de 1960. Nesse tipo de planejamento urbano, as cidades passaram a ser vistas e pensadas de cima, sem que fosse dada a devida importância à integração entre pessoas e praças, ruas, parques.

— Começou-se a separar áreas para morar, para trabalhar, para comprar, para lazer. Isso é diferente de tudo o que tinha acontecido na história da humanidade até então. Os arquitetos e planejadores não estavam olhando para as pessoas.

O exemplo máximo dessa discrepância entre o urbanismo de prédios e aquele voltado para as pessoas pregado por Gehl está em Brasília. Foi depois de ser ensinado, na faculdade de arquitetura que cursou na Dinamarca, que a capital brasileira deveria ser uma referência — e com valiosa ajuda, em forma de crítica, de sua esposa, uma psicóloga com quem está casado há 54 anos — que ele decidiu estudar por que as cidades não eram pensadas de baixo, das calçadas. Os maus exemplos, apresentados com certa comicidade em fotos com mais prédios e carros que gente e calçadas, pareceram à plateia muito familiares.

Quase cinco décadas de estudos depois, o arquiteto de 80 anos viaja o mundo pregando o mal de cidades como Brasília. E, em suas ponderações na noite desta segunda, não faltaram críticas, ainda que mais a título de exemplo, também a Porto Alegre. A primeira surgiu em uma comparação com sua cidade natal, Copenhague, que tem população total semelhante à capital gaúcha (1,2 milhão de habitantes por lá, 1,4 milhão aqui). Para o arquiteto, o exemplo dinamarquês de valorização do transporte público, criação de amplos espaços de convivência e incentivo ao uso da bicicleta deveria ser seguido nas metrópoles.

A segunda crítica surgiu em outra comparação — e com outra cidade que passou a aparecer com frequência nas primeiras posições entre as consideradas melhores para se viver. Ao exaltar a disposição de Melbourne, na Austrália, de se humanizar, Jan Gehl brincou:

— Melbourne é hoje a melhor cidade para se viver no hemisfério Sul. Por que não poderia ser Porto Alegre? Por que deixar para aqueles malditos australianos?

A cartada final veio com mais uma referência à Dinamarca. Mencionando que Copenhague criou, em 2009, um catálogo mostrando sua evolução como “cidade humanizada”, em que também destacava o plano de assim se manter pelas próximas décadas, o arquiteto disse:

— Eu trouxe aqui uma cópia para o prefeito de Porto Alegre — e jogou o catálogo no chão, sob fortes aplausos.

Ao final, já cansado, Jan Gehl disse o que muitos queriam ouvir. Questionado sobre o que tinha achado de Porto Alegre, afirmou que os dois dias de experiência no município eram poucos, mas tinha chamado sua atenção que a cidade, apesar de ter uma orla fantástica, havia virado as costas para ela. Alguns políticos, presentes durante a palestra, saíram logo no início da parte dedicada às perguntas e não ouviram a declaração — nem sua calorosa recepção por parte do auditório.

O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e parceria cultural PUCRS. Empresas parceiras: Liberty Seguros, CMPC Celulose Riograndense, Souto Correa, Sulgás e Stihl. Parceria institucional Hospital Mãe de Deus, Fecomércio e Unicred e apoio institucional UFCSPA, Embaixada da França e prefeitura de Porto Alegre. Universidade parceira: UFRGS. Promoção: Grupo RBS.

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