Como funciona a engrenagem das notícias falsas no Brasil
Letícia Provedel
Folha de São Paulo
20/02/2017
Leticia Provedel já tinha Beto Silva entre seus contatos telefônicos e recebia dele correntes e outras bobagens que costumam circular num aplicativo de celular.
Especialista em propriedade intelectual e advogada de Gilberto Gil, ela conversara com Beto por telefone duas vezes, em 2015 e em 2016, para avisá-lo de que seria processado caso não retirasse do ar inverdades sobre o cantor publicadas no site Pensa Brasil.
Beto, dono do site, pagou para ver. Às vésperas do Natal passado, o Pensa Brasil publicou uma notícia com o título “Lula lutou muito pelo Brasil, não merecia esse juizinho fajuto, diz Gilberto Gil”, ilustrada com uma foto do artista. O “juizinho fajuto”, dizia o texto, era Sergio Moro.
Como jamais afirmara aquilo sobre o magistrado da Lava Jato, Gil entrou na Justiça contra o Pensa Brasil e o Facebook. Pedia a retirada imediata de todos os links e compartilhamentos da notícia falsa.
Citando decisão do ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “a internet é o espaço por excelência da liberdade, o que não significa dizer que seja um universo sem lei e infenso à responsabilidade pelos abusos que lá venham a ocorrer”, o juiz Carlos Saraiva, do Rio de Janeiro, deferiu o pedido de Gil.
A liminar saiu numa sexta, 23 de dezembro de 2016. No dia seguinte, o conteúdo foi removido. Gil decidiu manter uma ação de indenização por dano moral.
Essa e outras notícias falsas sobre críticas do cantor a Sergio Moro haviam chegado ao conhecimento do juiz da Lava Jato. Quem se encarregou de desfazer a mentira foi o jornalista Jorge Bastos Moreno, amigo de Gil, ao final de um evento público com o juiz. Admirador da obra do cantor baiano, Moro gostou de saber.
Ao receber a decisão da Justiça do Rio, Beto alegou que apenas reproduzira o conteúdo de um site parceiro.
Em entrevista à Folha, o dono do Pensa Brasil deu outra versão: disse que três fontes, todas representantes de movimentos pró-impeachment de Dilma Rousseff (PT), haviam visto um show de Gil em que ele dissera a tal frase contra Moro. “Buscamos de todas as formas, mas não conseguimos um vídeo desse show.”
TEIA
Alberto Júnio da Silva, 37 anos, vive em Poços de Caldas, sul de Minas, onde é conhecido como Beto Silva ou Beto Louco –o apelido, ele diz, foi dado pela “coragem de denunciar” problemas da cidade.
Beto é hoje o integrante mais ativo e barulhento de um trio que se formou em Poços e logo alçou a nível nacional o negócio do grotesco nos meios digitais. Seus sites integram uma teia de páginas que disseminam pela internet informações falsas e/ou de teor sensacionalista –uma pandemia conhecida no mundo todo sob o rótulo de “fake news” (notícias falsas) e que passou a chamar a atenção devido a sua influência em votações no Reino Unido e nos EUA, no ano passado.
Luciano Vieira e Luciano Moura são os outros integrantes do trio, que se uniu no início desta década em torno da marca Pensa Poços. Criada para tratar de temas da cidade, já batizou um jornalzinho, uma webrádio e uma página no Facebook –que hoje Beto toca sozinho, após o grupo ter rachado.
Pensa Brasil, Brasil Verde e Amarelo, Diário do Brasil, Folha Digital, Juntos pelo Brasil, Jornal do País, Saúde, Vida e Família, Você Precisa Saber, Em Nome do Brasil, Folha de Minas, The News Brazil e Na Mira da Notícia são sites que estão ou estiveram recentemente no ar com características semelhantes. Foram criados por membros do trio ou por alguém próximo a ele –em alguns casos, um deles registrou o domínio e cedeu para parceiros desenvolverem os sites. Se há problemas com uma página, ela é fechada, e logo reaparece sob um novo endereço.
“É preciso talento até para criar um domínio”, comenta Vieira, que tocava o Brasil Verde Amarelo até janeiro, quando, segundo conta, o Google lhe informou que ele perdera sua conta por violar políticas de conteúdo da empresa. Ele atribui o revés ao espalhafato do ex-parceiro Beto, a quem dirige termos pouco amistosos.
Vieira, que hoje vive em Lavras (MG), mantém uma página do Brasil Verde Amarelo no Facebook e está associado aos sites Jornal do País (disse que o domínio é dele, mas que amigos cuidam da página, na qual há várias postagens em seu nome) e Juntos Pelo Brasil (afirmou que não é dele, mas aparece no expediente como diretor e atende o celular registrado na página).
A reportagem não conseguiu contato com Luciano Moura. Na eleição presidencial de 2014, ele teve seus 15 minutos de fama quando a campanha de Aécio Neves, candidato pelo PSDB, acionou o Ministério Público para investigar o site Poços 10, que atacava o tucano e a família dele. Moura era um dos autores do site –que não existe mais– e fazia a página de um vereador petista da cidade.
As ações de Beto Silva e da rede de Poços de Caldas, contudo, não se guiam exclusivamente por motivos político-ideológicos. Na cidade, o Pensa Poços já atacou (e defendeu) políticos de todos os matizes. A teia abriga páginas explicitamente de direita (como era o Brasil Verde e Amarelo), outras pró-Lula e pró-PT (caso do Em Nome do Brasil) e ainda outras que atiram para todos os lados.
O Pensa Brasil, maior site de Beto, está nesse último segmento. Costuma ser rotulado como de direita e prosperou com a debacle petista, mas volta e meia ataca Aécio e o governo Temer (PMDB).
O que une esses sites é a busca por cliques. No mundo digital, clique é dinheiro. E, quanto a isso, o Pensa Brasil de Beto Silva não vai nada mal.
ANÚNCIOS
Sites lucram com a venda de anúncios. Quanto maior a audiência da página, mais ela ganhará com publicidade. Segundo a empresa comScore, que mede audiência digital, o Pensa Brasil teve em dezembro passado 701 mil visitantes únicos, com média de três páginas vistas por visita (ou seja, 2,1 milhões de páginas vistas/mês). Jornal mineiro mais acessado na web, o “Estado de Minas” teve no mesmo mês 2 milhões de visitantes únicos e 16 milhões de páginas vistas.
A comScore registra que, em março de 2016 –mês da maior manifestação pró-impeachment e da condução coercitiva do ex-presidente Lula-, o Pensa Brasil alcançou 3,2 milhões de visitantes únicos e 10,7 milhões de páginas vistas. A turbulência política de 2016, aliás, foi uma “era de ouro” da audiência digital, da qual os sites de notícias falsas se beneficiaram à larga.
Beto Silva não quis dizer quanto ganha com o Pensa Brasil. Profissionais do mercado publicitário consultados pela reportagem estimaram que os anúncios do site rendam de R$ 100 mil a R$ 150 mil por mês, dos quais até 50% ficariam com o intermediário e o restante com o dono do site.
A venda da publicidade costuma ser feita por agências especializadas ou via ferramentas como o Google AdSense, que seguem a lógica de um leilão: o site diz o preço mínimo que pretende receber por anúncio e qual modalidade prefere, sendo as mais comuns CPM (custo por mil impressões, que considera o número de visualizações) e CPC (custo por clique, em que o pagamento é calculado em cima de quantas vezes o anúncio foi clicado).
Os anunciantes definem o perfil de público que querem atingir, mas não controlam em que site a propaganda será veiculada. A audiência é o principal requisito para quem anuncia; no caso de sites de notícias, não costuma haver verificação sobre a credibilidade do veículo ou a qualidade da reportagem.
Em geral sob títulos berrantes, com notícias que embaralham verdade e mentira, o Pensa Brasil e seus similares se retroalimentam, com ajuda de páginas e perfis criados por seus donos no Facebook.
Em 6 de fevereiro, por exemplo, três dias depois da morte da ex-primeira dama Marisa Letícia, o Pensa Brasil publicou uma notícia com o título “Marisa fotografada na Itália. Morte da mulher de LULA é mentira, ENTENDA!”. O texto dizia:
“Sem barreiras na internet e redes sociais, tanto notícias verdadeiras como falsas podem se espalhar rapidamente. Após a morte da esposa de Lula, Marisa Letícia, espalhou-se uma notícia de que a mesma não estaria morta (boato). Isto! Está [sic] correndo boatos de que Marisa esteja viva e foi flagrada recentemente na Itália”. Em seguida, apresentavam-se detalhes da mentira, publicada dois dias antes pelo site Saúde, Vida e Família, sob o título “Marisa é fotografada na Itália e médicos contestam farsa de morte com caixão lacrado!!!”. Este texto trazia o crédito “via agência de notícias”.
No mesmo dia 6, logo após o Pensa Brasil publicá-la, a notícia falsa foi compartilhada no Facebook por várias das páginas ligadas a Beto Silva, por ele próprio e por perfis com indícios de serem falsos, como o de uma certa Debora Tavares Frayha, que só compartilha páginas do Pensa Brasil e é identificada como funcionária da Folha de Minas (que não existe, mas cujo domínio era de Beto Silva). E também por leitores reais.
Outros títulos publicados nas últimas semanas pelo Pensa Brasil: “Donald Trump manda recado: ‘-Brasileiros, a Europa não precisa de visto, vão pra lá'” (3.fev); “DEA-USA e INTERPOL ‘estariam’ investigando Aécio Neves por tráfico internacional de drogas” (8.jan); “Advogado que desacatou Sergio Moro pode ir preso ainda hoje junto com Lula” (13.dez). Nenhuma delas apresentava elementos factuais que comprovassem a manchete.
NY, POÇOS
A maioria dos sites sensacionalistas é registrada fora do país, não identifica os autores dos textos e não publica expediente, endereço ou telefone para contato. O Pensa Brasil segue a cartilha quase à risca. Na seção Quem Somos, diz estar registrado no Arizona (EUA), avisa que “qualquer pessoa que se sinta ofendida” deve entrar em contato por e-mail e reproduz trechos da Constituição sobre acesso à informação, resguardo do sigilo da fonte e liberdade de expressão.
Numa exceção ao jogo de sombras, há, num canto da página, sob a mensagem “Envie sua notícia por WhatsApp”, um celular de Poços de Caldas. Quem atende é Beto Silva.
Na primeira ligação, logo no começo de uma conversa que se estenderia por uma hora e 40 minutos, Beto afirmou que estava em Nova York e que só voltaria ao Brasil dali a 15 dias.
Seis dias depois, sem aviso, viajei a Poços de Caldas. No térreo de um edifício de escritórios no centro da cidade, está a sala que serve de base ao Pensa Brasil e ao Pensa Poços. Beto Silva estava sentado numa mesa diante de dois grandes monitores conectados à internet. Deu-se o seguinte diálogo:
“Oi, Alberto, bom dia. Sou o Fabio, da Folha de S.Paulo, tudo bem?”
“Ôpa, tudo bem?”
“Então você já voltou de Nova York. Voltou antes.”
“Voltei. Voltei… que dia é hoje mesmo?”
“Hoje é terça.”
“Terça. Eu voltei no domingo. Tinha muita coisa pra resolver aqui.”
Conversamos por mais uma hora e meia.
Beto Silva é magro e baixinho –tem cerca de 1,60 m. Seu rosto às vezes lembra o do cantor Chico Science (1966-1997), noutras o do ex-jogador Ronaldo Fenômeno. Estava, como sempre aparece em vídeos e fotos, de boné, corrente no pescoço e relojão dourado. Quando era mais jovem, relata, foi vocalista da banda de pagode Nascente do Samba -no Youtube, é possível vê-lo cantando e chacoalhando um afoxé. Diz ter brevê de piloto privado de monomotores.
Gesticula muito enquanto fala, volta e meia cruza os braços ou os põe para trás, segurando a cabeça com as mãos, e tem expressões faciais intensas.
Nas duas entrevistas, por telefone e ao vivo, expôs suas ideias sobre comunicação e defendeu seu método de trabalho.
“A questão é atrair, é o sensacionalismo. A mídia dos EUA e da Europa é muito sensacionalista. O problema é que, no Brasil, os pequenos sites se aventuraram a navegar pelo marketing digital para ganhar uma grana e começaram a sobressair em relação às grandes mídias, simplesmente por copiar o modelo de fazer notícia de uma forma sensacionalista”, afirma.
“O que fazemos são modificações [sobre o noticiário] para tornar a notícia mais fácil e interessante”, diz Beto. “Quem tem de saber o que é verdade ou mentira é quem lê a matéria.”
“Acredito que a verdade não existe. Isso é o meu ponto de vista. Existe o ponto de vista da Folha, cada um tem o seu. Quantas vezes os veículos de comunicação no Brasil tiveram que se retratar? Porque não existe uma verdade absoluta (…). A não ser que vire uma ditadura, em que a grande imprensa diga o que pode ou não.”
E assegura: “Todas as pessoas que procuraram o Pensa Brasil, quando a matéria não era verdadeira, nós retiramos ou nos retratamos. Aí você vai falar: ‘Ah, mas depois que se publica já há um grande dano’. É, a gente corre esse risco. Todo mundo corre. Somos passíveis de erros”.
“O problema vai ser de quem está me tachando de ‘fake news’. Minha preocupação é com meus milhares de leitores -eles é que me dão o feedback correto.”
“Tudo é business, tudo é dinheiro. Ninguém faz isso para contar historinha. Folha de S.Paulo, ‘Veja’, ‘Globo’, ninguém faz matéria porque gosta, é atrás do dinheiro que todo mundo tá correndo.”
Durante as entrevistas, Beto também relativizou a verdade.
Disse que é formado em Comunicação Social/Publicidade pela Faculdade Anhanguera de Campinas e que tem pós-graduação em marketing digital pela mesma escola. Procurada, a faculdade respondeu: “Não podemos confirmar que ele tenha sido aluno da instituição, pois não encontramos o seu nome no sistema da Anhanguera”.
Afirmou que o Pensa Brasil assina agências de notícias, entre as quais a Reuters e a Folhapress, do Grupo Folha, que edita a Folha. Consultada, a Reuters informou que não há entre seus assinantes ninguém com o nome dele, tampouco seu maior site ou a Artpubli Comunicação, empresa registrada em nome da mulher dele. A Folhapress afirmou que Alberto Silva chegou a assinar a agência, mas nunca pagou mensalidades, e por isso o serviço foi bloqueado.
Beto disse também que o Facebook não responde nem por 20% da audiência do Pensa Brasil. Já a empresa de medição de audiência SimilarWeb registra um peso enorme desta rede: 60% da audiência do site vem de redes sociais e, neste universo, 97% vem do Facebook.
‘RECEITA DO BOLO’
Não chega a ter 10m² a sala onde fica o QG do Pensa Brasil em Poços de Caldas. Além da mesa de Beto com os monitores, há outra com três laptops. Durante a entrevista, duas jovens que trabalham com ele, ambas na faixa dos 20 anos, voltaram do almoço. Pedi para entrevistá-las, mas Beto não permitiu.
Argumentou que as moças, assim como outras duas com quem se revezam, são prestadoras de serviço e que, ademais, não poderia “dar a receita do bolo”. Beto –que ressalta não ser produtor de conteúdo, mas “propagador”– diz contar com uma rede de colaboradores por todo o país.
Em sua própria cidade, Beto é capaz de enxergar a verdade absoluta. Na página do Pensa Poços, que define como um trabalho “100% de cidadania”, posta vídeos com cobranças e denúncias inflamadas sobre problemas municipais. Num deles, afirmava ser “mentira deslavada” a manchete de um jornal local e acusava um vereador de “esconder a verdade do povo”: era 1º de fevereiro último, mesmo dia em que Beto me disse que estava em Nova York, sendo que no vídeo ele brandia um exemplar do diário poços-caldense.
O tom estridente trouxe complicações na Justiça. Além da ação envolvendo Gilberto Gil, pelos menos outros três processos de indenização por dano moral foram abertos contra Beto Silva e parceiros –em dois deles ele já foi condenado.
“A linha de conduta dele [Beto] é complicada. Ele trabalha com o propósito de denegrir alguém para depois chantagear. Quis fazer isso comigo, tentou me extorquir, saí fora, não tenho mais relação”, di
sse Paulinho Courominas, ex-prefeito de Poços (pelo PPS, hoje no PSB).
Beto nega a extorsão. Conta que, a convite de Paulinho, trabalhou na campanha estadual de Pimenta da Veiga (PSDB) ao governo de Minas em 2014 e que, por não ter sido remunerado pelo serviço, entrou com uma ação trabalhista contra o político local, mas perdeu. O ex-prefeito diz que Beto foi voluntário.
Na cidade, Paulinho é apontado como um entre vários políticos a quem o grupo do Pensa Poços já foi fiel e com quem depois rompeu.
MACEDÔNIA
De uma perspectiva global, e com alguma licença poética, poderia se dizer que Beto Silva habita uma espécie de Macedônia tropical.
Veles, uma cidade de 43 mil habitantes (Poços tem 165 mil) no pequeno país dos Balcãs, ganhou fama no ano passado com a revelação de que se tornara um bunker de sites de notícias falsas sobre as eleições dos EUA. Tocados por adolescentes em busca do dinheiro de anúncios, os sites inventaram notícias sensacionalistas (em geral pró-Donald Trump) e geraram milhões de engajamentos (soma de curtidas, compartilhamentos e comentários) no Facebook, integrando um movimento que, para muitos, teve peso relevante na vitória do republicano.
Segundo um estudo do site BuzzFeed, as 20 notícias falsas sobre a eleição americana com maior engajamento no Facebook nos três meses que antecederam a votação geraram mais engajamentos (8,7 milhões) que as 20 notícias reais com mais reações publicadas por grandes veículos (7,3 milhões).
O BuzzFeed brasileiro chegou a resultado semelhante em relação a notícias sobre a Lava Jato publicadas em 2016: as dez falsas com mais engajamento no Facebook (3,9 milhões) superaram as dez verdadeiras (2,7 milhões) –no “top ten” das notícias falsas, há quatro da turma de Poços, três das quais do finado Brasil Verde Amarelo e uma da extinta Folha Digital.
A pedido da Folha, o Monitor do Debate Político no Meio Digital, da USP (Universidade de São Paulo), mediu o engajamento de notícias no Facebook durante três momentos de 2016: a aprovação do impeachment de Dilma no Senado, a prisão do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e a provação em primeiro turno da PEC 241, que fixou um teto para o crescimento dos gastos públicos federais. Os sites de notícias falsas são minoritários no ranking das com maior engajamento –das páginas da teia de Poços, só o Diário do Brasil aparece.
Pesquisa do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo mostra que cada vez mais brasileiros de grandes centros urbanos usam redes sociais como fonte de notícias: eram 47% em 2013, índice que saltou para 72% em 2016.
Nos EUA, estudos recentes relativizam a influência das “fake news” na eleição de Trump. Um deles, do centro de pesquisa NBER (Birô Nacional de Pesquisa Econômica), concluiu que as mídias sociais tiveram papel “importante, mas não determinante”. Foram apontadas como fonte de informação mais importante por somente 14% dos americanos (contra 57% da TV, por exemplo).
Ainda assim, o fenômeno preocupa. “É fato que essas notícias falsas geram bastante engajamento no Facebook e que, segundo pesquisas, as pessoas estão propensas a acreditar nelas. Isso é surpreendente e constrangedor, e por isso espera-se que algo seja feito”, disse à Folha Craig Silverman, editor de mídia do BuzzFeed norte-americano, estudioso do tema e autor de uma das principais reportagens sobre “os garotos da Macedônia”.
Para ele, “qualquer atitude só será eficiente se atacar as vantagens financeiras de criar notícias falsas –e deve incluir as empresas que fornecem as plataformas que estão sendo usadas para criá-las e espalhá-las”.
De fato, corporações digitais e empresas de mídia em todo mundo começaram a se mexer.
ENCRUZILHADA
Um dos maiores desafios do percurso, observa Silverman, é “assegurar que qualquer medida tomada para coibir notícias falsas não afete a liberdade de expressão”.
É uma preocupação semelhante à de Patricia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta, organização dedicada à promoção da liberdade de expressão. “Como garantir uma web livre e evitar que ela seja usada de forma criminosa é algo que temos de resolver. Mas não podemos deixar que o legislador, para proteger cidadãos, crie limites à liberdade de expressão.”
Sancionado em 2014, o Marco Civil da Internet isenta de responsabilidade a empresa que abriga o conteúdo. Mas, segundo Leticia Provedel, advogada de Gilberto Gil, redes como o Facebook “têm obrigação de retirar do ar, se notificadas, a calúnia, a injúria ou a difamação, sob pena de conivência”.
Vítima de notícias falsas, o jornalista e ativista Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil e blogueiro do UOL, considera que, dada a extensão do problema, é necessária uma convenção global para regular a circulação de notícias na internet e a eventual responsabilização por excessos.
No ano passado, Sakamoto foi alvo de um texto difamatório abrigado no site de notícias falsas Folha Política (sem relação com a Folha). Segundo sugeriram documentos produzidos por ordem judicial, as empresas JBS e 4Buzz promoveram a exposição do texto por meio de anúncio pago no Google –elas negam.
Autor do livro “O que Aprendi Sendo Xingado na Internet” (Leya), o blogueiro defende também, como solução a médio prazo, uma “alfabetização midiática”: a introdução, nos ensinos fundamental e médio, de noções sobre como detectar argumentos fraudulentos.
Soa bem atual. Um estudo do Instituto Paulo Montenegro e da ONG Ação Educativa mostrou que apenas 8% dos brasileiros em idade de trabalhar (entre 15 e 64 anos de idade) são capazes de se expressar por textos, de opinar sobre argumentos e interpretar tabelas e gráficos.
Nos EUA, pesquisa da Universidade Stanford com alunos de ensinos fundamental e médio e de faculdades revelou que a maioria é incapaz de diferenciar notícias produzidas por fontes confiáveis de anúncios e informações falsas.
O historiador norte-americano Robert Darnton, professor emérito da Universidade Harvard, diz se opor a qualquer medida que envolva censura e sugere que, “a médio ou longo prazo, isso [o consumo indiscriminado de mentiras] acaba, se autocorrige; se melhorar a política, isso melhora também”.
Darnton lembra que a disseminação de notícias falsas não é novidade. Já no século 6, conta, o historiador Procópio escreveu um texto secreto, chamado Anekdota. “Ali ele espalhou fake news, arruinando a reputação do imperador Justiniano e de outros. Era bem similar ao que aconteceu na campanha eleitoral americana.”
FIDELIDADE AO GRUPO
Em artigo recente, a pesquisadora americana Judith Donath, do Centro Berkman Klein para Internet & Sociedade da Universidade Harvard, escreveu que, na era das redes sociais, não se compartilha e curte notícias apenas para informar ou persuadir, mas “como um marcador de identidade, uma forma de proclamar sua afinidade com uma comunidade particular”.
Interagir com uma notícia falsa, argumenta, pode enfurecer os de fora dessa comunidade, mas é um “sinal convincente de fidelidade ao seu grupo”.
A psicanalista e jornalista Maria Rita Kehl lê de outro modo. “Como não sabemos o que fazer com algumas notícias que nos chocam, ética ou moralmente, passamos adiante com a sensação de estar participando, de alguma forma, da esfera pública. No fundo não é muito diferente da dona de casa que ouve uma fofoca e corre para o muro, a contar para a vizinha”, afirma.
“A diferença”, acrescenta, “é que o ‘muro’ hoje é a internet, e a fofoca que a vizinha quer passar adiante chega a milhares de pessoas. O que torna o problema mais complexo é que o mesmo dispositivo que serve para espalhar notícias falsas e arruinar a imagem de pessoas públicas, também serve para mobilizar campanhas de solidariedade, por exemplo”.