União enfrenta elétricas na Justiça

Livia Amorim
Valor Econômico
24/01/2018

Depois de mais de três anos de disputas na Justiça, o governo decidiu endurecer o enfrentamento para derrubar 51 liminares que provocam a inadimplência de R$ 6 bilhões no mercado à vista de energia. A manobra, se bem sucedida, pode afetar diretamente grandes empresas como AES Tietê, Light, Enel, CTG e Brookfield, que seriam obrigadas a desembolsar à vista valores bilionários devidos e que hoje estão protegidos por decisões judiciais.

As liminares em questão limitam os efeitos do déficit de geração hidrelétrica (medido pelo GSF, na sigla em inglês) nas hidrelétricas. Na prática, elas pagam valores menores do que deveriam nas liquidações do mercado de curto prazo de energia.

No fim do ano passado, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), derrubou uma liminar que protegia um grupo de pequenas hidrelétricas dos efeitos do GSF. Agora, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Advocacia-Geral da União (AGU) protocolaram uma petição para que essa decisão seja estendida a todas as outras 51 liminares ainda vigentes, responsáveis pelos R$ 6 bilhões.

Conforme antecipado ontem pelo Valor PRO, serviço de informações em tempo real do Valor, a petição foi encaminhada na última semana à presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministra Laurita Vaz. O documento pede que os efeitos de suspensão de liminar sejam estendidos a todas as outras ações, por terem objetos idênticos. Eles alegam que liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, “podendo o presidente do tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original”.

Caso o STJ acate o pleito, o efeito pode ser devastador. Isso porque as empresas terão de saldar suas dívidas na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e pagar os agentes credores da liquidação do mercado de curto prazo.

O Valor apurou que, apesar da medida da AGU, a postura do governo não é consensual. Parte da equipe energética do presidente Michel Temer (MDB) entende que o caminho judicial não é a melhor solução para a discussão, até porque parte do déficit de geração hídrica não seria culpa exclusiva das geradoras. Equipes do ministério de Minas e Energia (MME) vinham trabalhando em uma solução conjunta com o mercado, que seria incluída na Medida Provisória (MP) nº 814, de 2017, mas que acabou sendo editada sem tratar da repactuação do risco hidrológico.

Outro grupo do governo e da Aneel, porém, viu na queda da liminar em dezembro uma oportunidade de vitória contra as empresas ainda protegidas por decisões semelhantes.

Especialistas ouvidos pelo Valor alertam que o problema do risco hidrológico vai muito além da disputa judicial em curso e necessita de uma solução estrutural, que era alvo da MP 814. “O GSF não é um problema só do passado. É um problema do passado, de hoje e do futuro”, explica Lívia Amorim, especialista em gás e energia do escritório Souto Correa Advogados. Ela lembra que o projeto de lei (PL) sobre a privatização do controle da Eletrobras, encaminhado esta semana ao Congresso, prevê que o risco hidrológico das usinas a serem descotizadas será da empresa. Hoje, no regime de cotas, o risco hidrológico é alocado ao consumidor.

Victor Paranhos, presidente da Energia Sustentável do Brasil (ESBR), concessionária da hidrelétrica de Jirau, que não é diretamente afetada pela eventual queda das liminares, também diz ser preciso resolver o problema futuro. O executivo contou que os acionistas da ESBR (Engie, Eletrobras e Mitsui) terão de aportar na empresa R$ 296 milhões este ano e R$ 544 milhões em 2019 apenas para cobrir despesas de GSF. “Estamos com todas as 50 máquinas [turbinas de Jirau] operando. E os sócios ainda têm de colocar recursos. Algo está errado. É insustentável.”

Em entrevista recente ao Valor, o presidente do conselho de administração da CCEE, Rui Altieri, ressaltou a necessidade de uma solução para evitar que o problema do GSF continue se arrastando, especialmente porque as projeções da câmara indicam que o déficit de energia hídrica vai persistir ao menos até 2019. “É importante resolver o passado, mas a catraca vai começar a rodar de novo, e estaremos de novo nessa situação. Queremos uma solução estrutural”, disse.

O Valor apurou que o MME pretende incluir uma solução para o GSF no projeto de lei de reforma do setor elétrico, que está em elaboração e deve ser concluído nas próximas semanas. Na prática, o governo estuda tirar do GSF aquilo que não é considerado “risco hidrológico”, como os atraso na implantação de projetos de transmissão de energia e também na entrada em operação das usinas estruturantes. “Insistimos na tese de que o GSF precisa ser depurado e elementos estranhos ao risco hidrológico precisam ser expurgados”, disse uma fonte ligada à equipe energética do governo.

Mesmo que as liminares sejam derrubadas e o mercado à vista de energia retorne à normalidade, o governo não descarta que essa mudança regulatória nos “componentes” do GSF seja retroativa. Segundo uma fonte, se os fatores “que não são risco hidrológico” já tivesse sido expurgados, os montantes devidos pelos geradores poderiam ser de 30% a 35% menores. “É uma correção necessária para criar um ambiente de investimentos para o futuro”, disse.

O governo teme ainda uma nova “onda de judicialização” depois de derrubar as liminares vigentes, desta vez contra a União, e não mais contra a Aneel. Segundo a fonte, os agentes podem alegar que a União está interferindo nos seus negócios e os fazendo pagar por uma conta que não é deles.

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