A aplicação da teoria menor do CDC em cenário concursal: desconsideração da personalidade jurídica em sociedade anônima em recuperação judicial

A aplicação da teoria menor do CDC em cenário concursal: desconsideração da personalidade jurídica em sociedade anônima em recuperação judicial

No final de 2023, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), no julgamento do REsp 2.034.442/DF[1], decidiu, por unanimidade, que: (i.) o deferimento do processamento de pedido de recuperação judicial de empresa que tenha sua personalidade jurídica desconsiderada não impede o andamento da execução redirecionada aos sócios; (ii.) eventual constrição de bens dos sócios não afeta o patrimônio da empresa em recuperação; e (ii.) é possível aplicar a desconsideração da personalidade jurídica com base na teoria menor, prevista no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor (“CDC”), para responsabilizar acionistas de sociedade anônima.

A desconsideração da personalidade jurídica pode ocorrer no próprio processo de falência[2] ou no de recuperação judicial (ou extrajudicial), sendo necessária a instauração de Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica (“IDPJ”). Não se deve aplicar, contudo, a suspensão do processo prevista no art. 134, §3º, do Código de Processo Civil (“CPC”), diante de sua incompatibilidade com os processos concursais[3].

Recentemente, cada vez mais tem sido permitida, na via judicial, a arrecadação de bens particulares de sócios de empresas falidas, desde que presentes as condições fáticas e jurídicas suficientes para atingir o patrimônio pessoal. A desconsideração da personalidade jurídica é tratada em diversos diplomas legais – a exemplo do art. 28 do CDC, do art. 50 do Código Civil, do art. 4.º da Lei 9.605/1998 (a Lei do Meio Ambiente) e o art. 34 da Lei 12.529/2011 (a Lei da Defesa da Concorrência). Este é o aspecto a ser considerado no que tange especificamente aos efeitos patrimoniais, pois a aplicação da teoria da desconsideração não é hábil a determinar a falência de qualquer sócio, mesmo que possa redundar na arrecadação de todos os seus bens particulares. Aliás, o art. 82-A da LREF proíbe taxativamente a extensão da falência aos sócios de responsabilidade limitada, admitindo, porém, a desconsideração da personalidade jurídica[4].

Em sendo desconsiderada a personalidade jurídica de empresa recuperanda, acerta o STJ ao entender que isso não impede o andamento da execução redirecionada aos sócios. Isso porque o próprio Tribunal já consolidou entendimento de que, em que pese a recuperação judicial tenha como efeito a suspensão das ações e execuções contra a recuperanda, não há nenhum impedimento ao prosseguimento de ações ou execuções ajuizadas contra terceiros solidários. E a razão parece bastante óbvia: os credores conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, §1º, da LREF e Súmula 581 do STJ), além de não haver afetação direta ao patrimônio do devedor principal (a empresa em recuperação), de modo que inexistiria prejuízo ao processo, ao soerguimento desta e à segurança jurídica[5].

Os efeitos protetivos da recuperação judicial (inclusive a novação) não salvaguardam sócios, administradores e outras pessoas (inclusive sociedades grupadas que não estejam em recuperação), as quais podem ser eventualmente atingidas pela disregard doctrine. Logo, havendo comprovação do abuso da personalidade jurídica e do prejuízo ao credor, a teoria da desconsideração pode ser aplicada tanto em ambiente recuperatório quanto falimentar, redirecionando a execução contra pessoas que não necessariamente estejam em recuperação, como ocorre frequentemente (e de forma um pouco banalizada) na Justiça do Trabalho.

Todavia, importante ressaltar que, na sistemática recuperacional, se determinado bem de pessoa atingida pela desconsideração já tiver sido direcionado para o cumprimento do plano de recuperação judicial, posterior aplicação da teoria da desconsideração não pode afetá-lo porque ausente prejuízo dos credores – e, também, para não prejudicar o esforço recuperatório[6][7].

É interessante notar que, fora do âmbito do processo concursal, a depender do caso, a desconsideração da personalidade jurídica pode se dar também pela aplicação da teoria menor, a exemplo da aplicação do art. 28, § 5º, do CDC. Por meio dessa vertente da teoria, “sempre que a autonomia patrimonial da sociedade servir de obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”[8], a separação patrimonial entre sócio e sociedade torna-se ineficaz qualquer, sem que para isso seja preciso demonstrar a existência de qualquer outro requisito[9]. Nos termos do voto proferido no acórdão aqui tido como paradigma, por meio dessa regra, imputa-se aos sócios a “responsabilidade patrimonial por dívidas da sociedade sempre que a sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, e foi a partir dessa relevante distinção que esta Corte Superior passou a interpretar a referida regra com maior rigor, restringindo o âmbito de sua aplicação”.

A adoção da teoria menor pelo CDC “deixa bem clara a opção legislativa pela proteção do consumidor através da desconsideração sempre que a ‘personalidade’ atribuída à sociedade for obstáculo ao ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor”[10]. O seu fundamento reside no princípio da confiança, de modo a garantir “a efetiva reparação dos danos sofridos pelos consumidores, mesmo que, para isto, casuisticamente, se deva desconsiderar um dos maiores dogmas do Direito Comercial e Civil”[11]. Ainda que a doutrina da desconsideração tenha seu fundamento em princípios que vedam o abuso de direito, no âmbito do Direito do Consumidor há um acréscimo em razão da vulnerabilidade do consumidor, razão pela qual o CDC, a partir de um método tópico e funcional, pretende endereçar “o problema concreto do conflito de valores entre a manutenção do dogma da separação patrimonial e os interesses da outra parte contratante com a pessoa jurídica insolvente”[12].

Esse processo de restrição no âmbito de atuação da regra do art. 28, § 5º[13], do CDC tem início ainda em 2003, no julgamento do REsp nº 279.273/SP. Naquela oportunidade, o STJ firmou tese no sentido de que a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica “incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial”. Esse entendimento decorreria do fato de que “o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica”[14].

Ainda que essa seja a tese que prevalece atualmente no âmbito do STJ, julgamentos proferidos em anos posteriores foram adicionando cores próprias à discussão – por exemplo, quando se decidiu que (i) o art. 28, § 5º, do CDC “não dá margem para admitir a responsabilização pessoal de quem não integra o quadro societário da empresa, ainda que nela atue como gestor”[15]; (ii) não há “previsão expressa no código consumerista quanto à possibilidade de se atingir os bens do administrador não-sócio”, de modo que, quanto a este, é necessária comprovação dos requisitos para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica[16]; e (iii) o art. 28, § 5º, do CDC “não dá margem para admitir a responsabilização pessoal de quem, embora ostentando a condição de sócio, não desempenha atos de gestão, ressalvada a hipótese de que contribuiu, ao menos culposamente, para a prática de atos de administração”[17].

Esse processo histórico, demonstrado no acórdão aqui adotado como paradigma, permitiu alcançar uma interessante síntese acerca da possibilidade de aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 28, § 5º, do CDC: “a despeito de dispensar a prova de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial”, a teoria menor “não possibilita a responsabilização pessoal i) de quem não integra o quadro societário da empresa, ainda que nela atue como gestor e ii) de quem, embora ostentando a condição de sócio, não desempenha atos de gestão e tampouco contribui para a sua prática”[18].

Ademais, o acórdão assentou que “o tipo societário não é o que define a aplicabilidade da denominada Teoria Menor”, de modo que a desconsideração da personalidade jurídica com fundamento no art. 28, § 5º, do CDC pode ser admitida em sociedades anônimas, desde que seus efeitos se restrinjam às pessoas que detenham o efetivo controle sobre a gestão da companhia[19], não se podendo confundir desconsideração da personalidade jurídica com a hipótese de responsabilidade dos acionistas controladores prevista nos arts. 116, 117 e 158 da Lei de Sociedades Anônimas.

Discussão que vem à tona também é a incidência – ou não – do art. 6º-C, da LREF[20], para aplicação da Teoria Menor. Pelo acórdão, “a inovação de que trata o art. 6º-C da LREF, introduzida pela Lei nº 14.112/2020, não afasta a aplicação da norma contida no art. 28, § 5º, do CDC, ao menos para efeito de aplicação da Teoria Menor pelo juízo em que se processam as ações e execuções contra a recuperanda, ficando a vedação legal de atribuir responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor em recuperação judicial restrita ao âmbito do próprio juízo da recuperação”.

Quanto ao tema, ainda são escassos os julgados. Assim, o art. 6º-C, para parte da doutrina, veda a atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência de mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas eventuais garantias prestadas por tais sujeitos ou na hipótese de des­consideração da personalidade jurídica[21]. Para outros, o dispositivo afasta a aplicação da Teoria Menor[22]. O recente julgado do STJ indica um caminho a ser seguido – mas ainda não se pode afirmar que a questão está pacificada.


[1] REsp n. 2.034.442/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 15/9/2023.

[2] art. 82-A, da Lei 11.101/05 – “LREF”

[3] SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. 4ª ed. São Paulo: Almedina, 2023, p. 255.

[4] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência [livro eletrônico]: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo. 7. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. RL-1.16.

[5] Exemplificativamente: REsp n. 2.072.272/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 28/9/2023.

[6] SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. 4ª ed. São Paulo: Almedina, 2023, p. 609.

[7] STJ, 2ª Seção, CC 121.487/MT, Rel. Min. Raul Araújo, j. 27/06/2012.

[8] REsp n. 2.034.442/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 15/9/2023. Até por isso, o Min. Relator destacou que “a rigor, a considerar as origens históricas da disregard doctrine, não se poderia afirmar que tais hipóteses tratam do mesmo instituto, a despeito das expressões utilizadas pelo legislador, tendo em vista que a desconsideração propriamente dita está necessariamente associada à fraude e ao abuso de direito, com desvirtuamento da função social da pessoa jurídica, criada com personalidade distinta da de seus sócios”.

[9] RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da personalidade jurídica e processo [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. RB-4.16.

[10] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor [livro eletrônico]: o novo regime das relações contratuais. 3.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, RB-5.1.

[11] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor [libro eletrônico]. 4.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, RL-1.9.

[12] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 81.

[13]  Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

[14] REsp n. 279.273/SP, relator Ministro Ari Pargendler, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 4/12/2003, DJ de 29/3/2004, p. 230.

[15] REsp n. 1.862.557/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 15/6/2021, DJe de 21/6/2021.

[16] REsp n. 1.658.648/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 20/11/2017.

[17] REsp n. 1.900.843/DF, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 23/5/2023, DJe de 30/5/2023.

[18] REsp n. 2.034.442/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 15/9/2023.

[19] O que, aliás, já havia sido destacado no AgInt no AgInt no AREsp n. 1.811.324/DF, relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 9/8/2022, DJe de 19/8/2022.

[20] Art. 6º-C. É vedada atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipóteses reguladas por esta Lei. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020).

[21] SACRAMONE, Marcelo. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2023, p. 67; SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. 4ª ed. São Paulo: Almedina, 2023, p. 239.

[22] COELHO, Fabio Ulhoa. Comentários à lei de falências e de recuperação de empresas. 4. ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. RB-9.1.


* Texto originalmente publicado no ConJur.

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