A CLT e o futuro do trabalho

Criada em 1943 e reformada em 2017, legislação trabalhista ainda não acomoda adequadamente novas relações de trabalho

Por Manoela Pascal e Mariana Teles Scharnberg, advogadas de Souto Correa na área Trabalhista

A chegada da Uber e de outras plataformas ao Brasil, além de inovação, trouxe relevantes debates jurídicos centrados, principalmente, na natureza da relação existente entre as empresas de tecnologia e os motoristas/entregadores. É o que muitos estão chamando de “futuro do trabalho”, que vem passando por debates, não só nas principais cortes do país, mas também no Legislativo.

Fato é que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1943 num contexto social e econômico muito diferente ao atual, não acomoda adequadamente essas novas formas de trabalho. Nem mesmo a reforma trabalhista, instituída pela Lei 13.467/2017, que disciplinou, dentre outros temas, o trabalho autônomo, ou seja, sem vínculo de emprego, foi capaz de minimizar as discussões jurídicas sobre a natureza da relação jurídica mantida entre os trabalhadores e os aplicativos as quais estão vinculados.

Isso gera insegurança jurídica que preocupa os empresários e os trabalhadores, principalmente, diante (i) da inexistência de legislação específica que discipline essa nova relação de trabalho; (ii) da possibilidade de decisões divergentes sobre o tema por parte dos Tribunais Superiores; e (iii) do crescente número de brasileiros que trabalham por meio de aplicativos.

A discussão sobre o tema é um fenômeno mundial. Nos Estados Unidos, foi objeto de plebiscito nas últimas eleições na Califórnia, em que a população votou pela criação de um terceiro modelo de contratação, que não prevê todos os direitos e deveres da relação empregatícia, mas garante alguns itens básicos aos entregadores como, por exemplo, um valor mínimo a ser pago por hora trabalhada[1]. Na França, a problemática foi discutida por meio da decisão 374, da Corte de Cassação de Paris[2], que validou o julgado de um Tribunal de Apelação, reconhecendo – naquele caso específico – a possibilidade de vínculo empregatício com base na existência de subordinação.

No Brasil, a questão é discutida em todos os Tribunais Regionais do Trabalho, bem como no Tribunal Superior do Trabalho (TST), além de ser objeto de, pelo menos, 13 projetos de lei. Dentre as propostas, discute-se a criação da figura do MEI Digital; a previsão de valor mínimo proporcional por hora trabalhada; recolhimentos previdenciários proporcionais aos ganhos do profissional; auxílio-doença/acidentário; fornecimento de locais para descanso e outros.

O debate jurídico em questão ganha ainda mais relevância se considerarmos o fato de que o número de brasileiros que trabalham por aplicativos de entrega cresceu quase 1.000% entre 2016 e 2021[3]. Segundo dados informados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em maio de 2022, aproximadamente 1,5 milhão de pessoas trabalhavam com transporte de passageiros e entrega de mercadorias no Brasil.

Por um lado, é inegável que eventual enquadramento desses profissionais como empregados pode inviabilizar a manutenção das atividades de intermediação, não apenas por questões econômicas, em razão do aumento dos custos, encargos e burocracia, como também do ponto de vista social, uma vez que muitos profissionais que operam via plataformas se opõem à formalização do emprego, priorizando a possibilidade de atuarem com total autonomia e flexibilidade nos horários.

Por outro lado, a regulamentação mínima de tais atividades, além de ser fundamental para a segurança jurídica, é necessária para a garantia dos direitos e deveres das partes (trabalhadores, usuários e empresas de tecnologia intermediadoras de serviços), observadas as particularidades da relação e respeitada a autonomia de vontade dos envolvidos.

Nesse aspecto, é importante destacar que pesquisas realizadas nos últimos anos por instituições como Datafolha e Ibope apontam que trabalhadores que prestam serviços vinculados a plataformas como iFood, Rappi, Uber, 99, desejam manter sua autonomia, sem vínculo empregatício, mas também contar com benefícios e garantias mínimas, como aqueles oferecidos pela Previdência Social.

Por tudo o que se viu, a regulamentação das atividades prestadas por meio de plataformas digitais é fundamental, especialmente, em razão de a relação vivenciada pelos trabalhadores de aplicativos não contemplar os requisitos necessários ao reconhecimento do vínculo empregatício previstos no art. 3º da CLT.

Contudo, enquanto não há legislação específica disciplinando essas novas categorias de trabalhadores – o que pode ocorrer em um futuro próximo –, é importante definir as melhores formas jurídicas para esses trabalhadores se relacionarem com os aplicativos, considerando as particularidades de cada modelo de negócio, as possibilidades legais e o atual entendimento dos tribunais.

Dentre as diversas alternativas de regime jurídico, além da tradicional relação de emprego via CLT, cita-se algumas possibilidades: 1) prestador/cliente da plataforma, que é amplamente utilizada por empresas que prestam serviços de intermediação e possuem como atividade principal, tecnologias; 2) trabalhador autônomo ou MEI, com contratação sob demanda; e, 3) terceirização via parceria com plataforma de crowdshipping, que tem características, riscos e benefícios específicos. Por tal razão, a definição da forma de contratação dos trabalhadores é fundamental e deverá observar, antes de tudo, o core business da empresa.

Por óbvio, a forma como é estruturada a relação entre prestadores e plataformas interferirá diretamente na forma de gestão das atividades, fluxos de pagamento, encargos/custos envolvidos na operação, o que também deverá ser levado em conta para definição do modelo.

A contratação de empregados via CLT tem como pontos positivos a possibilidade de uma maior gestão dos serviços realizados pelos trabalhadores, uma vez que a empregadora pode estabelecer a forma como o trabalho deverá ser prestado e, para o empregado, o direito ao percebimento de benefícios como férias, 13º salário; repouso semanal remunerado; vale transporte, entre outros. Porém, além dos altos custos envolvidos na contratação de um empregado com vínculo empregatício, a adoção desse modelo de contratação é, muitas vezes, incompatível com a natureza e com a dinâmica dos serviços prestados via plataformas digitais, nos quais prevalece um maior dinamismo, liberdade de contratação e flexibilidade do tempo, modo e lugar de prestação de serviços.

Dito isso, deverão ser sopesados os pontos acima indicados, assim como os riscos, necessidades de operação e custos envolvidos para definição da melhor forma de contratação.

É importante lembrar, ainda que, além da adoção do correto enquadramento jurídico, boas práticas de techs envolvem regras claras em seus contratos, além de times próprios, geralmente multidisciplinares, envolvendo áreas como o marketing, jurídico, compliance e o RH, cuja função é justamente criar diretrizes e revisar procedimentos, além de mitigar riscos jurídicos.


[1] MARTINS, Lucas Garcia e PASCAL, Manoela. Eleições na Califórnia definem que motoristas de aplicativos não possuem vínculo de emprego. E no Brasil, como está a situação? Jornal Estadão, 06/11/2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/eleicoes-na-california-definem-que-motoristas-de-aplicativos-nao-possuem-vinculo-de-emprego-e-no-brasil-como-esta-a-situacao/.

[2] PARIS, Cour de Cassation. Apelação n. S 19-13.316 / Ruling n 374 FP-P+B+R+I. Presidente: Mr. Cathala, 04/03/2020. Disponível em: https://www.courdecassation.fr/IMG/20200304_arret_uber_english.pdf;

[3] Levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

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