A Lei nº. 14353/2022 e os impactos para os contenciosos envolvendo o Brasil na OMC

Na última sexta-feira, a Medida Provisória nº 1.098, de 26 de janeiro de 2022 (“MP”) foi convertida na Lei nº. 14353/2022 (“Lei”). A nova Lei permite ao Brasil retaliar membros da Organização Mundial do Comércio (“OMC”) em disputas nas quais os pleitos do Brasil tenham sido confirmados, no todo ou em parte, por grupo especial (“Painel”) e a parte contrária apele ao Órgão de Apelação (“OA”), que atualmente se encontra sem funcionamento por falta de quórum. A Lei foi aprovada sem alterações propostas por senadores e deputados.

A exposição de motivos da MP já traz um bom apanhado da razão de sua propositura e a situação que se pretende remediar. Vale a leitura[1].

O presente artigo objetiva trazer considerações a respeito de questões intrínsecas a essa Lei no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias (“OSC”) da OMC, sobretudo no que respeita o mecanismo do art. 25 do Entendimento de Solução de Controvérsias (“ESC”), que tem sido utilizado por alguns países, inclusive o Brasil, para contornar o que vem acontecendo no OA da OMC.

Primeiramente, tecemos algumas considerações sobre o OA e a polêmica acerca de seu funcionamento para melhor compreensão das razões que levaram à edição da MP e posterior conversão em Lei.

O OA da OMC é composto por 7 membros, sendo que cada contencioso deve ser decidido por 3 membros. Conforme os antigos membros do OA foram tendo seus mandatos encerrados (4 anos, renováveis por igual período), a OMC não tem conseguido repor os membros. Pela regra, é preciso que nenhum dos Estados-Membros se oponha aos novos nomes para que sejam aprovados e iniciem seus mandatos. Desde outubro de 2018, porém, os Estados Unidos têm mantido reiterado bloqueio à indicação de novos membros, até que se chegou à situação, em dezembro de 2019, de não haver membros suficientes para compor o colegiado dos contenciosos, já que mandatos de 2 dos 3 últimos membros do OA chegaram ao seu fim.

A alegação norte-americana para o reiterado bloqueio, que segue em vigor, é de que o Órgão de Apelação como instituição, constantemente ultrapassava seus limites jurisdicionais de atuação, criando entendimentos nunca negociados pelos membros da OMC no âmbito dos acordos multilaterais de comércio. A despeito de o OA, de fato, tender a interpretar os dispositivos dos Acordos da OMC – e quais tribunais jurisdicionais não os fazem? –, a medida tomada é efetivamente de cunho político.

O recurso ao OA, não podemos esquecer, é parte do processo de resolução de controvérsias do OSC da OMC, que se inicia por consultas entre Estados-Membros envolvidos, sendo seguido por Painel quando as consultas não chegam a bom termo, e justamente da decisão do Painel cabe recurso ao Órgão de Apelação. Por isso, o recurso ao OA é um direito previsto no ESC e como tal seu uso é legítimo. No entanto, por não estar devidamente constituído desde 2018, conforme acima mencionado, os recursos protocolados pelos Estados-Membros junto ao OA não conseguem ser apreciados. É a chamada “apelação no vazio”, como alguns especialistas têm alcunhado essa situação.

Além de estratégia política, recorrer de decisão que se sabe não poder ser julgada, é também colocar em risco a continuidade do processo de resolução de controvérsias que, desde a criação da OMC em 1995, sempre foi objeto de estimado reconhecimento entre os Estados-Membros do organismo multilateral e parte vital de seu funcionamento.

Para mitigar os efeitos do posicionamento político dos EUA, que remonta inclusive aos tempos do então Presidente Obama, em abril de 2020, um grupo de 47 Estados-Membros[2], inclusive o Brasil, notificou a OMC sobre a necessidade de criação de um Multi-Party Interim Appeal Arbitration Arrangement (Arranjo Provisório de Arbitragem-Apelação, em português, ou simplesmente “MPIA”), que deve decidir as apelações dos Estados-Membros que a ele adiram de acordo com as diretrizes aplicadas pelo OA.

Assim, o MPIA é um acordo político para tentar destravar a situação criada pelo bloqueio, também político, imposto pelos EUA. Assim quando um caso envolvendo 2 partes do MPIA surge, estas apresentam notificação conjunta ao OSC para se submeterem ao art. 25 do DSU.

Nesse contexto, vale mencionar que o art.25 ESC sempre foi apontado por especialistas como alternativa em relação aos procedimentos de Painel e do OA, mas nunca foi largamente utilizado. Ao contrário, de outros 2 (dois) procedimentos arbitrais previstos no ESC (art. 21.3 e art. 22.6 ESC[3]), e bastante utilizados, pode-se dizer que, antes do estabelecimento do MPIA, houve apenas uma ocasião em que se recorreu à arbitragem do art. 25 ESC. Também, é interessante notar que a participação de outros membros na arbitragem instituída com base no art. 25 ESC, só é possível quando há anuência das partes originais envolvidas no contencioso. Segundo a lição de David Palmeter, ao contrário do que ocorre em um Painel estabelecido pelo OSC, os terceiros interessados não possuem direitos decorrentes desta arbitragem. Assim, caso sejam afetados pela medida em análise, devem se submeter a um procedimento de solução de controvérsias próprio[4].

Ainda que haja um movimento para uso do MPIA, note-se que por ora dos mais de 160 membros da OMC, apenas 16[5] se comprometeram a resolver suas apelações por meio do MPIA. O Brasil é um deles.

De acordo com o site sobre Acordos Plurilaterais da OMC[6], estão em curso 9 casos baseados no MPIA, sendo que 5 deles já com notificação para que ocorram com fulcro no art. 25 ESC. Desses 5, 3 foram iniciados pela China. Há ainda 3 contenciosos já concluídos com base no MPIA, sendo 2 com uso do art. 25 ESC e outro com notificação de uso do art. 25 ESC, mas com pleito retirado pelo reclamante (Brasil, DS 522, contra o Canadá sobre medidas relacionadas a comércio de aeronaves comerciais) no decorrer das negociações.

O contencioso mais recente iniciado pelo Brasil na OMC é o DS607, contra a União Europeia e trata de medidas de importação de certas preparações de carne de frango (Medidas relativas à importação de determinados preparados de carne de aves de criação procedentes do Brasil). Este caso foi iniciado em 8 de novembro de 2021, mas ainda está em consultas, não tendo sido emitida qualquer notificação para uso do art. 25 ESC até o momento, já que Painel não foi ainda nem formado. Note-se que a arbitragem do art. 25 ESC pode ser iniciada antes de Painel e/ou Apelação ao OA, mas não antes de iniciado o processo de Consultas, parte intrínseca e preliminar do processo dos contenciosos da OMC.

Ainda sobre o MPIA e seu procedimento pautado no art. 25 ESC, interessante pontuar que em 31 de julho de 2020, uma lista inicial de 10 árbitros permanentes foi divulgada como aqueles responsáveis por analisar os casos baseados no referido diploma legal. Dentre estes árbitros, está o brasileiro Jose Alfredo Graça Lima.

Apesar do caminho alternativo encontrado por alguns Estados-Membros, fato é, contudo, que o entrave continua quando os contenciosos envolvem Estados-Membros que não aderiram ao MPIA.

É nesse ambiente, portanto, que está inserida a motivação brasileira para a edição da Lei nº. 14353/2022, no último dia 26 de maio.

No final de 2021, o OSC publicou decisão favorável ao Brasil, em sede de Painel, em caso envolvendo subsídios ao açúcar por parte da Índia (DS 579[7]), que, por sua vez, ingressou com apelação, travando as perspectivas de exportação brasileiras. A Índia não é um dos países que aderiu ao MPIA, logo, não há como entre eles darem continuidade ao contencioso. Uma tradicional situação de “apelação no vazio”, portanto, já que a Índia sabe que não há um colegiado no OA para julgar a apelação e, mais grave, não é parte do MPIA, o que permitiria Brasil e Índia darem continuidade ao contencioso naquela esfera.

Outra disputa que o Brasil ganhou em sede de Painel, mas não consegue levar adiante, é a que trata de barreiras impostas pela Indonésia à carne de frango brasileira (DS 484[8]). O caso foi iniciado pelo Brasil em 2014 e, após duas decisões favoráveis e descumprimentos da Indonésia atestados pela OMC, o contencioso se encontra estacionado no OA. Indonésia tampouco aderiu ao MPIA.

Os casos descritos acima e a baixa adesão dos membros da OMC ao MPIA formam o arcabouço da referida Lei: a possibilidade de o governo brasileiro retaliar unilateralmente, enquanto perdurar a inoperância do OA, parceiros comerciais que apelem no “vazio”, desde que observadas condições objetivas, a saber: (a) exista apelação pelo membro da OMC, na condição de parte demandada; b) não possa a apelação ser apreciada pelo OA ou não possa o relatório deste último ser aprovado pelo OSC da OMC; e (c) tenha decorrido o prazo de 60 dias após notificação do Brasil ao membro da OMC demandado sobre a intenção de suspensão de concessões ou de outras obrigações.

Por retaliação, deve-se entender basicamente a possibilidade de o Brasil suspender concessões e obrigações frente ao Estado-Membro demandado no que se refere a regras dos acordos da OMC com as quais se comprometeu por ocasião da Rodada Uruguai, em 1994.

A pressão política de uma legalização interna de retaliação unilateral nessas circunstâncias não é medida tomada exclusiva do Brasil. A União Europeia começou a discutir tal possibilidade logo que o bloqueio à indicação de novos membros ao OA foi anunciado pelos Estados Unidos, culminando na publicação do Regulamento UE nº 2021/167, de fevereiro de 2021.[9]

É possível que a Lei traga um reequilíbrio na equação dos contenciosos da OMC, mas a retaliação pode beneficiar pouco a quem eventualmente poderia se beneficiar por decisão positiva do OA, e prejudicar muito a quem não está diretamente envolvido no contencioso, já que a retaliação pode ser feita em qualquer outra área do comércio internacional coberto pelos Acordos da OMC, inclusive em matéria de propriedade intelectual, como a própria Lei 14353/2022 prevê em seu art. 4º. Embora a lei nada mencione a respeito, a retaliação, de qualquer forma, não deverá ser conduzida sem que antes sejam realizadas consultas públicas específicas pela Camex voltadas a tratar do contencioso concreto a ser retaliado.

Acreditamos, por isso, que a Lei se trata mais de margem de segurança adotada pelo governo brasileiro e de pressão política do que propriamente uma sinalização de que o Brasil fará as retaliações em caso de apelação no vazio.

Autora: Gabriella de Salvio, sócia de Souto Correa Advogados.

Referências

[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Exm/Exm-Mpv-1098-22.pdf [2] https://wtoplurilaterals.info/plural_initiative/the-mpia/#:~:text=Known%20as%20the%20Multiparty%20Interim,and%20staffed%20WTO%20Appellate%20Body [3] Para maiores detalhamentos, consultar SALVIO, Gabriella; A arbitragem na OMC: uma visão comparativa com a arbitragem como contraponto à justiça estatal. Revista de arbitragem e mediação: vol. 4, n. 13 (abr./jun. 2007) [4] Ibid. [5] Australia; Benin; Brasil; Canadá; China; Chile; Colômbia; Costa Rica; Equador; União Europeia; Guatemala; Hong Kong, China; Islândia; Macau, China; México; Montenegro; Nova Zelândia; Nicarágua; Noruega; Paquistão; Peru; Cingapura; Suíça; Ucrânia e Uruguai. [6] https://wtoplurilaterals.info/plural_initiative/the-mpia/ Acordos plurilaterais são aqueles que não foram subscritos necessariamente por todos os Estados Membros da OMC. [7] https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds579_e.htm [8] https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds484_e.htm [9] Regulamento (UE) 2021/167 do Parlamento Europeu e do Conselho de 10 de fevereiro de 2021 que altera o Regulamento (UE) nº 654/2014 relativo ao exercício dos direitos da União tendo em vista a aplicação e o cumprimento das regras do comércio internacional. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32021R0167&from=EN
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