A responsabilidade civil de provedores de aplicação na balança

Quando plataformas de diferentes pesos desafiam a regulação, diferentes medidas são também necessárias

Por Camila Maruyama e Daniele Verza Marcon, advogadas de Souto Correa na área de Resolução de Conflitos

A internet é uma ferramenta indispensável para a sociedade, seja para fins de trabalho, estudo, comunicação e lazer. Diante disso, a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios aponta que o Brasil atingiu a marca de 90% de domicílios com acesso à internet e estima-se que mais de 171 milhões de brasileiros utilizam alguma rede social. A internet é fundamental para diversas plataformas digitais, que cresceram ainda mais nos últimos três anos, devido à pandemia da Covid-19 e ao aumento das modalidades de trabalho remoto ou híbrido em diversas cidades. Porém, o aumento do uso da internet no Brasil seguiu a tendência mundial de maior propagação de notícias falsas, principalmente vinculadas a movimentos políticos. No país, o maior exemplo desse fenômeno – e das possíveis consequências catastróficas da desinformação em massa – é a invasão aos prédios dos Três Poderes em Brasília, no último dia 8 de janeiro.

Esse cenário aqueceu debates que já vinham circulando em diversos setores sociais e governamentais acerca da responsabilidade civil dos provedores de aplicação. Nas últimas semanas, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) defenderam publicamente a necessidade de maior regulação e responsabilização das redes sociais. No Congresso Nacional, o debate da temática, que se dá principalmente por meio do PL 2630/2020 ou PL das Fake News, encontra-se reaquecido. Além disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva elencou a regulação das redes sociais como uma das preocupações do governo em carta recentemente endereçada a Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, em resposta ao seu convite para participação na conferência mundial “Para uma internet confiável” (Internet for Trust), realizada em 22 de fevereiro.

Atualmente, as fronteiras da liberdade de expressão de usuários e da atuação das plataformas digitais são reguladas pela Lei 12.965/2014 – o Marco Civil da Internet. O ponto nevrálgico da discussão referida diz respeito ao artigo 19 do marco, segundo o qual um provedor de aplicação de internet só pode ser responsabilizado pelo conteúdo gerado por terceiros “se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”. Ou seja, apenas os autores ou criadores de um conteúdo irregular respondem pelos danos dele decorrentes; plataformas são responsabilizadas somente se descumprirem uma ordem judicial de remoção daquele conteúdo.

Essa abordagem não é exclusiva do Brasil. Nos Estados Unidos, a Section 230 do Communications and Decency Act, de 1996, exime plataformas de responsabilidade civil. Na União Europeia, plataformas só respondem se forem devidamente notificadas a respeito de um conteúdo irregular e não tomarem nenhuma providência para indisponibilizarem aquele conteúdo, conforme estabelece a Diretiva do Comércio Eletrônico desde junho de 2000.

Também por isso os debates sobre maior responsabilização das plataformas não ocorrem apenas no Brasil. Nos Estados Unidos, há mais de 25 projetos de lei tramitando no Congresso com o objetivo de alterar a Section 230 e ampliar a responsabilidade das plataformas. Já a União Europeia esteve debatendo nos últimos cinco anos o texto do Digital Services Act (DSA), que deve entrar em vigor em 2024. A “solução” proposta no DSA não foi a ampliação da responsabilidade civil das plataformas, mas, sim, estabelecer mecanismos para (i) conferir maior transparência à moderação de conteúdo, isto é, à aplicação dos termos de uso da plataforma e da legislação nas decisões sobre a manutenção, restrição ou remoção de um conteúdo de terceiros e (ii) facilitar a solução de conflitos decorrentes de tal atividade.

Observar esse movimento internacional é fundamental para enriquecer o debate brasileiro, especialmente diante das preocupações externadas por integrantes dos Três Poderes. Quaisquer iniciativas devem buscar um diálogo amplo com a sociedade civil, a fim de se alcançar uma solução robusta e que atenda, de forma efetiva, os problemas da desinformação.

No Brasil, além da tramitação do PL das Fake News, uma discussão no STF merece ser acompanhada de perto. Trata-se do julgamento do Recurso Extraordinário 1.037.396, referente ao Tema 987, no qual o tribunal deverá decidir se a exigência de descumprimento de ordem judicial determinando a exclusão de conteúdo como requisito para desencadear a responsabilidade civil de provedores de aplicações prevista no artigo 19 do Marco Civil da Internet é constitucional.

Isso porque, apesar de ter relação com a atuação de redes sociais e a circulação de notícias falsas, o artigo 19 é regra geral, que se aplica a todo provedor de aplicação, o que inclui apps de transporte, hospedagem, marketplaces e lojas de aplicativos, por exemplo. Essas aplicações envolvem funções, conteúdos e atividades diversas daquelas encontradas em redes sociais. São aplicações de diferentes “pesos” que estão sujeitas a mesma “medida”, premissa que precisa ser considerada antes de qualquer alteração na regra geral.

Essa diferença é reconhecida no PL das Fake News, que propõe medidas diferentes que sejam adequadas ao “peso” das redes sociais e aplicativos de mensagem instantânea, sem alterar o artigo 19 do Marco Civil da Internet. O texto substitutivo recentemente apresentado pelo deputado federal Orlando Silva tem pontos que convergem com a nova legislação europeia, em especial pela ênfase atribuída à transparência, e não à responsabilidade civil.

Apesar de não haver previsão de julgamento do Tema 987 pelo STF, nova audiência pública foi convocada para o próximo dia 28 de março, para ouvir o depoimento de especialistas sobre “o regime de responsabilidade de provedores de aplicativos ou de ferramentas de internet por conteúdo gerado pelos usuários” e “a possibilidade de remoção de conteúdos que possam ofender direitos de personalidade, incitar o ódio ou difundir notícias fraudulentas a partir de notificação extrajudicial”, no âmbito desse recurso e do Recurso Extraordinário 1.057.258/MG (Tema 533).

O desfecho de tais discussões, seja ele qual for, inevitavelmente, afetará as bases do regime de responsabilidade civil aplicado às plataformas digitais. Na pendência de respostas, há uma certeza: a tônica dada ao tema, por tantas autoridades, certamente estimulará novas ações judiciais e dará margem para que soluções, para além do que determina o Marco Civil da Internet, sejam dadas pelo Poder Judiciário.

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