Aquisição de terras rurais por estrangeiros

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Ricardo Quass Duarte

19/12/2019 – Valor Econômico

 

Se a pessoa jurídica tem sede no Brasil e é organizada sob as leis brasileiras, pagando impostos e gerando empregos, não há motivo para equipará-la a estrangeiro.

 

Nos últimos nove anos, o Brasil tem vivido um cenário de incerteza jurídica, relacionada à possibilidade, ou não, de empresas brasileiras com capital estrangeiro adquirirem terras rurais.

 

Foi em 2010 que a AGU emitiu o famigerado parecer LA 01/2010, que, contrariando dois pareceres anteriores da própria AGU (um de 1994 e outro de 1998), passou a entender que um dispositivo da Lei 5.709/71 teria sido recepcionado pela Constituição de 1988, e, com isso, empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro estariam sujeitas a uma série de limitações para aquisição de terras rurais. Em resumo: uma norma de 1971, que fora considerada inaplicável pela AGU em 1994 e 1998, foi ressuscitada em 2010. Resultado para o país: bilhões de investimentos deixaram de ser realizados, ante as incertezas jurídicas causadas pelo vai-e-vem interpretativo.

 

O parecer de 2010, marcado por um claro viés ideológico, não se sustenta juridicamente. Isso porque a Constituição de 1988 trouxe, em seu artigo 171, o conceito de “empresa brasileira”, que é “a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País”. Assim, pouco importa se da sociedade participam ou não pessoas estrangeiras. Ademais, o art. 190 estabelece que a lei deve regular e limitar a aquisição de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira, nada dizendo sobre pessoa jurídica brasileira com capital estrangeiro. Dessa forma, desde 1988, não se podem impor restrições à aquisição de imóvel rural por empresas brasileiras, tenham ou não participação de estrangeiros no capital social.

 

Essa tese foi acolhida pela Corte Especial do TJSP em 2012 (MS nº 0058947-33.2012.8.26.0000) e é defendida pela Sociedade Rural Brasileira na ADPF nº 342, ajuizada no STF em 2015. Não há, contudo, nenhuma previsão para o julgamento desta ação.

 

Para remediar essa situação de insegurança, o Senador Irajá (PSD-TO) apresentou o Projeto de Lei nº 2.963/2019, que tem como objetivo “a adequação e a modernização da legislação brasileira, para possibilitar a aquisição e o uso de imóvel rural por estrangeiro no Brasil, mantendo a soberania nacional conforme estabelecido pela Carta Magna e legislações”. O Projeto almeja, ainda, “possibilitar o ingresso de agroindústrias transnacionais no Brasil voltadas para o desenvolvimento da cadeia produtiva agrícola de longo prazo, que agreguem valor, gerem mais empregos e aumentem a qualidade e a quantidade da produção agrícola brasileira”. O seu relatório foi aprovado na quarta-feira (11/12) em reunião conjunta das comissões de Assuntos Econômicos e de Agricultura e Reforma Agrária. A matéria agora será apreciada na CCJ.

 

Esse Projeto merece aplausos. O seu grande mérito é o de revogar integralmente a Lei 5.709/71, e estabelecer que a nova Lei não se aplicará às pessoas jurídicas brasileiras, “ainda que constituídas ou controladas direta ou indiretamente por pessoas privadas, físicas ou jurídicas estrangeiras”. Se a pessoa jurídica tem sede no Brasil e é organizada sob as leis brasileiras, pagando impostos e gerando empregos no Brasil, não há motivo para equipará-la a estrangeiro, impondo-lhe severas limitações a seu direito de propriedade. Limitações, é bom frisar, continuarão existindo, mas apenas para estrangeiros.

 

O Projeto prevê algumas exceções para pessoas jurídicas brasileiras: organizações não-governamentais, fundações particulares e fundos soberanos, se constituídos por estrangeiros, deverão obter aprovação do conselho de defesa nacional para adquirir imóveis rurais. Também deve obter tal aprovação a pessoa jurídica brasileira, controlada direta ou indiretamente por estrangeiro, quando o imóvel rural se situar no Bioma Amazônia e sujeitar-se a reserva legal igual ou superior a 80%.

 

Outro aspecto positivo está no fato de o Projeto deixar claro que as restrições não se estendem a direitos reais ou pessoais de garantia. Embora o entendimento correto seja o de que, mesmo atualmente, as restrições da Lei 5.709/71 não se aplicam a garantias (pois a lei limita apenas a aquisição e o arrendamento), há quem defenda posição contrária. Caso a garantia acarrete na aquisição de propriedade por credor atingido pela lei (uma sociedade estrangeira, por exemplo), a propriedade será resolúvel e deverá ser alienada em 2 anos, renováveis por mais 2 anos, a contar da adjudicação do bem, sob pena de perda da eficácia da aquisição e reversão do bem ao proprietário original.

 

O Projeto prevê, ainda, que ficam convalidadas as aquisições e arrendamentos, por pessoas físicas ou jurídicas (ainda que controladas por estrangeiros), durante a vigência da Lei 5.709/71.

 

Por fim, o Projeto reforça que os estrangeiros que adquirirem terras rurais devem observar a função social da propriedade, sob pena de desapropriação ou anulação dos contratos.

 

O Senador Irajá estima que a aprovação do Projeto poderá trazer R$ 50 bilhões de investimentos ao setor agroindustrial. Além desse evidente benefício, o País certamente ganhará em termos de segurança jurídica, pois a aprovação do Projeto colocará fim a uma celeuma que está prestes a completar uma década.[:]

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