Dano moral coletivo: o interesse violado e o STJ

ConJur

Não é raro observar, em ações coletivas e ações civis públicas que tratam de relações de consumo, pedido para condenação do fornecedor ao pagamento de indenização a título de dano moral coletivo. Esse instituto, após longo percurso jurisprudencial, hoje, parece ter sua viabilidade jurídica reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) [1]. Porém, toda e qualquer alegação de violação às regras consumeristas dá ensejo à postulação de danos morais coletivos? A resposta, evidentemente, é negativa. Nesse âmbito, ultrapassado o problema da viabilidade jurídica do dano moral coletivo, pelo menos outras duas questões ganham relevo: 1) quais são os requisitos para a imposição de uma condenação ao pagamento de dano moral coletivo? 2) Como evitar que esse instituto seja banalizado e considerado como “remédio para todos os males”?

O STJ vem dando sinais para uma tentativa de consolidação de entendimentos sobre a matéria. São relevantes as contribuições da Corte no que se refere ao interesse jurídico que se procura tutelar por meio do instituo do dano moral coletivo, bem como da conduta que se busca evitar. E um novo passo nessa caminhada foi dado com o julgamento do Recurso Especial nº 1.838.184/RS [2] pela Quarta Turma do STJ. Nesse caso, discutia-se a situação de colocação no mercado, de forma culposa, de produtos impróprios ao consumo — produtos que, originalmente, estavam destinados para descarte.

O ministro Luis Felipe Salomão, relator, destacou que a natureza dessa condenação seria “eminentemente sancionatória”. Independentemente da correção ou não dessa posição, considerar o dano moral coletivo como sanção requer que se delimite, ao menos, qual é o comportamento a ser sancionado e qual é o interesse a ser protegido. E o acórdão proferido contribui para esclarecer, em especial, a questão do interesse a ser protegido.

O ministro relator propôs relembrar a diferença existente entre os interesses coletivos, que são subdivididos em três categorias: interesses difusos, interesses coletivos stricto sensu e interesses individuais homogêneos, nos termos do artigo 81, parágrafo único, incisos I, II e III do Código de Defesa do Consumidor. Nas palavras utilizadas no seu voto, os interesses difusos “são direitos transindividuais, cujos titulares são indeterminados e indetermináveis, pertencendo, simultânea e indistintamente, a todos os integrantes de uma coletividade”. Por isso mesmo, caracterizam-se pela “natureza indivisível do objeto ou do bem jurídico protegido”, cujos titulares (indeterminados) estariam ligados pelas circunstâncias do fato lesivo (e não a existência de uma relação jurídica base). Por sua vez, os interesses coletivos stricto sensu são “titularizados por pessoas indeterminadas, mas determináveis quando se tratar de grupo, categoria ou classe, pertencendo a todos em conjunto e simultaneamente, identificado, assim, o caráter indivisível do objeto ou bem jurídico tutelado”. Desse modo, caracterizam-se pela existência de “uma relação jurídica base anterior à lesão como elo entre si ou com a parte contrária”.

Apenas em relação a essas duas categorias de interesses coletivos — difusos e coletivos stricto sensu [3] — o dano moral coletivo seria viável. É o que afirmou o ministro relator: “o dano moral coletivo é essencialmente transindividual, de natureza coletiva típica”. Seguindo-se esse entendimento, quando for “perfeitamente possível a individualização dos efeitos [da conduta] e também dos titulares supostamente agredidos” (hipótese de direitos individuais homogêneos), não terá espaço a condenação ao dano moral coletivo.

No caso sob julgamento, entendeu-se que era possível individualizar os efeitos da conduta e os titulares do direito supostamente agredido: os consumidores do produto contaminado. Inexistindo violação de direitos difusos ou transindividuais, não haveria interesse jurídico a ser tutelado por meio de uma condenação ao pagamento de dano moral coletivo. No caso, também já havia sido proferida condenação genérica por violação a direitos individuais homogêneos, a ser posteriormente liquidada em favor dos específicos titulares do direito violado.

Contudo, em razão desse entendimento, não se avançou especificamente na análise do comportamento a ser sancionado. A ementa do julgado registra que o objetivo do dano moral coletivo “é a preservação de valores essenciais da sociedade” e que sua configuração “ocorre apenas quando a conduta antijurídica afetar interesses fundamentais, ultrapassando os limites do individualismo, mediante conduta grave, altamente reprovável”. Assim, foi mantido um cenário ainda de insegurança, incerteza e dificuldade de sistematização do instituto, uma vez que o STJ constantemente se utiliza de expressões abstratas a esse respeito.

Basta que se verifique o teor de julgados anteriores, que estabelecem que a conduta a ser sancionada deve 1) provocar “repulsa e indignação na consciência coletiva” (REsp 1.819.993/MG); 2) configurar “grave ofensa à moralidade pública” (REsp 1.303.014/RS); 3) produzir “verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva” (REsp 1.438.815/RN); 4) ser “intolerável” (REsp 1.823.072/RJ); 5) ter “alto grau de reprovabilidade” e deve transbordar “os lindes do individualismo” (REsp 1.473.846/SP). Todas essas expressões, invariavelmente, remetem ao caso concreto e requerem adequada fundamentação para serem efetivamente dotadas de algum sentido jurídico. Essa fundamentação deve ser observada não apenas pelos julgadores, mas também pelos próprios autores de ações coletivas e ações civis pública, tendo em vista o alto grau de exposição da esfera jurídica dos fornecedores que se dá com a simples propositura de uma ação com pedido de danos morais coletivos.

Assim, o STJ caminha para consolidar o descabimento de danos morais coletivos diante de alegações de violações de interesses individuais homogêneos. Esse entendimento, aliás, foi recentemente reiterado pela 3ª Turma do STJ, que concluiu que “esta espécie de dano não se origina de violação de interesses ou direitos individuais homogêneos — que são apenas acidentalmente coletivos —, encontrando-se, em virtude de sua própria natureza jurídica, intimamente relacionado aos direitos difusos e coletivos” [4]. Enquanto se consolidam os critérios referentes à conduta que se busca evitar por meio do instituto, pode-se concluir, ao menos, que ele não é vocacionado para que seja manejado indiscriminadamente em qualquer ação na qual se alega violação de direitos ou interesses de consumidores.

Referências

[1] Em 2006 foi julgado o REsp 598.281/MG, em que se sagrou vencedora a posição do então ministro Teori Zavascki, para quem "a vítima do dano moral é, necessariamente, uma pessoa", o que não seria compatível com "a ideia de transindividualidade". Posteriormente, o STJ reconheceu a viabilidade jurídica do instituto e, em 2009, a ministra Eliana Calmon referiu que "as relações jurídicas caminham para uma massificação e a lesão aos interesses de massa não podem ficar sem reparação, sob pena de criar-se litigiosidade contida que levará ao fracasso do Direito como forma de prevenir e reparar os conflitos sociais" (REsp nº 1.057.274/RS). [2] REsp 1838184/RS, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 05/10/2021, DJe 26/11/2021. [3] Como, aliás, já havia sido decidido no REsp 1293606/MG, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 02/09/2014, DJe 26/09/2014 [4] REsp 1968281/DF, relator ministro Nancy Andrighi, 3ª T., j. 15/03/2022, DJe 21/03/2022.
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