Insegurança jurídica e seus impactos na operação das empresas brasileiras

Por Bruna Bailov Scaranello e Paula de Barros Silva, advogadas de Souto Correa nas áreas de Resolução de Conflitos e Consumidor e Product Liability

O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) é complexo e tem como objetivo implementar políticas de proteção ao consumidor, assim como operacionalizar a fiscalização e autuação de infrações às regras consumeristas. Dentro dessa lógica, o SNDC autoriza que sejam criados órgãos descentralizados federais, estaduais e municipais de defesa do consumidor, de modo que cada território possui instituições próprias capazes de fiscalizar o cumprimento da legislação consumerista e definir seus próprios entendimentos sobre referidas normas.

A título de exemplo, questões atinentes à legislação consumerista podem ser apuradas pelos Procons estaduais e municipais, pelos Ministérios Públicos estaduais e federais, pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), e podem até mesmo ser revistas pelo poder judiciário.

Em razão da criação de diversos órgãos autônomos, os fornecedores estão sujeitos a prolação de interpretações divergentes sobre normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em relação a uma mesma conduta, que muitas vezes acarreta diferentes sanções administrativas às empresas. Esta ausência de uniformização dos entendimentos quanto às normas consumeristas dificulta uma padronização de condutas pelos fornecedores que atuam em âmbito nacional, interestadual e até mesmo intermunicipais, gerando notória insegurança jurídica.

Para exemplificar o impacto dessas decisões conflitantes no desenvolvimento das atividades dos fornecedores, analisaremos decisões prolatadas por diferentes órgãos do SNDC e pela agência reguladora que versam sobre o setor aéreo.

Em maio de 2022, um Procon vinculado ao Ministério Público [1] proferiu uma decisão [2] nos autos de um processo administrativo em desfavor de uma das maiores companhias aéreas do país, concluindo que a prática de marcação antecipada de assentos seria abusiva, o que violaria o artigo 39, incisos V e X do CDC, e também o artigo 12, inciso VI do Decreto nº 2.181/97. Devido a essa conclusão, foi aplicada multa milionária à empresa, que somente foi reduzida por ultrapassar (e muito) o teto de multas do referido Órgão.

Paralelamente, em junho de 2022, foi proferida uma sentença [3] de procedência pela 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São José do Rio Preto (SP) que, ao contrário do entendimento firmado pelo Ministério Público, reconheceu que não haveria nenhuma irregularidade na prática de marcação antecipada de assentos, anulando integralmente uma multa administrativa imposta por um outro Procon [4]. A decisão concluiu ainda que o serviço de marcação antecipada de assentos não viola o artigo 39, inciso X, do CDC, pois a aquisição de bilhetes confere ao passageiro o direito de viajar em um assento, independentemente da classe escolhida, mas não em todo e qualquer assento. A sentença também referiu que a possibilidade de escolha de assento é conferida pela Resolução nº 400/2016, da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), uma vez que a cobrança pela escolha de assento configuraria um serviço extra a ser contratado.

Como fica evidente, as decisões referidas acima são conflitantes entre si, embora tenham sido proferidas por órgãos competentes para atuar em defesa dos direitos dos consumidores nos respectivos locais de atuação. Enquanto uma verdadeiramente condena uma prática de uma empresa, a outra considera a prática totalmente legal e regular.

É importante observar que, atualmente, as condições gerais do transporte aéreo são regulamentadas pela Resolução nº 400/2016 da Anac, que, dentre outras regras, prevê a possibilidade de as companhias aéreas oferecerem serviços adicionais e adaptáveis à necessidade real de cada consumidor, tendo em vista sua capacidade econômica, suas prioridades de conforto ou mesmo seus objetivos de viagem [5].

A Anac, inclusive, já se manifestou diversas vezes [6] sobre o tema, sempre reconhecendo a liberdade das empresas aéreas em fornecer os serviços opcionais (inclusive o de marcação antecipada de assentos), rotas e preços no mercado aéreo.

Além disso, em 2019, a Senacon produziu a Nota Técnica n.º 3/2019/CGE/MM/DPDC/Senacon/MJ, na qual concluiu que “o fato de as empresas passarem a cobrar a marcação antecipada dos assentos pode ser considerado uma estratégia comercial e as empresas têm liberdade para cobrar pelos serviços que prestam aos usuários“.

Assim, tem-se que duas autoridades relevantes para o sistema de proteção ao consumidor e para o setor aéreo já proferiram entendimentos sobre o tema abordado nas decisões – os quais não necessariamente foram observados pelas decisões proferidas pelos Procons. Isto importa pois, ao analisarmos de forma conjunta as duas decisões conflitantes, bem como os entendimentos da Senacon e da Anac sobre o tema, fica demonstrada a sensibilidade da integração do sistema nacional de defesa ao consumidor. Em pouco mais de um mês de diferença, foram proferidas decisões totalmente contrárias sobre o mesmo tema, inclusive quanto ao entendimento das autoridades competentes, sem que houvesse qualquer integração entre os órgãos ou atuação unificada para apreciação da matéria.

Ainda que existam instrumentos processuais para discutir a eficácia das decisões proferidas pelos órgãos do SNDC, a insegurança jurídica que essa ausência de unificação de entendimentos ocasiona é visível e se destaca no mundo jurídico, pois a mesma conduta acaba sendo considerada legal e ilegal ao mesmo tempo, às vezes com fundamento na mesma legislação, mas com argumentos que se contrapõem.

Entretanto, para muito além dos efeitos jurídicos, essa insegurança gera efeitos nocivos às políticas e procedimentos adotados pelas empresas, que se veem à frente de um verdadeiro dilema: manter ou não manter a conduta tida como legal por um órgão, e ilegal por outro?

Por óbvio, isso gera uma grande dificuldade às empresas brasileiras. Isso porque, muitas vezes, na medida em que o fornecedor atua em conformidade com o entendimento firmado por um determinado órgão, automaticamente, desrespeitará o entendimento conflitante do outro órgão. Ou seja, a depender do entendimento de cada órgão, será necessário que o fornecedor faça adaptações em toda a sua operação para cada região abarcada pela decisão administrativa ou judicial, muito embora possua atuação em âmbito nacional.

Embora os órgãos pertencentes ao SNDC efetuem tentativas para aprimorar essa ausência de unificação de entendimentos, como a superveniência da edição do artigo 5º do Decreto nº 2.181/97, que assegura à Senacon a competência para dirimir conflitos de competência entre os órgãos, bem como a implementação de sistemas com bancos de dados sobre decisões, esse processo de unificação está longe de ser finalizado.

O objetivo não é criticar a existência de um sistema nacional de defesa do consumidor e a autonomia de seus órgãos – o que, é claro, é de suma importância e traz benefícios à sociedade. Entretanto, há um vasto espaço para melhorias para que esse sistema brasileiro funcione de forma ampla, unificada e integrada, para que não mais surjam decisões conflitantes como os exemplos mencionados acima.

Enquanto isso, a questão que fica é: como ficam as empresas perante tamanha insegurança jurídica e quais os incentivos para inovar em um negócio no Brasil quando, a qualquer momento podem surgir decisões conflitantes que tornem um procedimento ou o serviço prestado muito mais oneroso do que efetivamente seria, devido às adaptações que se tornam necessárias? Essa é a pergunta que ainda não tem resposta e impulsiona reflexões futuras é essencial para evitar esse contexto de insegurança jurídica.


[1] https://www.mpmg.mp.br/portal/menu/comunicacao/noticias/procon-mg-multa-latam-em-r-10-8-milhoes-por-cobranca-indevida-na-marcacao-de-assentos.shtml#:~:text=O%20Procon%2DMG%20multou%20a,Termo%20de%20Ajustamento%20de%20Conduta.

[2] Aguardando julgamento de recurso administrativo pelo Procon.

[3] Aguardando julgamento de recurso de apelação pelo TJ-SP.

[4] Embargos à Execução Fiscal nº 1000102-91.2021.8.26.0576, 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São José do Rio Preto

[5] Art. 4º A oferta de serviços de transporte aéreo de passageiros, em quaisquer canais de comercialização, conjugado ou não com serviços de turismo, deverá apresentar o valor total da passagem aérea a ser pago pelo consumidor. (…) § 2º. O valor final a ser pago será acrescido de eventuais serviços opcionais contratados ativamente (regra opt-in) pelo consumidor no processo de comercialização da passagem aérea.

[6] Ofício nº 364/2018/SAS-ANAC; Ofício nº 15/2019/SAS-ANAC e Ofício nº 332/2018/SAS-ANAC

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