O ISSQN e o horror vacui

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Henry Lummertz

26/08/2020 – JOTA

 

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o conceito de “serviço” para fins da incidência do ISSQN foi fixado no julgamento do Recurso Extraordinário nº 116.121, em que se discutia a constitucionalidade do item 79 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-Lei nº 406/68, que previa a cobrança do ISSQN sobre a “locação de bens móveis”.

 

Naquele julgamento, foi firmado o entendimento de que o conceito de “serviços” empregado pelo art. 156, inc. III, da Constituição Federal para definir a hipótese de incidência do ISSQN deve ter como núcleo uma “obrigação de fazer”, não podendo corresponder a uma “obrigação de dar”. A pacificação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria conduziu à edição da Súmula Vinculante nº 31[1].

 

A definição de serviço para fins da incidência do ISSQN com base no conceito de “obrigação de fazer”, no entanto, vem sofrendo sucessivos desgastes[2].

 

Esse processo tem como marcos os julgamentos do Recurso Extraordinário nº 592.905, em que se discutia a incidência do ISSQN sobre as operações de leasing, e do Recurso Extraordinário nº 651.703, em que foi debatida a incidência do ISSQN sobre as operações dos planos de saúde, e teve uma nova manifestação no julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.136, em que foi examinado o tema 300 da Repercussão Geral, relativo à incidência do ISSQN sobre os contratos de franquia.

 

Nos referidos julgamentos, prevaleceu o entendimento de que o legislador constitucional, ao definir as hipóteses de incidência dos impostos discriminados na Constituição Federal, haveria pretendido abranger todas as hipóteses de incidência existentes, de modo que não existiriam “vazios”: toda e qualquer operação ou atividade deveria sofrer a incidência de pelo menos um dos impostos expressamente previstos na Constituição Federal [3]. É como se o horror vacui atribuído por Aristóteles à natureza também estivesse presente na distribuição das competências tributárias para a instituição dos impostos discriminados na Constituição Federal.

 

Em tal contexto normativo, o ISSQN poderia alcançar aquelas atividades ou operações arroladas na Lista de Serviço anexa à Lei Complementar nº 116/2003 que não se enquadrem na hipótese de incidência dos demais impostos discriminados na Constituição Federal, mesmo que não constituam serviços, por não envolverem uma obrigação de fazer.

 

Em outras palavras, mesmo que a atividade ou operação não constitua serviço, ela pode ser submetida à incidência do ISSQN, se não estiver sujeita à incidência de nenhum dos outros impostos expressamente previstos na Constituição Federal. O “vazio” relativo aos demais impostos discriminados na Constituição Federal seria ocupado pelo ISSQN, cuja hipótese de incidência se expandiria, passando a abranger essa atividade ou operação, mesmo que ela não envolvesse uma obrigação de fazer.

 

De acordo com essa compreensão, portanto, a hipótese de incidência do ISSQN se desprende do conceito de serviço, espalhando-se para alcançar qualquer atividade ou operação que não esteja compreendida na hipótese de incidência dos demais impostos discriminados na Constituição Federal.

 

Tal posicionamento, no entanto, não nos parece correto. Isso porque o inc. I do art. 154 da Constituição Federal atribui à União uma competência tributária residual da União, conferindo-lhe o poder para instituir impostos que “não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos [impostos] discriminados nesta Constituição”.

 

Assim, a própria Constituição Federal demonstra que as hipóteses de incidência dos impostos nela expressamente previstos não esgotam as atividades e operações passíveis de tributação e que existem fatos geradores e bases de cálculo que não são alcançados pelos impostos nela já discriminados.

 

Por conseguinte, não se pode afirmar que a Constituição Federal evidenciaria uma “manifesta intenção de impedir que determinadas atividades simplesmente ficassem imunes a qualquer tipo de tributação” e nem que o elenco dos impostos discriminados na Constituição Federal pretenderia “captar todas as atividades empresariais[4] ou alcançar “todas as complexas relações econômicas atualmente existentes no mercado[5].

 

Pelo contrário, a Constituição Federal pressupõe que determinadas atividades ou operações não estejam sujeitas à incidência de qualquer dos impostos nela discriminados. De outra forma, não haveria espaço a ser ocupado pela competência tributária residual da União. Destaque-se que não se trata de “‘vazios’ no sistema tributário” ou “fatos livres de tributação[6], mas sim do espaço reservado pela Constituição Federal para o exercício da competência tributária residual da União.

 

E, vale recordar, a competência tributária é irrenunciável e indelegável[7], de modo que a circunstância de a União eventualmente não exercer sua competência tributária residual não autoriza que os municípios a exerçam.

 

Conclui-se, portanto, que não há como, no ordenamento jurídico brasileiro, em que se reserva para a União a competência tributária residual, pretender desvincular o ISSQN do conceito de “obrigação de fazer”, permitindo que o imposto incida sobre outras atividades ou operações que não constituam serviço, sob o pretexto de evitar que tais atividades ou operações escapem à incidência dos impostos discriminados na Constituição Federal. Fazê-lo significaria atribuir à hipótese de incidência do ISSQN uma extensão que a projetaria sobre o espaço reservado pelo texto constitucional à competência tributária residual da União, em flagrante inconstitucionalidade.

 

Do ponto de vista de política fiscal, é previsível que os municípios queiram tributar outras manifestações de riqueza além dos serviços, especialmente diante da erosão dessa hipótese de incidência e da transferência de valor para outros tipos de atividades e operações. Mas a política fiscal não pode ignorar os limites impostos pela Constituição Federal.

 

Nada impede que se altere esses limites, mas, no atual desenho das competências tributárias constitucionais, aquelas atividades que não constituem serviço e nem estão abrangidas na competência tributária dos municípios integram a competência tributária residual da União, e não a competência tributária dos municípios para instituir o ISSQN.

 


[1] “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.

[2] Ou “atualizações”, como preferiu o min. Dias Toffoli, no voto que proferiu no recente julgamento do ADIN nº 3.142 – DF, em que se discutia a inconstitucionalidade do item 3.04 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003.

[3] Esse entendimento foi construído a partir de Parecer da lavra do ex-ministro Ilmar Galvão, citado pelo min. Eros Grau, no voto que proferiu no julgamento do Recurso Extraordinário nº 592.905, e reproduzido pelos mins. Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, nos votos que proferiram no julgamento do Recurso Extraordinário nº 651.703. O mesmo posicionamento pode ser identificado nos votos proferidos pelo Ricardo Lewandowski, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 651.703, e pelo ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.136.

[4] Voto do min. Luiz Fux, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 651.703.

[5] Voto do min. Luís Roberto Barroso, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 651.703.

[6] Voto do min. Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.136.

[7] CTN, arts. 7º e 8º.

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