Recall: valorização e incentivo ao fornecedor
Há muito se consolidou no Brasil a importância do recall – a remoção ou correção de produtos ou serviços que podem colocar em risco a saúde e a segurança dos consumidores. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), em vigor desde 1990, estabelece o dever de o fornecedor proceder com o recall quando, após introduzir produtos ou serviços no mercado, tiver conhecimento de sua periculosidade. Esse dever foi também regulamentado pela Portaria nº 780/2011, substituída pela Portaria nº 618/2019 do Ministério da Justiça.
Analisando os dados divulgados em março pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) no boletim “Consumidor em números: 2021”, constata-se aumento considerável de campanhas nos últimos anos: no ano de 2010, 78 campanhas foram formalizadas; já em 2021, foram 126 novas campanhas, sendo que em 2018 houve o recorde de 166 campanhas. Apesar de serem números ainda baixos, evidencia-se o crescimento desse instrumento. Além disso, a quantidade de produtos englobados nas campanhas sofreu importante aumento nos últimos dois anos.
O recall nada mais é do que o processo legalmente previsto para a correção de falhas pontuais e não previstas
Esse crescimento pode decorrer de diversos fatores. Por exemplo, pode estar atrelado ao maior incentivo pelo poder público com a edição da Portaria nº 618/2019, que, dentre outras alterações, trouxe meios alternativos de publicação do aviso de risco aos consumidores, viabilizando campanhas com veiculações na internet (menos onerosas do que as feitas em meios tradicionais, como televisão, rádio e jornais). Na mesma linha, a Nota Técnica nº 4/2020 da Senacon permite à autoridade analisar as particularidades de cada caso como norteadores na definição dos meios de divulgação mais adequados.
Também merecem destaque os regramentos específicos para determinados setores do mercado, como o de veículos (Portaria Conjunta nº 3/2019, do Ministério da Justiça e do Ministério da Infraestrutura) e o de alimentos nocivos (RDC nº 655/2022, da Anvisa, que recentemente substituiu a RDC nº 24/2015). Apesar de alguns desafios que apresentam, tais normativas carregam relevância diante do fato de que medicamentos, alimentos e automóveis lideram a lista de produtos com a maior quantidade de campanhas e de produtos potencialmente afetados em 2021.
O incremento de campanhas pode decorrer também de uma maior compreensão do mercado de consumo como um todo acerca das finalidades desse procedimento, que busca garantir a informação aos consumidores quanto a potenciais riscos, bem como viabilizar a adoção de medidas eficazes que previnam a ocorrência de danos. Os fornecedores são incentivados a adotar essas campanhas, inclusive como medida que os aproxima do mercado de consumo e demonstra a preocupação com a saúde e bem-estar dos consumidores.
Ademais, o atraso no anúncio de campanhas de recall ou a sua não realização quando for o caso pode causar mais prejuízos aos fornecedores do que a sua efetiva realização, uma vez que a divulgação do risco dá a chance de se evitar a ocorrência de danos e possíveis consequentes indenizações, bem como a aplicação de penalidades administrativas, como multas, que podem alcançar valores bastante expressivos, a depender do porte dos fornecedores.
Mas não se diga que a realização de uma campanha de recall corresponda a um reconhecimento pelo fornecedor de que seus produtos são genericamente defeituosos ou não confiáveis. Ao contrário, o recall nada mais é do que o processo legalmente previsto e esperado para a correção de falhas pontuais e não previstas no processo conceptivo, produtivo ou informativo de produtos ou serviços, que atinjam a saúde e a segurança dos consumidores, e que podem envolver os mais renomados, qualificados e certificados fornecedores.
Essa foi uma das questões analisadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 1.838.184/RS, julgado no fim de 2021, em que se decidiu que a realização de campanha voluntária de recall não pode ser considerada como “agravante de conduta de colocação do produto defeituoso no mercado, assim como não induz à configuração de dano moral coletivo ou individual”.
O raciocínio é correto. O ministro relator do referido recurso destacou que “o recall é um ‘remédio’ previsto e incentivado pela Política Nacional de Defesa do Consumidor, dada a previsibilidade de ocorrência de erros no processo produtivo”. Se a realização de recall é um dever legal do fornecedor, este não pode ser sancionado, com a imposição de uma condenação ao pagamento de dano moral coletivo, por cumprir a lei.
A empresa que, tendo conhecimento de eventuais riscos envolvidos, informa o mercado de consumo para proteger os consumidores não pode ser sancionada por essa mesma conduta. Sancionar e/ou condenar uma empresa pelo simples fato de iniciar campanha de recall representaria verdadeiro desincentivo ao próprio cumprimento da lei e, portanto, consequência oposta ao fim a que se almeja.
Por outro lado, e apesar de a realização de recall não eximir o fornecedor de ser responsabilizado por eventuais danos efetivamente sofridos por consumidores e diretamente causados pelo produto ou serviço, a conduta também deve ser considerada em casos que envolvam pedido de dano moral coletivo. Esse tipo de condenação requer que a conduta cause “intranquilidade social”, verdadeira expressão abstrata que terá seu conteúdo definido a partir do caso concreto.
Logo, o recall merece ser considerado caso a caso, seja para afastar a condenação, seja para graduá-la e reduzi-la. O que não cabe fazer é desincentivar uma prática que, ao fim, é benéfica ao mercado de consumo.