Saiba como o comércio eletrônico e os smart contracts vêm criando uma especie de jurisdição digital sem precedentes

A nova economia digital vem caminhando à margem de soluções eficazes para a resolução de conflitos. Na ausência de resposta eficaz sob o modelo legal atual, o comércio eletrônico e as redes sociais — irreversivelmente acelerados pela pandemia — vêm criando uma espécie de jurisdição digital sem precedentes que, mesmo limitada, vem oferecendo soluções rápidas e sustentáveis no ambiente econômico digital.

Os chamados “smart contracts” foram apresentados pelos operadores de blockchain como uma promessa de jurisdição digital, sugerindo nas entrelinhas que as leis originalmente aplicáveis fossem substituídas pelas regras codificadas pelo blockchain. Há quem defenda que os Estados deixarão de ser necessários como legisladores nesses ambientes, que nasceram autorregulamentáveis e seguirão dessa forma pela sua própria natureza.

Esse ambiente jurídico (ou “jurisdição digital”) que vem sendo forjado, entretanto, está longe de tornar redundante o arcabouço legal vigente. Um bom exercício será explorar os limites e restrições do sistema legal atual para entender como o direito internacional privado pode se relacionar com os fatos e eventos ocorridos em meio digital que tenham, por exemplo, repercussões transnacionais.

São imensos os desafios no campo fiscal, alfandegário, administrativo e na resolução de conflitos. Pensem em uma empresa dedicada ao e-commerce constituída na França, que mantém servidores em três diferentes países, e recebe uma reclamação de um consumidor russo pelo atraso de uma entrega feita por um transportador terceirizado baseado na Espanha. Qual a jurisdição aplicável? Se essa resposta já era difícil, imagine agora essa mesma transação no mundo virtual, em produto virtual tal como um NFT, adquirido e entregue dentro do metaverso?

Os ambientes digitais não têm qualquer intenção de respeitar limites legais típicos da multijurisdição, cujas premissas estão arraigadas em fronteiras delimitadas pela soberania dos estados. E tais ambientes estão muito mais acelerados no caminho de criar sua própria jurisdição do que em promover uma reconciliação com os atuais mecanismos oferecidos pelo direito internacional no contexto da nova tecnologia digital.

O esforço do regulador até aqui, por sua vez, foi centrado em pequenos desenvolvimentos pontuais, tais como implementação das LGPDs, sem ter de lidar com uma proposta concreta de autorregulamentação. Nosso cenário internacional não dá sinal de que os países se alinharão em torno de uma regulamentação eficaz e a falta de afinidade entre os “smart contracts” e a legislação existente só fazem reafirmar a independência dos primeiros.

A tendência atual, ninguém negará, é a criação de um ambiente digital legal com características próprias e princípios aplicáveis de forma global no mundo digital. E, vale lembrar, um sistema descentralizado que não implica uma figura regulatória central dispensa governos. A credibilidade do sistema automatizado, a princípio, se encerraria nela própria, sendo suas condições, interação e consequências legais ditadas por códigos próprios.

Se o consenso entre líderes de governo quanto à compreensão da economia digital está tão distante quanto à nossa compreensão dos desafios existentes nesse campo, os smarts contracts têm todas as condições de formar a base legal das relações no ambiente econômico digital global em poucos anos. Considerando que ambiente legal digital é imprescindível para o completo funcionamento da economia digital, podemos estar inaugurando um novo tipo legislador, sem um poder judicante centralizado, menos vulnerável a fraudes e totalmente automatizado em sua implementação.

É essencial para o desenvolvimento dos princípios conciliatórios entre internet e jurisdições existentes que se inicie um debate pelo processo de transnacionalização do direito, identificando, antes de mais nada, a relação entre os novos códigos propostos pelo comércio digital e as leis existentes em busca de bases legais que poderão ser aplicadas de forma ampla.

Mais do que ditar a supremacia entre os novos códigos que vêm sendo propostos pela economia digital e as leis vigentes, restará aos Estados aprender a conciliá-los de modo a alcançar um ambiente de certeza jurídica que trará ao mundo real respostas eficazes nos campos jurídico e regulatório. Como diz o velho ditado, “quem controla a lei, controla o Estado”.

Referências

Artigo publicado pela Exame.
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