Sucessão de Bens no Exterior: aspectos processuais

IBDFAM – “Edição nº 5o”

É comum, especialmente quando uma pessoa morre e deixa bens no Brasil e no exterior, surgirem as seguintes dúvidas relacionadas ao Direito das Sucessões:

  1. Deve ser feito apenas um inventário, no Brasil, abrangendo todos os bens? Ou devem ser feitos tantos inventários quantos forem os países onde se localizem os bens?
  2. Se houver necessidade de vários inventários em diferentes países, qual lei deve ser aplicada pelos respectivos juízes?
  3. O espólio deve ser tratado como um todo, fazendo as devidas compensações para que os herdeiros recebam a mesma quota? Ou cada juiz de cada país determinará a divisão dos bens, de acordo com as suas respectivas leis?

Inicialmente, é importante fazer uma distinção sobre os conceitos de jurisdição e lei aplicável, que nem sempre é bem percebida nesse tipo de análise. A jurisdição diz respeito ao local onde o processo irá tramitar. Vale dizer: o processo de inventário deve ser instaurado perante a Justiça de qual país? Outra questão, bem diferente, é a lei de direito material a ser aplicada pelo juiz do país onde o processo será ajuizado.

No sistema jurídico brasileiro, as regras sobre jurisdição estão previstas entre os artigos 21 e 25 do Código de Processo Civil (CPC). Já a lei aplicável é determinada por regras de Direito Internacional Privado, que, no Brasil, estão previstas no Decreto-Lei nº 4.657/1943, mais conhecido como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

Assim, embora essa afirmação possa soar estranha, é perfeitamente possível que o juiz brasileiro tenha jurisdição para julgar uma determinada causa, mas tenha que aplicar o direito estrangeiro. Se um contrato é assinado na Itália, mas o réu tem domicílio no Brasil, o juiz brasileiro tem jurisdição para julgar a causa, com base no artigo 21, I, do CPC, mas deverá aplicar o direito italiano, nos termos do artigo 9º da LINDB.

Assim, quando uma pessoa morre deixando bens em vários países, deve-se primeiro indagar qual país tem jurisdição para conduzir o inventário, e, após, qual lei será aplicável para regular a sucessão.

O artigo 23, II, do Código de Processo Civil é expresso ao reconhecer que compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra, proceder ao inventário e partilha de bens situados no Brasil, independentemente do domicílio ou da nacionalidade do autor da herança. Assim, havendo bens no Brasil, o juiz brasileiro tem jurisdição exclusiva para determinar a partilha dos bens (ressalvada, obviamente, a possibilidade de o inventário ocorrer de forma extrajudicial). Trata-se de uma regra de soberania, de modo que, se um juiz estrangeiro deliberar sobre a partilha de bens localizados no Brasil, essa decisão será ineficaz perante a Justiça brasileira, pois não será homologada pelo Superior Tribunal de Justiça.

A contrario sensu, tanto a doutrina como a jurisprudência[1] entendem que os juízes brasileiros não podem deliberar sobre bens situados no exterior. Vigora, no Brasil, o princípio da pluralidade dos juízos sucessórios, o que significa dizer que, se o falecido deixou bens em vários países, deverão ser abertos tantos inventários quantos forem os países onde se localizem os bens.

A segunda questão diz respeito à legislação de direito material aplicável ao processo de inventário. Ou seja: se um estrangeiro, domiciliado no exterior, deixa bens no Brasil, deve o juiz brasileiro aplicar a lei brasileira ou a lei estrangeira, para regular a sucessão?

O artigo 10 da LINDB estabelece que a sucessão deve ser regulada pela lei do país em que domiciliado o falecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens. Assim, se o de cujus, qualquer que fosse a sua nacionalidade, era domiciliado na França, mas deixou bens no Brasil, o inventário deve ser processado na Justiça brasileira, mas, como regra, o juiz deverá aplicar a lei francesa. É a lei francesa que determinará quem são os herdeiros, a ordem de vocação hereditária etc.

Essa regra, contudo, não é absoluta.

O §1º do artigo 10 da LINDB dispõe que, se o falecido era estrangeiro e domiciliado no exterior, e deixou cônjuge ou filhos brasileiros, a lei do seu último domicílio não será aplicada se a lei brasileira for mais benéfica para o cônjuge e os filhos. Na mesma linha, o artigo 5º, XXXI, da Constituição Federal (CF) estabelece que “a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do ‘de cujus’”. Assim, na hipótese citada acima, se a lei francesa estabelecer que o cônjuge não participa da sucessão e, pelo regime de bens do casal, a lei brasileira dispuser que o cônjuge é considerado herdeiro, a lei brasileira será aplicada.

Ademais, em alguns casos, a jurisprudência tem flexibilizado a referida regra, ainda que contrariamente ao texto da legislação, principalmente quando há imóveis localizados no país. Em 2015, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que “o art. 10 da LINDB, ao estabelecer a lei do domicílio do autor da herança para regê-la, não assume caráter absoluto. A conformação do direito internacional privado exige a ponderação de outros elementos de conectividade que deverão, a depender da situação, prevalecer sobre a lei de domicílio do de cujus. Na espécie, destacam-se a situação da coisa e a própria vontade da autora da herança ao outorgar testamento, elegendo, quanto ao bem sito no exterior, reflexamente a lei de regência. O art. 10, caput, da LINDB deve ser analisado e interpretado sistematicamente, em conjunto, portanto, com as demais normas internas que regulam o tema, em especial o art. 8º, caput, e § 1º do art. 12, ambos da LINDB e o art. 89 do CPC”.[2]

Aplicando o referido precedente, em 2019 o Tribunal de Justiça de São Paulo afastou a incidência da lei espanhola para um processo de inventário de dois imóveis localizados no Brasil, mesmo considerando que a falecida era domiciliada na Espanha. Entendeu aquele Tribunal que “deve reger a sucessão que recaia sobre bens imóveis, a lei do local em que estejam situados, pouco importando o domicílio ou a nacionalidade do autor da herança. Daí porque, versando a hipótese dos autos sobre imóveis situados no Brasil, é evidente que devem ser aplicadas as disposições da lei brasileira em matéria de sucessão”.[3]

Esse entendimento merece críticas, pois o artigo 10 da LINDB é muito claro no sentido de que é a lei do último domicílio do de cujus que deve regular a sucessão. Se a intenção do legislador fosse a de ressalvar a hipótese de imóveis localizados no Brasil, ele certamente o teria feito, de forma expressa. A única flexibilização possível é a hipótese prevista no artigo 5º, XXXI, da CF e no §1º do artigo 10 da LINDB, qual seja: a lei estrangeira só não será aplicável se a lei brasileira for mais favorável ao cônjuge ou filhos brasileiros.

Não há que se falar em interpretação sistemática do artigo 10 com o artigo 8º da LINDB, pois o seu âmbito de incidência é totalmente distinto. O primeiro trata, especificamente, de sucessão causa mortis; o segundo, por sua vez, ao dispor que “para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados”, trata de atos inter vivos. Não há como misturar os assuntos, pois, falecendo o dono do bem, aplica-se a regra de sucessão.

Também não há como invocar o artigo 12 da LINDB e o artigo 23 do CPC, pois essas normas tratam de regras de jurisdição, e não da lei material que o juiz deve aplicar. Nesse sentido, ao julgar o Recurso Especial nº 1.362.400, acima citado, o STJ deveria ter analisado o caso apenas sob a óptica da jurisdição, e não da lei aplicável. Afinal, ao constatar que o caso dizia respeito a sucessão de imóvel situado na Alemanha, o STJ deveria ter cessado a sua análise ali, ao concluir que “não resta sequer instaurada a jurisdição brasileira para deliberar sobre bens imóveis situados no estrangeiro, tampouco para proceder a inventário ou à partilha de bens imóveis sitos no exterior. O solo, em que se fixam os bens imóveis, afigura-se como expressão da própria soberania de um Estado e, como tal, não pode ser, sem seu consentimento ou em contrariedade ao seu ordenamento jurídico, objeto de ingerência de outro Estado”.

Afinal, se a jurisdição para inventariar um bem imóvel localizado na Alemanha é exclusiva do juiz alemão, não cabe ao STJ analisar se o juiz alemão deveria, ou não, aplicar a lei brasileira. Em relação aos bens localizados no exterior, os juízes dos respectivos países deverão verificar as disposições de suas próprias leis de Direito Internacional Privado (equivalentes à LINDB) para determinar qual legislação deve ser aplicada. O critério pode, ou não, coincidir com o critério brasileiro do último domicílio do falecido.

A terceira questão diz respeito à possibilidade de o juiz brasileiro levar em conta o que cada herdeiro recebeu no exterior para que, ao fazer a partilha no Brasil, determine o que cada herdeiro deve receber. Exemplificando: se uma pessoa domiciliada no Brasil morrer deixando bens no Brasil e na Argentina e, no inventário argentino, o primeiro filho receber bens equivalentes a R$ 100.000,00 e o segundo filho receber apenas R$ 50.000,00, deve o juiz brasileiro levar esse fato em consideração ao partilhar os bens brasileiros, para que ambos recebam, ao total, quinhões da mesma quantia?

Essa questão é bastante controvertida.

Há quem entenda que o juiz de cada país deverá determinar a divisão dos bens de acordo com a lei aplicável, sem fazer compensações em virtude do que vier a ser deliberado em outros países. Do contrário, o Judiciário brasileiro estaria, ainda que indiretamente, interferindo na soberania de outros países, o que, como visto, é vedado pela interpretação a contrario sensu do artigo 23, II, do CPC.

Em antigo julgado, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, “partilhados os bens deixados em herança no estrangeiro, segundo a lei sucessória da situação, descabe à Justiça Brasileira computá-los na quota hereditária a ser partilhada, no País, em detrimento do princípio da pluralidade dos juízos sucessórios, consagrada pelo art. 89, II do CPC”.[4]

Há, contudo, quem defenda que o juiz brasileiro pode fazer as devidas compensações para equalizar as quotas hereditárias. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu recentemente que, “embora não se possam declarar, no inventário aberto no Brasil, bens situados no exterior, pode-se imputar o referido pagamento de quota hereditária feita em outro país, no inventário dos bens deixados no território nacional, para consideração da legítima devida aos herdeiros necessários”.[5]

Por sua vez, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que “se a autora da herança possui bens no Brasil e no Exterior, na partilha realizada segundo o direito brasileiro, será força considerar o valor do patrimônio alienígena para cômputo da legítima das herdeiras necessárias, sem que isso implique violação do art. 89, II, do Código de Processo Civil”.[6]

Esse segundo entendimento, contudo, não se revela correto, pois, em última análise, implica violação ao princípio da pluralidade de juízos sucessórios, segundo o qual cada país deve tratar da sucessão dos bens nele localizados, aplicando as suas próprias leis (ou mesmo legislação estrangeira, a depender da respectiva regra de direito internacional privado aplicável), sem olhar para fora.

Ademais, como bem aponta Ana Luiza Maia Nevares, esse entendimento traz inúmeros problemas práticos. Em primeiro lugar, havendo bens em múltiplas jurisdições, torna-se bastante complexo aferir o valor do monte-mor. Como poderá o juiz brasileiro verificar o valor real de todos os bens que integram o acervo patrimonial do falecido? Em segundo lugar, se os bens no exterior foram atribuídos a um só dos herdeiros (testamento, por exemplo), esses bens devem ser computados como parte da sua legítima no Brasil, ou devem ser tirados da parte disponível do testador? Em terceiro lugar, os impostos pagos na sucessão no exterior devem ser contabilizados e compensados? Em caso positivo, em qual proporção? Em quarto lugar, o que acontece se não houver no Brasil bens suficientes para fazer a compensação? Como bem apontou a referida autora, “a compensação, portanto, pode parecer simples e viável em primeira vista, mas pode, por outro lado, ensejar diversos questionamentos de difícil solução, ensejando insegurança para as partes envolvidas”.[7]

Vale registrar que essa situação não se confunde com a partilha de bens decorrente de divórcio. Nessa situação, a jurisprudência vinha admitindo que os bens localizados no exterior fossem computados na partilha, pois o artigo 89, II, do antigo CPC falava apenas em “inventário e partilha de bens”, o que levou o STJ a entender que essa regra se aplicaria “apenas em casos de partilha por sucessão causa mortis”.[8]

Em 2003, o STJ decidiu que, para efeito de partilha de bens situados no Brasil e no Líbano, decorrente de separação judicial, seria possível, caso a Justiça Libanesa não reconhecesse o direito de meação do cônjuge quanto aos bens existentes no Líbano, compensá-los nos autos em que se processa a separação e partilha de bens no Brasil.[9]

Em 2014, aquela Corte Superior voltou a se manifestar sobre o tema, decidindo que “o reconhecimento de direitos e obrigações relativos ao casamento, com apoio em normas de direito material a ordenar a divisão equalitária entre os cônjuges do patrimônio adquirido na constância da união não exige que os bens móveis e imóveis existentes fora do Brasil sejam alcançados, pela Justiça Brasileira, a um dos contendores, apenas a consideração dos seus valores para fins da propalada equalização”.[10]

E, mais recentemente, o STJ considerou que, “ainda que o princípio da soberania impeça qualquer ingerência do Poder Judiciário Brasileiro na efetivação de direitos relativos a bens localizados no exterior, nada impede que, em processo de dissolução de casamento em curso no País, se disponha sobre direitos patrimoniais decorrentes do regime de bens da sociedade conjugal aqui estabelecida, ainda que a decisão tenha reflexos sobre bens situados no exterior para efeitos da referida partilha”.[11]

Essa discussão tende a se intensificar cada vez mais, pois o artigo 23, III, do CPC passou a prever regra semelhante à do inventário, ao estabelecer que compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra, “em divórcio, separação judicial ou dissolução de união estável, proceder à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o titular seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional”.

Em conclusão, verifica-se que a resolução das questões patrimoniais das pessoas com bens em múltiplos países suscita diversas indagações jurídicas complexas. De modo a evitar litígios que consomem tempo, dinheiro e energia dos herdeiros, é altamente recomendável a realização de um planejamento estruturado para organizar a eventual divisão patrimonial, valendo-se de mecanismos como holdings, testamentos e trusts.

Referências

[1] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.362.400, Ministro Marco Aurélio Bellizze, j. 28.04.2015; STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 397.769/SP, Ministra Nancy Andrighi, j. 25.11.2002; STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 510.084/SP, Ministra Nancy Andrighi, j. 04.08.2005; STJ, 4ª Turma Recurso Especial nº 37.356/SP, Ministro Barros Monteiro, j. 22.09.1997. [2] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.362.400, Ministro Marco Aurélio Bellizze, j. 28.04.2015. [3] TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2146717-83.2019.8.26.0000, Des. Rodolfo Pellizari, j. 02.09.2019. [4] STF, 1ª Turma, Recurso Extraordinário nº 99.230/RS, Ministro Rafael Mayer, j. 22.05.1984. [5] TJRJ, 16ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 0082462-48.2019.8.19.0000, Des. Carlos José Martins Gomes, j. 26.08.2020. [6] TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 369.085.4/3-00, Des. Carlos Biasotti, j. 24.02.2005. [7] NEVARES, Ana Luiza Maia. A Sucessão Hereditária com Bens Situados no Exterior. Disponível em: <https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/9102/pdf>. Acesso em 17.03.2022. [8] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 535.646/RJ, Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, j. 08.11.2005. [9] STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 275.985/SP, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 17.06.2003. [10] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.410.958-RS, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. 22.04.2014. [11] STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 1.552.913/RJ, Ministra Maria Isabel Gallotti, j. 08.11.2016.
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